Maria
Clara Lucchetti Bingemer
No dia 31 de janeiro de
2015 completaria 100 anos um dos maiores místicos e escritores do século XX: o
trapista Thomas Merton. Convertido tardiamente e entrando no mosteiro
trapista já adulto, Merton foi aos poucos convertendo-se em um prolífico
escritor. De sua pena saem não apenas belíssimos escritos místicos, mas
igualmente temas candentes e atuais que não apenas respondem como também
antecipam algumas das grandes questões da agenda contemporânea.
Uma delas é a ecologia. A
questão da terra e da relação predatória que o ser humano, sobretudo o ser
humano moderno, tem com o planeta tornou-se prioridade nas inquietações da
humanidade nos dias de hoje. A real ameaça do esgotamento dos recursos naturais
e o perigo de uma catástrofe planetária preocupam cada vez
mais intelectuais e pensadores. Por outro lado, o surgimento de movimentos
religiosos, espirituais e místicos centrados na contemplação da natureza e da
comunhão com o cosmo demonstram como as experiências místicas e as reflexões de
Merton anteciparam muitos caminhos que hoje a humanidade deveria trilhar com
mais respeito e atenção.
O mundo
da natureza e da criação não é tão explorado quando se fala da contribuição de
Merton aos conturbados tempos modernos e pós-modernos. No entanto, este mundo
desempenhou uma base estática de enorme importância em sua experiência de Deus.
A leitura de seus escritos, segundo os especialistas, converge na demonstração
de uma relação íntima e progressiva de formato esponsal com a criação como
corpo da divindade, ao mesmo tempo velando e revelando o Deus que ele tanto
suspirava por ver, tal como por ser visto e conhecido.
Assim é quando descreve o
seu viver em meio
à floresta como uma necessidade imperiosa e não um luxo excêntrico, como
poderiam pensar alguns. Vale a pena citar suas próprias palavras: “(...) Eu
vivo na floresta por necessidade. Saio da cama no meio da noite porque é
imperativo que eu escute o silêncio da noite, sozinho e, com meu rosto em
terra, recite salmos, sozinho, no silêncio da noite... O silêncio da floresta é
minha noiva e o doce e escuro calor do mundo inteiro é meu amor e do coração deste
escuro calor emerge o segredo que é ouvido somente no silêncio, mas é a raiz de
todos os segredos que são sussurrados por todos os amantes em suas camas pelo
mundo inteiro.”
Segundo seus mais ilustres
estudiosos, Merton passou toda a sua vida monástica escutando este segredo que
pulsa no coração da criação e desposou a floresta de maneira a poder escutar
com total arrebatamento e compromisso,
tal como o esposo faz com a esposa, “na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença, amando e respeitando todos os dias da vida até que a morte separe”...
O monaquismo sempre se
distinguiu por esse contato direto, de pele com pele com a natureza e a
criação. Seja o deserto ou as florestas, vamos encontrar homens e
mulheres de Deus fazendo suas experiências místicas e adquirindo sua infusa
sabedoria vinda diretamente da divindade em estreito e amoroso contato com a
criação. Com Merton não foi diferente. Assim é que, quando o abade o nomeou
guarda-florestal do mosteiro, o que implicava restaurar os bosques que haviam
sido despojados e podados uma década antes, sua experiência de solidão e paixão
pela natureza se radicalizou. Já não era percebida como uma privação de
propósitos intelectuais, mas uma oportunidade de um compromisso corpóreo,
carnal, com toda uma comunidade de sabedoria em silenciosa participação com a
vitalidade das coisas vivas.
Descobriu nessa sua sempre
maior comunhão com a natureza que plantar, adubar e arar eram atividades que
aumentavam seus outros compromissos monásticos como esposo da natureza. Pois
não é o esposo que acaricia a amada, a prepara para a fecundação, a fecunda? O
que mais faz o jardineiro com a terra, com a natureza, senão isso? Merton vai
descobrir em meio a essa experiência que o verdadeiro mentor e diretor de almas
era a natureza em si mesma.
Seu matrimônio com a
floresta intensificou-se em 1960, quando foi residir no eremitério instalado no
Monte Olivet. Ali encontrou uma comunidade maior e um coro incomparável
de seres vivos que despertavam toda manhã sob seus pés: os cursos d´água, os
campos, as árvores, as rãs, os pássaros, as flores. Tudo isso fez de seu louvor
e de seus votos monásticos “o silêncio sob sua canção”, a canção de todos
aqueles seres vivos que ouvia e aos quais respondia com seus salmos, e com os
quais enchia o campo e a natureza.
Ora, o que ouvia Merton em
seus êxtases em meio à natureza? Ouvia, segundo suas próprias palavras, o doce
cantar das coisas vivas, visíveis e invisíveis. E a esse coro juntava-se, monge
solitário, oferecendo cânticos e salmos de glória e ação de graças unido a toda
a humanidade. Sua subjetividade, única, desejada e amada pelo Criador desde
toda a eternidade abre-se ao cosmos com admiração e reverência, murmurando no
silêncio um louvor que se une ao hino do universo inteiro, arrebatador e
fulgurante.
Merton buscou Deus de forma
incessante e apaixonada. Era muito culto, havia estudado a rica biblioteca do
mosteiro, sido mestre de noviços etc. No entanto, encontrou na festa multicor e
polifacetada da criação divina uma sabedoria nunca vista ou suspeitada, que
despertou em seus sentidos espirituais uma familiaridade primordial com as
criaturas.
Sem haver escrito nenhum livro
que traçasse explicitamente esta rota através da criação para a comunhão com a
divindade, Thomas Merton diz à humanidade hoje que a vocação humana é, em
última instância, ser “um jardineiro do paraíso’”.
* professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil –
Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
Fonte: Jornal do Brasil
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