Grande parte da história do povo de Deus acontece no deserto. Na
bíblia, o deserto significa lugar do encontro com Deus e da gestação do
novo. Foi aí que o povo conseguiu fazer a travessia da escravidão para a
liberdade; a passagem entre o Faraó que oprimia e o Deus Javé que
liberta; a ponte entre o contentar-se com o pão e a busca da dignidade.
Foi também no deserto que o próprio Jesus se preparou para a missão,
desarmando o diabo e superando as tentações. Antes dele, João Batista já
abandonara o mundo e se refugiara no deserto. Lá recebeu a palavra de
Deus, tornou-se “voz que clama no deserto”, convidando o povo a se
preparar para receber o Messias.
Mas, por que será que a bíblia insiste tanto em colocar os grandes
momentos do povo de Deus e as grandes decisões justamente no deserto? O
que ele esconde e revela de tão importante? Que ligação existe entre o
deserto, a quaresma, a Páscoa?
Ao ler a bíblia, percebemos que é no deserto que Deus fala ao coração
do seu povo: “Eis que vou, eu mesmo, seduzi-la, conduzi-la ao deserto, e
falar-lhe ao coração” (Os 2,16). Comparando seu povo à esposa, Deus diz
que no deserto lhe falará ao coração e o seduzirá. Ali irá guiá-lo por
uma coluna de nuvem; iluminar a sua noite com uma coluna de fogo (Ex
13,21); saciar a sua sede com a água do rochedo (Ex 17,6); oferecer como
alimento o maná de cada dia (Ex 16,13ss); revelar as suas Leis e fazer
com ele uma Aliança de amor.
O Frei Prudente Nery faz uma bela reflexão onde lembra que, no
deserto, Deus permitiu que seu povo experimentasse a sede, para que
pudesse perceber a preciosidade da água; que sentisse fome, para
aprender o valor do pão e da partilha; que sofresse a solidão, para que
compreendesse a importância e o valor dos irmãos. No deserto se viram
perdidos, para reconhecer que precisavam de Deus; sentiram saudade do
passado, para que aprendessem a valorizar a esperança; foram feridos
pelo pecado, para que descobrissem a beleza do perdão.
O deserto nos ensina tudo isso. Só aprendemos a dar valor, quando
perdemos algo ou não podemos ter. Somente passando necessidade,
valorizamos a alegria de possuir. É na aridez do deserto que se descobre
a necessidade de cavar fundo para buscar a água que dá vida. É na sua
escuridão que se aprende a valorizar o brilho das estrelas. É na sua
solidão e silêncio que se descobre a necessidade de prosseguir, sem se
deixar dominar pelo desânimo e pelo cansaço: “Levanta-te e come, porque
tens um longo caminho a percorrer” (1Rs 19,4-8).
Cada ano, durante a quaresma, a Igreja nos convida a fazer a
experiência do deserto. Na liturgia do primeiro domingo, já vemos Jesus
no deserto, sendo tentado, superando as tentações e se preparando para o
ministério. Neste tempo, somos convidados a viver mais intensamente a
oração, o jejum, a meditação da Palavra na busca da conversão.
Desafiados a nos privarmos de algum alimento ou de algo que nos agrada,
como forma de solidariedade, proporcionando o mínimo necessário aos que
nada têm. Somos convidados a fazer a experiência da sede, para sentirmos
o valor da água e ajudarmos a quem não a possui. Olhando para as pedras
do deserto, somos desafiados a superar a dureza de nosso coração.
“Tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um novo coração
de carne” (Ez 36,26).
A experiência do deserto nos mostra que, enquanto há alguns que
esbanjam e vivem na fartura, há outros que vivem do lixo ou sobrevivem
das migalhas da nossa falsa “caridade”. Enquanto desperdiçamos ou nos
entregamos à tentação do consumo exagerado, há milhões que não têm o
mínimo para sobreviver. O maná do deserto, que não podia ser guardado,
pois estragava de um dia para outro, nos ensina a buscar o “pão de cada
dia”, pois se alguém acumula o pão para anos e anos, faltará certamente o
pão de hoje e até o de ontem para milhões de irmãos. E isso dói no
coração do Pai.
Deus nos convida ao deserto e quer falar ao nosso coração. É esse o
lugar privilegiado do encontro com o Senhor da vida e com a vida dos
irmãos. Tempo da gestação do novo. Caminho e garantia da Páscoa da
libertação.
Fonte: Arquidiocese de Mariana/MG
Nenhum comentário:
Postar um comentário