Domingo dentro da Oitava do Natal
As leituras deste domingo complementam-se ao apresentar as duas
coordenadas fundamentais a partir das quais se deve construir a família cristã:
o amor a Deus e o amor aos outros, sobretudo a esses que estão mais perto de
nós – os pais e demais familiares.
O Evangelho sublinha, sobretudo, a dimensão do amor a Deus: o
projeto de Deus tem de ser a prioridade de qualquer cristão, a exigência
fundamental, a que todas as outras se devem submeter. A família cristã
constrói-se no respeito absoluto pelo projeto que Deus tem para cada pessoa.
A segunda leitura sublinha a dimensão do amor que deve brotar dos
gestos de todos os que vivem “em Cristo” e aceitaram ser Homem Novo. Esse amor
deve atingir, de forma mais especial, todos os que conosco partilham o espaço
familiar e deve traduzir-se em determinadas atitudes de compreensão, de
bondade, de respeito, de partilha, de serviço.
A primeira leitura apresenta, de forma muito prática, algumas
atitudes que os filhos devem ter para com os pais. É uma forma de concretizar
esse amor de que fala a segunda leitura.
LEITURA I – Sir 3,3-7.14-17a (gr. 2-6.12-14)
O livro de Ben-Sira (também
chamado “Eclesiástico”), de onde foi extraída a primeira leitura deste domingo,
é um livro sapiencial e que, como todos os livros sapienciais, pretende
apresentar uma reflexão de carácter prático sobre a arte de bem viver e de ser
feliz. Estamos no início do séc. II a.C., numa época em que o helenismo tinha
começado o seu trabalho pernicioso, no sentido de minar a cultura e os valores
tradicionais de Israel. Jesus Ben-Sira, o autor deste livro, avisa os
israelitas para não deixarem perder a identidade cultural e religiosa do seu
Povo. Procura, então, apresentar uma síntese da religião tradicional e da
sabedoria de Israel, sublinhando a grandeza dos valores judaicos e demonstrando
que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.
O texto apresenta uma série de
indicações práticas que os filhos devem ter em conta nas relações com os pais.
Uma palavra sobressai: o verbo
“honrar”. Ele leva-nos ao decálogo do Sinai (cf. Ex 20,12), onde aparece no
sentido de “dar glória”. “Dar glória” a uma pessoa é dar-lhe toda a sua
importância; “dar glória aos pais” é, assim, reconhecer a sua importância como
instrumentos de Deus, fonte de vida.
Ora, reconhecer que os pais são a
fonte, através da qual Deus nos dá a vida, deve conduzir à gratidão; e essa
gratidão tem consequências a nível prático. Implica ampará-los na sua velhice e
não os desprezar nem abandonar; implica assisti-los materialmente – sem
inventar qualquer desculpa – quando já não podem trabalhar (cf. Mc 7,10-11);
implica não fazer nada que os desgoste; implica escutá-los, ter em conta as
suas orientações e conselhos; implica ser indulgente para com as limitações que
a idade traz.
Dado o contexto da época em que Ben-Sira escreve,
é natural que, por detrás destas indicações aos filhos, esteja também a
preocupação com o manter bem vivos os valores tradicionais, esses valores que
os mais antigos preservam e que passam aos jovens.
Como recompensa desta atitude de
“honrar” os pais, Jesus Ben-Sira promete o perdão dos pecados, a alegria, a
vida longa e a atenção de Deus.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização do texto
podem fazer-se à volta dos seguintes dados:
- Sentimo-nos gratos aos nossos pais porque eles
aceitaram ser, em nosso favor, instrumentos de Deus criador? Lembramo-nos
de lhes demonstrar essa gratidão?
- Apesar da preocupação moderna com os direitos
humanos e o respeito pela dignidade das pessoas, a nossa civilização cria,
com frequência, situações de abandono e de marginalização, cujas vítimas
são, muitas vezes, aqueles que já não têm uma vida considerada produtiva,
ou aqueles a quem a idade ou a doença trouxeram limitações. Que motivos
justificam o desprezo e abandono daqueles a quem devemos “honrar”?
- É verdade que a vida de hoje é muito exigente a
nível profissional e que nem sempre é possível a um filho estar presente
ao lado de um pai que precisa de cuidados ou de acompanhamento
especializado. No entanto, a situação é muito menos compreensível se o
afastamento de um pai do convívio familiar resulta do egoísmo do filho,
que não está para “aturar o velho”…
- O capital de maturidade e de sabedoria de vida que
os mais idosos possuem é considerado por nós uma riqueza ou um estorvo à
nossa modernidade?
- Face à invasão contínua de valores estranhos que,
tantas vezes, põem em causa a nossa identidade cultural e religiosa, o que
significam os valores que recebemos dos nossos “pais”? Avaliamos com
maturidade a perenidade desses valores?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)
Refrão 1: Felizes os que esperam
no Senhor
e seguem os seus caminhos.
Refrão 2: Ditosos os que temem o
Senhor,
ditosos os que seguem os ses
caminhos.
Feliz de ti, que temes o Senhor
e andas nos ses caminhos.
Comerás do trabalho das tuas
mãos,
serás feliz e tudo te correrá
bem.
Tua esposa será como videira
fecunda
no íntimo do teu lar;
teus filhos serão como ramos de
oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim será abençoado o homem que
teme o Senhor.
De Sião te abençoe o Senhor:
vejas a prosperidade de Jerusalém,
todos os dias da tua vida.
LEITURA II – Col 3,12-21
Paulo estava na prisão
(possivelmente em Roma, anos 61/63) quando escreveu aos colossenses. Algum
tempo antes, Paulo havia recebido notícias pouco animadoras sobre a comunidade
de Colossos. Essas notícias falavam da perigosa tendência de alguns doutores locais,
que ensinavam doutrinas errôneas e afastavam os colossenses da verdade do
Evangelho. Essas doutrinas misturavam práticas legalistas, práticas ascéticas,
especulações sobre os anjos e achavam que toda esta mistura confusa de
elementos devia completar a fé em Cristo e comunicar aos crentes um
conhecimento superior dos mistérios cristãos e uma vida religiosa mais
autêntica.
Sem refutar essas doutrinas de
modo direto, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu
lugar proeminente na criação e na redenção dos homens.
O texto da segunda leitura
pertence à segunda parte da carta. Depois de constatar a supremacia de Cristo
na criação e na redenção (primeira parte), Paulo avisa os colossenses de que a
união com Cristo traz consequências a nível de vivência prática (segunda
parte): implica a renúncia ao “homem velho” do egoísmo e do pecado, e o
“revestir-se do homem novo”.
Em termos mais concretos, viver
como “homem novo” implica cultivar um conjunto de virtudes que resultam da
união do cristão com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, paciência,
mansidão. Lugar especial ocupa o perdão das ofensas do próximo, a exemplo do
que Cristo sempre fez. Estas virtudes são exigências e manifestações da
caridade, que é o mais fundamental dos mandamentos cristãos.
Catálogos de virtudes como este
apareciam também na ética dos gregos; o que é novo aqui é a fundamentação: tais
exigências resultam da íntima relação do cristão com Cristo; viver “em Cristo”
implica viver, como Ele, no amor total, no serviço, na disponibilidade e no dom
da vida.
Uma vez apresentado o ideal da
vida cristã nas suas linhas gerais, Paulo aplica o que acabou de dizer à vida
familiar. Às mulheres, recomenda o respeito para com os maridos; aos maridos,
convida a amar as esposas, evitando o domínio tirânico sobre elas; aos filhos,
recomenda a obediência aos pais; aos pais, com intuição pedagógica, pede que
não sejam excessivamente severos para com os filhos, pois isso pode impedir o
desenvolvimento normal das suas capacidades.
É desta forma que, no espaço
familiar, se manifesta o Homem Novo, o homem que vive segundo Cristo.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, ter em conta os
dados seguintes:
- Viver “em Cristo” implica fazer do amor a nossa
referência fundamental e deixar que ele se manifeste em gestos concretos
de bondade, de perdão, de compreensão, de respeito pelo outro, de
partilha, de serviço… É este o quadro em que se desenvolvem as nossas
relações com aqueles que nos rodeiam?
- A nossa primeira responsabilidade vai para com aqueles
que conosco partilham, de forma mais chegada, a vida do dia a dia (a nossa
família). Esse amor, que deve revestir-nos sempre, traduz-se numa atenção
contínua àquele que está ao nosso lado, às suas necessidades e
preocupações, às suas alegrias e tristezas? Traduz-se em gestos sentidos e
partilhados de carinho e de ternura? Traduz-se num respeito absoluto pela
liberdade e pelo espaço do outro, por um deixar o outro crescer sem o
sufocar? Traduz-se na vontade de servir o outro, sem nos servirmos do outro?
- As mulheres não gostam de ouvir Paulo pedir-lhes a
“submissão” aos maridos… No entanto, não devem ser demasiado severas com
Paulo: ele é um homem do seu tempo, e não podemos exigir dele a mesma
linguagem com que, nos nossos dias, falamos destas coisas. Apesar de tudo,
convém lembrar que Paulo não se esquece de pedir aos maridos que amem as
mulheres e não as tratem com aspereza: sugere, desta forma, que a mulher
tem, em relação ao marido, igual dignidade.
ALELUIA – Col 3,15a.16a
Aleluia. Aleluia.
Reine em vossos corações a paz de
Cristo,
habite em vós a sua palavra.
EVANGELHO - Mt 2,13-15.19-23
O Evangelho que nos é proposto é o final do “Evangelho da infância”
de Lucas. Ora, já sabemos que a finalidade do “Evangelho da infância” não é
fazer uma reportagem sobre os primeiros anos da vida de Jesus, mas sim fazer
catequese sobre Jesus; nessa catequese, diz-se quem é Jesus e apresentam-se
algumas coordenadas teológicas que vão, depois, ser desenvolvidas no resto do
Evangelho.
A “catequese” de hoje situa-nos em Jerusalém. A Lei judaica
pedia que os homens de Israel fossem três vezes por ano a Jerusalém, por
alturas das três grandes festas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes e Festa
das Cabanas – cf. Ex 23,17-17). Ainda que os rabinos não considerassem
obrigatória esta lei até aos treze, muitos pais levavam os filhos antes dessa
idade. Jesus tem doze anos e, de acordo com o texto de Lucas, foi com Maria e
José a Jerusalém celebrar a Páscoa.
É neste ambiente de Jerusalém e
do Templo que Lucas situa as primeiras palavras pronunciadas por Jesus no
Evangelho. Elas são, sem dúvida, o centro do nosso relato.
A chave deste episódio está,
portanto, nas palavras pronunciadas por Jesus quando, finalmente, se encontra
com Maria e José: “porque me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na
casa de meu Pai?”
O significado (a catequese) da
resposta à pergunta de Maria é que Deus é o verdadeiro Pai de Jesus. Daqui
deduz-se que as exigências de Deus são, para Jesus, a prioridade fundamental,
que ultrapassa qualquer outra exigência. A sua missão – a missão que o Pai Lhe
confia – vai obrigá-l’O a romper os laços com a própria família (cf. Mc
3,31-35).
É possível que haja ainda, aqui,
uma referência à paixão/morte/ressurreição de Jesus: tanto o episódio de hoje,
como os fatos relativos à morte/ressurreição, são situados num contexto pascal;
em ambas as situações Jesus é abandonado – aqui por Maria e José e, mais tarde,
pelos discípulos – por pessoas que não compreendem que a sua prioridade é o projeto
do Pai; em ambas as situações, Jesus é procurado (cf. Lc 24,5) e tem de
explicar que a finalidade da sua vida é cumprir aquilo que o Pai tinha definido
(cf. Lc 24,7.25-27.45-46). Lucas apresenta aqui a chave para entender toda a
vida de Jesus: Ele veio ao mundo por mandato de Deus Pai e com um projeto de
salvação/libertação. Àqueles que se perguntam porque deve o Messias percorrer
determinado caminho, Lucas responde: porque é a vontade do Pai. Foi para
cumprir a vontade do Pai que Jesus veio ao nosso encontro e entrou na nossa
história.
Atente-se, ainda, em duas
questões um tanto marginais, mas que podem servir também para a nossa reflexão
e edificação: em primeiro lugar, reparemos no entusiasmo que Jesus tem pela
Palavra de Deus e pelas questões que ela levanta; em segundo lugar, a “declaração
de independência” de Jesus pode ajudar-nos a compreender que a família não é o
lugar fechado, onde cada pessoa cresce em horizontes limitados e fechados, mas
é o lugar onde nos abrimos ao mundo e aos outros, onde nos armamos para partir
à conquista do mundo que nos rodeia.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão do Evangelho de hoje
deve ter em conta as seguintes questões:
- Para Jesus, a prioridade fundamental a que tudo se
subjuga (até a família) é o projeto de Deus, o plano que Deus tem para
cada pessoa. Se os planos dos pais e os planos de Deus entram em choque,
quais devem prevalecer?
- Anima-nos o mesmo entusiasmo de Jesus pela Palavra
de Deus? Somos capazes de esquecer outros interesses legítimos para nos
dedicarmos à escuta, à reflexão e à discussão da Palavra? Vemos nela um
meio privilegiado de conhecer o projeto que Deus tem para nós?
- Maria e José não fizeram cenas diante da resposta
“irreverente” de Jesus. Aceitaram que o jovem Jesus não lhes pertencia
exclusivamente: Ele tinha a sua identidade e a sua missão próprias. É
assim que nos situamos face àqueles com quem partilhamos a experiência
familiar?
- A nossa família potencia o nosso crescimento,
abrindo-nos horizontes e levando-nos ao encontro do mundo, ou fecha-nos
num espaço cômodo mas limitado, onde nos mantemos eternamente dependentes?