segunda-feira, 31 de março de 2014

A ALMA HUMANA E A IMAGEM DE DEUS.


A alma humana continua sendo a imagem de Deus. Por mais que se afaste Dele em direção às regiões da irrealidade, nunca se torna tão completamente irreal que deixe de sentir o tormento de seu destino original e a necessidade de voltar para si mesma em Deus, fazendo-se outra vez real.”





The New Man de Thomas Merton
(Farrar, Straus, and Giroux, NY) 1961 p. 112
No Brasil: O Homem Novo (AGIR, Rio de Janeiro), 1966, p. 91

O QUE É O PURGATÓRIO?


Será que todos nós, quando morremos, já estamos plenamente convertidos a Deus? O que acontece com as almas que precisam se purificar?





Será que todas as coisas sujas que acumulamos em nossas vidas se tornarão, de repente, irrelevantes?

Para a Igreja Católica, o purgatório é um estado no qual as almas dos defuntos passam por um processo de purificação a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu. É a ocasião final que Deus dá às pessoas de se habilitarem para a comunhão plena com Ele. Assim, o purgatório é a última conversão, na morte.

O modo de viver de cada pessoa não é irrelevante. A morte não é uma esponja que simplesmente apaga todo o mal feito e o pecado cometido. Raros são os que, na morte, estão de tal forma purificados que podem mergulhar direto na santidade de Deus. A graça de Deus que salva não prescinde da justiça.

Quando uma pessoa morre, sua opção de vida torna-se definitiva. Podem existir pessoas que levaram uma vida puríssima, tendo morrido na graça e na amizade de Deus, estando totalmente purificadas. A Igreja ensina que tais pessoas seguem imediatamente para o Céu.

No outro extremo desse caso, podem existir aqueles que morreram tendo cometido faltas muito graves, sem terem se arrependido e acolhido o amor misericordioso de Deus. Estes passariam ao estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus, chamado de Inferno.

Observando as duas situações acima, não é difícil perceber que nenhuma delas é a mais comum. O coração do homem vive constantemente em luta perante suas limitações e negações em acolher o amor de Deus de forma plena.

Em sua carta Spe Salvi, o Papa Bento XVI reconhece que na maioria dos homens “perdura no mais profundo da sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus”.

Porém, nas opções concretas da vida, essa abertura para Deus “é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede” (n. 45).

Mesmo aqueles que buscam viver a sua vida em amizade com Deus não estão totalmente isentos de apresentar inclinações desregradas, falhas em sua constituição humana, ou seja, características incompatíveis com a santidade de Deus.

Quantas vezes aquilo que chamamos de virtude não é, na verdade, um culto ao próprio “eu”; quantas vezes a prudência não se revela uma forma de covardia; a virilidade, arrogância; a parcimônia, avareza; e a caridade, uma forma de esbanjamento (Schamus, “Katholische Dogmatik” IV 2).

Quantas vezes em nossos corações não se instalam egoísmo, orgulho, vaidade, negligência, infidelidade...
Então pergunta o Papa: “o que acontece a tais indivíduos quando comparecem diante do Juiz? Será que todas as coisas imundas que acumularam na sua vida se tornarão, de repente, irrelevantes?” (n. 44)

O Papa tem aqui em mente a questão da justiça. A graça de Deus – seu socorro gratuito –, que salva o homem, não exclui a justiça. A graça não é uma esponja que apaga tudo que foi feito de mal no mundo, de modo que, ao final, tudo tenha o mesmo valor (n. 44).

A compenetração da graça e da justiça ensina que “o nosso modo de viver não é irrelevante”, ou seja, que o mal que cometemos e o pecado dos homens não é simplesmente esquecido.

O ensinamento católico considera que o ser humano, na morte, ainda tem uma ocasião para se purificar e atingir o grau de santidade necessário para entrar no Céu. O purgatório é exatamente este estado em que as almas dos defuntos se purificam. Não é uma câmara de tortura e não deve causar medo. O purgatório é uma derradeira oportunidade para a pessoa tornar-se plena e evoluir até as últimas possibilidades do seu ser.

O mal do mundo e de nossos corações não fica simplesmente esquecido com a morte. Deus não é apenas graça, mas é também justiça. E toda pessoa, sendo dotada de liberdade, é ao final responsável por suas escolhas e atitudes.







Sendo assim, aqueles que morrem na graça e na amizade com Deus, mas não estão completamente purificados, têm a oportunidade de passar por essa purificação após a morte.

O ensinamento católico considera que o destino do ser humano na morte não alcança um ponto final estático da evolução. Ou seja, é possível realizar um caminho de aperfeiçoamento – de conversão e purificação – depois da morte. 
Trata-se da última conversão da pessoa. Diante de Deus, na morte, cada um deve abrir mão, de forma radical, de todo orgulho e egoísmo, entregando-se incondicionalmente ao Senhor, depositando nele toda a esperança. Deve abandonar tudo que impossibilita amar a Deus com todo coração. 
É a este último ato da evolução humana, esta conversão derradeira e purificação para mergulhar na comunhão com Deus que a Igreja chama de purgatório. 
“É exatamente na morte e por ocasião do encontro com Deus que cada pessoa experimentará, com intensidade nunca antes conhecida, o significado de sua vida vivida.

E dependendo do que ela tiver feito de si durante esta vida, dependendo também do que ela tiver feito a outras pessoas e com as situações históricas e estruturais naquela vida, sua união com Deus também será ligada a uma purificação experimentada de maneira mais ou menos dolorosa”, afirma o teólogo Renold Blank no livro “Escatologia da Pessoa”. 
Esta purificação é uma última oportunidade dada ao homem de cumprimento do plano de Deus, em que sejamos “conformes à imagem do seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8, 29). 
Assim, o purgatório não deve ser visto como uma câmara de tortura cósmica e nem deve causar medo. O purgatório é no fundo de “um novo e reiterado ato de salvação de Deus, a fim de que o homem possa ser salvo” (Blank). 
A oferta de Deus com o purgatório configura-se então como a etapa para a pessoa tornar-se plena, evoluir até as últimas possibilidades do seu ser, alcançar a plena realização de todas as suas capacidades, estando apta assim para entrar no Céu e na santidade de Deus.

A imagem do fogo, associada ao purgatório, pode ser interpretada como o próprio Cristo, que vem para nos salvar. No encontro com Ele, toda falsidade vem abaixo e o seu olhar nos cura como que pelo fogo.

Sobre a imagem do purgatório ser associada ao fogo, Bento XVI assinala que “alguns teólogos recentes são do parecer de que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador” (Spe Salvi, n. 47).

Diante do olhar de Cristo, toda falsidade vem abaixo. “É o encontro com ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos”. 
Nesse momento, as coisas edificadas durante a vida podem se revelar palha seca e desmoronar. Porém, “na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação”. 
O olhar de Cristo, o toque do seu coração “cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa ‘como pelo fogo’. Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo de seu amor nos penetra como chama”.

Bento XVI explica ainda que o pecado do homem já foi queimado na Paixão de Cristo. E no momento do Juízo, “experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós”.

A doutrina do purgatório é uma consequência lógica da ideia bíblica de que Deus exige a expiação dos pecados. Ela traz referências a certos trechos da Escritura, à tradição da Igreja e à prática da oração pelos defuntos. Essa ideia foi sistematizada a partir do II Concílio de Lião, em 1274. O Papa Bento XVI a retomou em sua encíclica sobre a esperança cristã, Spe Salvi (2007).
O termo purgatório designa uma noção teológica elaborada a partir da Idade Média no Ocidente. Nomeia o estado em que se encontram as almas dos defuntos que estão num estado provisório, devido ao fato de não estarem aptas a entrar imediatamente na visão de Deus.

O pensamento católico assinala o dogma do purgatório como consequência lógica da doutrina bíblica segundo a qual Deus exige do homem a expiação pessoal pelas faltas cometidas.

Do Antigo Testamento, considera-se a passagem mais significativa para ilustrar essa ideia 2 Mac 12, 39-46, em que Judas Macabeu “mandou que se celebrasse pelos mortos um sacrifício expiatório, para que fossem absolvidos de seu pecado”. Já Paulo, em 1 Cor 3, 10-15, fala de uma salvação “como que através do fogo”.

Até o século IV, a fé no purgatório é atestada pelos sufrágios que os cristãos faziam por seus defuntos, ou seja, as orações pelas almas que ainda não tinham entrado no Céu e poderiam ser ajudadas nisso pelos fiéis vivos.

Santo Agostinho e outros grandes teólogos dos inícios da Igreja assinalam a existência de penas expiatórias depois da morte. Nesse âmbito, o texto de Paulo que fala da salvação “como que através do fogo” é frequentemente citado.

Diante de um crescente interesse pelo tema do purgatório na Idade Média, o Magistério da Igreja passou a estruturar essa doutrina.

O II Concílio de Lião (1274) fala de “penas purgatoriais”. O Concílio de Florença (1438) também assinala uma purificação após a morte por “penas purgatoriais”. Mas é o Concílio de Trento (1547) que vai registrar expressamente a doutrina, afirmando que o pecado acarreta uma pena que tem de ser expiada “seja neste mundo, seja no outro, no purgatório”.

Trata-se portanto de uma doutrina católica, que não foi acolhida nem pelas Igrejas do Oriente nem pelos protestantes.

O ensinamento mais recente da Igreja Católica reafirma a doutrina do purgatório. O Catecismo da Igreja Católica (1992) assinala sua fundamentação nas Escrituras, nos concílios e na prática da oração pelos defuntos. O Papa Bento XVI também retoma o tema, na sua encíclica sobre a esperança cristã.




Referências

Para este artigo, Aleteia consultou o CIC (Catecismo da Igreja Católica); a encíclica Spe Salvi, de Bento XVI (2007); o livro “Escatologia da Pessoa - vida morte e ressurreição”, de Renold J. Blank (São Paulo, Paulus, 2000); o livro “A vida que começa com a morte”, de D. Estevão Bettencourt (Rio de Janeiro, Agir, 1963); o “Dicionário crítico de teologia”, de Jean-Yves Lacoste (Loyola, 2004).

LITURGIA DIÁRIA - O SEGUNDO SINAL DE JESUS.

Primeira Leitura (Is 65,17-21)

Leitura do Livro do Profeta Isaías.
Assim fala o Senhor: 17Eis que eu criarei novos céus e nova terra, coisas passadas serão esquecidas, não voltarão mais à memória. 18Ao contrário, haverá alegria e exultação sem fim em razão das coisas que eu vou criar; farei de Jerusalém a cidade da exultação e um povo cheio de alegria.
19Eu também exulto com Jerusalém e alegro-me com o meu povo; ali nunca mais se ouvirá a voz do pranto e o grito de dor. 20Ali não haverá crianças condenadas a poucos dias de vida nem anciãos que não completem seus dias. Será considerado jovem quem morrer aos cem anos; e quem não alcançar cem anos, passará por maldito. 21Construirão casas para nelas morar, plantarão vinhas para comer seus frutos.
Responsório (Sl 29)

— Eu vos exalto, ó Senhor, pois me livrastes!
— Eu vos exalto, ó Senhor, pois me livrastes!

— Eu vos exalto, ó Senhor, pois me livrastes, e não deixastes rir de mim meus inimigos! Vós tirastes minha alma dos abismos e me salvastes, quando estava já morrendo!
— Cantai salmos ao Senhor, povo fiel, dai-lhe graças e invocai seu santo nome! Pois sua ira dura apenas um momento, mas sua bondade permanece a vida inteira; se à tarde vem o pranto visitar-nos, de manhã vem saudar-nos a alegria.
— Escutai-me, Senhor Deus, tende piedade! Sede, Senhor, o meu abrigo protetor! Transformastes o meu pranto em uma festa, Senhor meu Deus, eternamente hei de louvar-vos!
Evangelho (Jo 4,43-54)

Naquele tempo, 43Jesus partiu da Samaria para a Galileia. 44O próprio Jesus tinha declarado, que um profeta não é honrado na sua própria terra. 45Quando então chegou à Galileia, os galileus receberam-no bem, porque tinham visto tudo o que Jesus havia feito em Jerusalém, durante a festa. Pois também eles tinham ido à festa. 46Assim, Jesus voltou para Caná da Galileia, onde havia transformado água em vinho.
Havia em Cafarnaum um fun­cionário do rei que tinha um filho doente. 47Ouviu dizer que Jesus tinha vindo da Judeia para a Galileia. Ele saiu ao seu encontro e pediu-lhe que fosse a Ca­farnaum curar seu filho, que estava morrendo. 48Jesus disse-lhe: “Se não virdes sinais e prodígios, não acreditais”. 49O funcionário do rei disse: “Senhor, desce, antes que meu filho morra!” 50Jesus lhe disse: “Podes ir, teu filho está vivo”. O homem acreditou na palavra de Jesus e foi embora.
51Enquanto descia para Ca­farnaum, seus empregados foram ao seu encontro, dizendo que o seu filho estava vivo. 52O funcionário perguntou a que horas o menino tinha melhorado. Eles responderam: “A febre desapareceu, ontem, pela uma da tarde”. 53O pai verificou que tinha sido exatamente na mesma hora em que Jesus lhe havia dito: “Teu filho está vivo”. Então, ele abraçou a fé, juntamente com toda a sua família. 54Esse foi o segundo sinal de Jesus. Realizou-o quando voltou da Judeia para a Galileia.

O segundo milagre de Jesus aconteceu em Cafarnaum, cidade da Galileia, região onde Ele vivia. Os seus habitantes duvidavam dos Seus milagres por Ele ser “de casa”. Os galileus precisavam de sinais e de testes para poder acreditar em Jesus. Neste contexto, aquele funcionário do rei fez toda a diferença porque acreditou na palavra de Jesus e voltou confiante para casa a fim de reencontrar-se com o seu filho, vivo. A fé na promessa de Jesus, pela Sua palavra empenhada, foi motivação para que aquele homem visse a sua vida e a vida da sua família transformada. Tudo aconteceu da melhor forma possível! Jesus está esperando de nós o sinal da FÉ para poder realizar os prodígios e os milagres de que necessitamos na nossa vida. Nós também precisamos que tudo aconteça da melhor forma possível e Jesus também diz para cada um de nós: “Podes ir teu filho está vivo”. O filho poderá ser algo muito precioso pelo qual estamos esperando, no entanto, nos acomodamos sem dar o passo necessário para que as coisas aconteçam. Ou poderá ser também uma decisão importante que precisamos tomar a fim de que o milagre aconteça. Precisamos dar o passo, Jesus está nos instruindo e garantindo. A Palavra Dele se cumpriu na vida daquele homem, por isso, ele abraçou a fé juntamente com toda a sua família. Quantos milagres nós precisamos que aconteçam na nossa vida e não os alcançamos porque NÃO ACEDITAMOS! PRECISAMOS DE SINAIS! E estamos perdendo tempo precioso sem perceber que Jesus vive no meio de nós e que assim como curou o filho do funcionário do rei tem poder também para nos curar hoje e alcançar para nós os milagres que tanto desejamos! Precisamos abraçar a fé em Jesus e dar testemunho dela dentro da nossa casa para que as Suas maravilhas também aconteçam na nossa família. - Qual o milagre que você precisa que aconteça na sua vida? - Você “acha” difícil isto acontecer? - Você está esperando fazer boas obras para receber os presentes de Jesus? - Peça a Jesus com fé e assim mesmo do jeito que você está, do jeito que você é, Ele também o atenderá e dirá: “Podes ir, teu filho está vivo”!


Helena Serpa

sábado, 29 de março de 2014

4º DOMINGO DA QUARESMA - LIBERTAR O HOMEM E FAZÊ-LO VIVER NA "LUZ"

 
As leituras deste Domingo propõem-nos o tema da “luz”.
Definem a experiência cristã como “viver na luz”.
No Evangelho, Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”; a sua missão é libertar os homens das trevas do egoísmo, do orgulho e da autossuficiência. Aderir à proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de realização que conduz à vida plena. Da ação de Jesus nasce, assim, o Homem Novo – isto é, o Homem elevado às suas máximas potencialidades pela comunicação do Espírito de Jesus.
Na segunda leitura, Paulo propõe aos cristãos de Éfeso que recusem viver à margem de Deus (“trevas”) e que escolham a “luz”. Em concreto, Paulo explica que viver na “luz” é praticar as obras de Deus (a bondade, a justiça e a verdade).
A primeira leitura não se refere diretamente ao tema da “luz” (o tema central na liturgia deste domingo). No entanto, conta a escolha de David para rei de Israel e a sua unção: é um óptimo pretexto para reflectirmos sobre a unção que recebemos no dia do nosso Baptismo e que nos constituiu testemunhas da “luz” de Deus no mundo.

LEITURA I – 1 Sam 16,1b.6-7.10-13a

Na segunda metade do séc. XI a.C., os filisteus constituíam uma ameaça bastante séria para as tribos do Povo de Deus. Instalados na orla costeira, os filisteus pressionavam cada vez mais os outros grupos que habitavam a terra de Canaã, nomeadamente as tribos do Povo de Deus que ocupavam as montanhas do interior do país. A necessidade de uma liderança única e forte levou os anciãos das tribos a equacionar, pela primeira vez, a possibilidade da união política das tribos sob a autoridade de um rei, à imagem do que sucedia com os outros povos da zona.
A primeira experiência monárquica aconteceu com Saul e agrupava as tribos do centro e algumas do norte do país. Essa experiência terminou, no entanto, de forma dramática: Saul e seu filho Jónatas morreram na batalha de Gelboé, em luta contra os filisteus, por volta do ano 1010 a.C.
Era preciso encontrar um outro “herói”, capaz de gerar consensos entre tribos muito diferentes, juntá-las e conduzi-las vitoriosamente ao combate contra os inimigos filisteus. A escolha dos anciãos – tanto das tribos do norte, como das tribos do sul – recaiu, então, num jovem chamado David.
David nasceu por volta de 1040 a.C., em Belém de Judá, no sul do país. Como é que David se tornou notado e se impôs, de forma a ser considerado uma solução para o problema da realeza?
O Livro de Samuel apresenta três tradições sobre a entrada de David em cena. A primeira apresenta David como um admirável guerreiro, cuja valentia chamou a atenção de Saul, sobretudo após a sua vitória sobre o gigante filisteu Golias (cf. 1 Sm 17). A segunda tradição apresenta David como um poeta, que vai para a corte de Saul para cantar e tocar harpa (segundo esta tradição – bastante hostil a Saul – o rei só conseguia reencontrar a calma e o bem estar quando David o acalmava com a sua música – cf. 1 Sm 16,14-23. Aos poucos, o poeta/cantor David foi ganhando adeptos na corte, tornando-se amigo de Jónatas, o filho de Saúl, e casando mesmo com Mical, a filha do rei). Finalmente, a terceira tradição – a menos verificável historicamente, mas a de maior importância teológica – apresenta a realeza de David como uma escolha de Jahwéh. É esta terceira tradição que o nosso texto nos apresenta.
O nosso relato apresenta-nos uma bem elaborada reflexão sobre a eleição. O autor do texto pretende mostrar que a lógica de Deus é bem diferente, neste capítulo, da lógica dos homens.
Antes de mais, David é apresentado como o eleito de Jahwéh. É sempre Jahwéh que escolhe aqueles a quem quer confiar uma missão. Nem a Samuel – o seu enviado – Jahwéh dá qualquer explicação. A eleição não resulta da iniciativa do homem, mas sim da iniciativa e da vontade livre de Deus.
Em segundo lugar, impressiona a lógica da escolha de Deus. Samuel raciocina com a lógica dos homens e pretende ungir como rei o filho mais velho de Jessé de Belém, impressionado pelo seu belo aspecto e pela sua estatura; mas não é essa a escolha de Deus… Samuel percebe, finalmente, que a escolha de Deus recai sobre David – o filho mais novo de Jessé – um jovem anónimo e desconhecido que andava a guardar o rebanho do pai.
A história da eleição de David quer sublinhar a lógica de Deus, que escolhe sem ter em conta os méritos, o aspecto ou as qualidades humanas que costumam impressionar os homens. Pelo contrário, Deus escolhe e chama, com frequência, os pequenos, os mais fracos, aqueles que o mundo marginaliza e considera insignificantes; e é através deles que age no mundo.
Fica, assim, claro que quem leva a cabo a obra da salvação é Deus; os homens são apenas instrumentos, através dos quais Deus realiza a sua obra no mundo.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão pode partir dos seguintes dados:
• Se olharmos para o mundo com olhos de esperança, vemos muitas pessoas que realizam coisas bonitas, que lutam contra a miséria, o sofrimento, a injustiça, a doença, o analfabetismo, a violência… Não há mal nenhum em admirarmos a sua disponibilidade e em aprendermos com o seu empenho e compromisso. No entanto, nós os crentes somos convidados a olhar mais além e a ver Deus por detrás de cada gesto de amor, de bondade, de coragem, de compromisso com a construção de um mundo melhor. O nosso Deus continua a construir, dia a dia, a história da salvação; e chama homens e mulheres para colaborarem com Ele na salvação do mundo.
• A nossa leitura mostra, mais uma vez, que Deus tem critérios diferentes dos critérios humanos e que a sua lógica nem sempre coincide com a nossa. “Deus não vê como o homem; o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração” – diz o texto. É preciso entrar na lógica de Deus e aprender a ver, para além da aparência, da roupa que a pessoa veste, do “curriculum” profissional ou académico; é preciso aprender a ver com o coração e a descobrir a riqueza que se esconde por detrás daqueles que parecem insignificantes e sem pretensões… É preciso, sobretudo, aprender a respeitar a dignidade de cada homem e de cada mulher, mesmo quando não parecem pessoas importantes ou influentes. É isso que acontece nos “guichets” dos nossos serviços públicos? É isso que acontece nas recepções das nossas igrejas? É isso que acontece nas portarias das nossas casas religiosas?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 22 (23)

Refrão 1: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.
Refrão 2: O Senhor me conduz: nada me faltará.
O Senhor é meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.
Ele me guia por sendas direitas por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.
Para mim preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça
e meu cálice transborda.
A bondade e a graça hão-de acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.

LEITURA II – Ef 5,8-14

A Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias Igrejas da Ásia Menor, numa altura em que Paulo está na prisão (em Roma? em Cesareia?). O seu portador é um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.
Alguns vêem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que Paulo sente ter terminado a sua missão apostólica na Ásia e não sabe exatamente o que o futuro próximo lhe reserva (recordemos que ele está, por esta altura, prisioneiro e não sabe como vai terminar o cativeiro).
O tema central da Carta aos Efésios é aquilo a que Paulo chama “o mistério”: o desígnio (ou projeto) salvador de Deus, definido desde toda a eternidade, escondido durante séculos aos homens, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos, desfraldado e dado a conhecer ao mundo na Igreja.
O texto que nos é aqui proposto faz parte da “exortação aos batizados” que aparece na segunda parte da carta (cf. Ef 4,1-6,20). Nessa exortação, Paulo retoma os temas tradicionais da catequese primitiva e convida os crentes a deixarem a antiga forma de viver para assumirem a nova, revestindo-se de Cristo (cf. Ef 4,17-31), imitando Deus (cf. Ef 4,32-5,2) e passando das trevas à luz (cf. Ef 5,3-20).
A imagem da “luz” e das “trevas”, aqui utilizada, é uma imagem que aparecia frequentemente na catequese primitiva, como sugere o seu uso nos textos neo-testamentários, sobretudo em João e Paulo (cf. Jo 1,4-5; 3,19.21; 8,12; 1 Jo 1,5-7; 2,9-11; Rom 2,19; 2 Cor 4,6; 1 Tess 5,4-7). O símbolo “luz/trevas” aparece, também, nos escritos de Qûmran para definir o mundo de Deus (luz) e o mundo que se opõe a Deus (trevas).
Para Paulo, viver nas “trevas” é viver à margem de Deus, recusar as suas propostas, viver prisioneiro das paixões e dos falsos valores, no egoísmo e na autossuficiência. Ao contrário, viver na “luz” é acolher o dom da salvação que Deus oferece, aceitar a vida nova que Ele propõe, escolher a liberdade, tornar-se “filho de Deus”.
Os cristãos são aqueles que escolheram viver na “luz”. Paulo, dirigindo-se aos cristãos da parte ocidental da Ásia Menor, exorta-os a viverem na órbita de Deus, como Homens Novos, e a praticarem as obras correspondentes à opção que fizeram pela “luz”. Em concreto, Paulo pede-lhes que as suas vidas sejam marcadas pela bondade, pela justiça e pela verdade. A propósito, Paulo cita um velho hino cristão baptismal, que convoca os crentes para viverem na “luz” (vers. 14).
Mais ainda: o cristão não é só chamado a viver na “luz”; mas deve desmascarar as “trevas” e denunciar as obras e os comportamentos daqueles que escolhem viver nas “trevas” do egoísmo, da mentira, da escravidão e do pecado. O cristão não deve só escolher a luz, mas deve também desmascarar as obras das “trevas”, de forma aberta e decidida.

ATUALIZAÇÃO

Na reflexão, ter em conta os seguintes dados:
• “Luz” e “trevas” são, nesta passagem, duas esferas de poder capazes de tomar conta do homem e de condicionar a sua vida, as suas opções, os seus valores e comportamentos. O cristão, no entanto, é aquele que optou por “viver na luz”. Para mim, o que significa, em concreto, “viver na luz”? O que é que isso, em termos práticos, implica? Quais são os esquemas, comportamentos e valores que devem ser definitivamente saneados da minha vida, a fim de que eu seja um testemunho da “luz”?
• Para Paulo, não chega “viver na luz” e dar testemunho da “luz”. É preciso, também, denunciar – de forma aberta e decidida – as “trevas” que desfeiam o mundo e que mantêm os homens escravos. Na minha perspectiva, quais são os gestos, comportamentos e atitudes que contribuem para apagar a “luz” de Deus e para manter este mundo nas “trevas”? Com que é que eu devo pactuar e o que é que eu devo denunciar?
• A expressão “desperta tu que dormes”, citada por Paulo, convida-nos à vigilância. O cristão não pode ficar de braços cruzados diante da maldade, do egoísmo, da injustiça, da exploração, dos contra-valores que enegrecem a vida dos homens e do mundo. O cristão tem de manter uma atitude de vigilância atenta e de denúncia ousada e corajosa. Diante dos contra-valores, qual a minha atitude: é a atitude comodista de quem deixa correr as coisas porque não está para se chatear, ou é a atitude de quem se sente realmente incomodado com a escuridão do mundo e pretende intervir para que o mundo se construa de uma forma diferente?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Jo 8,12
Escolher um dos refrães:
Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Eu sou a luz do mundo, diz o Senhor:
quem Me segue terá a luz da vida.
EVANGELHO – Jo 9,1-41

Naquele tempo, 1ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. 6E cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. 7E disse-lhe: “Vai lavar-te na piscina de Siloé” (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando.
8Os vizinhos e os que costumavam ver o cego — pois ele era mendigo — diziam: “Não é aquele que ficava pedindo esmola?” 9Uns diziam: “Sim, é ele!” Outros afirmavam: “Não é ele, mas alguém parecido com ele”.
Ele, porém, dizia: “Sou eu mesmo!”
13Levaram então aos fariseus o homem que tinha sido cego. 14Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego. 15Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha recuperado a vista. Respondeu-lhes: “Colocou lama sobre os meus olhos, fui lavar-me e agora vejo!”
16Disseram, então, alguns dos fariseus: “Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado”. Mas outros diziam: “Como pode um pecador fazer tais sinais?”
17E havia divergência entre eles. Perguntaram outra vez ao cego: “E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?” Respondeu: “É um profeta”.
34Os fariseus disseram-lhe: “Tu nasceste todo em pecado e estás nos ensinando?” E expulsaram-no da comunidade.
35Jesus soube que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?” 36Respondeu ele: “Quem é, Senhor, para que eu creia nele?” 37Jesus disse: “Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo”. Exclamou ele: 38“Eu creio, Senhor!” E prostrou-se diante de Jesus.

Já vimos, na semana passada, que o Evangelho segundo João procura apresentar Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. Também vimos que, no chamado “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), o autor apresenta – recorrendo aos “sinais” da água (cf. Jo 4,1-5,47), do pão (cf. Jo 6,1-7,53), da luz (cf. Jo 8,12-9,41), do pastor (cf. Jo 10,1-42) e da vida (cf. Jo 11,1-56) – um conjunto de catequeses sobre a ação criadora do Messias.
O nosso texto é, exatamente, a terceira catequese (a da luz) do “Livro dos Sinais”: através do “sinal” da “luz”, o autor vai descrever a ação criadora e vivificadora de Jesus. A catequese sobre a “luz” é colocada no contexto da “Festa de Sukkot” (a festa das colheitas); um dos ritos mais populares dessa festa era, exatamente, a iluminação dos quatro grandes candelabros do átrio das mulheres, no Templo de Jerusalém.
No centro do quadro aparece-nos (além de Jesus) um cego. Os “cegos” faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas – pela teologia oficial – como resultado do pecado (os rabbis da época chegavam a discutir de onde vinha o pecado de alguém que nascia com uma deficiência: se o defeito era o resultado de um pecado dos pais, ou se era o resultado de um pecado cometido pela criança no ventre da mãe).
Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimónias religiosas no Templo.
O nosso texto não é uma reportagem jornalística sobre a cura de um cego; mas é uma catequese, na qual se apresenta Jesus como a “luz” que veio iluminar o caminho dos homens. O “cego” da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na escuridão, privados da “luz”, prisioneiros dessas cadeias que os impedem de chegar à plenitude da vida. A reflexão apresenta-se em vários quadros.
No primeiro quadro (vers. 2-5), Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”. Jesus e os discípulos estão diante de um cego de nascença. De acordo com a teologia da época, o sofrimento era sempre resultado do pecado; por isso, os discípulos estavam preocupados em saber se foi o cego que pecou ou se foram os seus pais. Jesus desmonta esta perspectiva e nega qualquer relação entre pecado e sofrimento. No entanto, a ocasião é propícia para ir mais além; e Jesus aproveita-a para mostrar que a missão que o Pai lhe confiou é ser “a luz do mundo” e encher de “luz” a vida dos que vivem nas trevas.
No segundo quadro (vers. 6-7), Jesus passa das palavras aos atos e prepara-se para dar a “luz” ao cego. Começa por cuspir no chão, fazer lodo com a saliva e ungir com esse lodo os olhos do cego. O gesto de fazer lodo reproduz, evidentemente, o gesto criador de Deus de Gn 2,7 (quando Deus amassou o barro e modelou o homem). A saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia vital (equivale ao sopro de Deus, que deu vida a Adão – cf. Gn 2,7). Assim, Jesus juntou ao barro a sua própria energia vital, repetindo o gesto criador de Deus. A missão de Jesus é criar um Homem Novo, animado pelo Espírito de Jesus.
No entanto, a cura não é imediata: requer-se a cooperação do enfermo. “Vai lavar-te na piscina de Siloé” – diz-lhe Jesus. A disponibilidade do cego em obedecer à ordem de Jesus é um elemento essencial na cura e sublinha a sua adesão à proposta que Jesus lhe faz. A referência ao banho na piscina do “enviado” (o autor deste texto tem o cuidado de explicar que Siloé significa “enviado”) é, evidentemente, uma alusão à água de Jesus (o enviado do Pai), essa água que torna os homens novos, livres das trevas/escravidão. A comunidade joânica pretenderá, certamente, fazer aqui uma catequese sobre o baptismo: quem quiser sair das trevas para viver na luz, como Homem Novo, tem de aceitar a água do baptismo – isto é, tem de optar por Jesus e acolher a proposta de vida que Ele oferece.
Depois, o autor do texto coloca em cena várias personagens; essas personagens vão assumir representar vários papéis e assumir atitudes diversas diante da cura do cego.
Os primeiros a ocupar a cena são os vizinhos e conhecidos do cego (vers. 8-12). A imagem do cego, dependente e inválido, transformado em homem livre e independente, leva os seus concidadãos a interrogar-se. Percebem que de Jesus vem o dom da vida em plenitude; talvez anseiem pelo encontro com Jesus, mas não se atrevem a dar o passo definitivo (ir ao encontro de Jesus) para ter acesso à “luz”. Representam aqueles que percebem a novidade da proposta que Jesus traz, que sabem que essa proposta é libertadora, mas que vivem na inércia, no comodismo e não estão dispostos a sair do seu “cantinho”, do seu mundo limitado, para ir ao encontro da “luz”.
Um outro grupo que aparece em cena é o dos fariseus (vers. 13-17). Eles sabem perfeitamente que Jesus oferece a “luz”; mas recusam-na liminarmente. Para eles, interessa continuar com o esquema das “trevas”. Representam aqueles que têm conhecimento da novidade de Jesus, mas não estão dispostos a acolhê-la. Sentem-se mais confortáveis nos seus esquemas de escravidão e autossuficiência e não estão dispostos a renunciar às “trevas”. Mais: opõem-se decididamente à “luz” que Jesus oferece e não aceitam que alguém queira sair da escravidão para a liberdade. Quando constatam que o homem curado por Jesus não está disposto a voltar atrás e a regressar aos esquemas de escravidão, expulsam-no da sinagoga: entre as “trevas” (que os dirigentes querem manter) e a “luz” (que Jesus oferece), não pode haver compromisso.
Depois, aparecem em cena os pais do cego (vers. 18-23). Eles limitam-se a constatar o acontecimento (o filho nasceu cego e agora vê), mas evitam comprometer-se. Na sua atitude, transparece o medo de quem é escravo e não tem coragem de passar das “trevas” para a “luz”. O texto explica, inclusive, que eles “tinham medo de ser expulsos da sinagoga”. A “sinagoga” designava o local do encontro da comunidade israelita; mas designava, também, a própria comunidade do Povo de Deus. Ser expulso da “sinagoga” significava a excomunhão, o risco de ser declarado herege e apóstata, de perder os pontos de referência comunitários, o cair na solidão, no ridículo, no descrédito e na marginalidade. Preferem a segurança da ordem estabelecida – embora injusta e opressora – do que os riscos da vida livre. Representam todos aqueles que, por medo, preferem continuar na escravidão, não provocar os dirigentes ou a opinião pública, do que correr o risco de aceitar a proposta transformadora de Jesus.
Finalmente, reparemos no “percurso” que o homem curado por Jesus faz. Antes de se encontrar com Jesus, é um homem prisioneiro das “trevas”, dependente e limitado. Depois, encontra-se com Jesus e recebe a “luz” (do encontro com Jesus resulta sempre uma proposta de vida nova para o homem). O relato descreve – com simplicidade, mas também de uma forma muito bela – a progressiva transformação que o homem vai sofrendo. Nos momentos imediatos à cura, ele não tem ainda grandes certezas (quando lhe perguntam por Jesus, responde: “não sei”; e quando lhe perguntam quem é Jesus, ele responde: “é um profeta”); mas a “luz” que agora brilha na sua vida vai-o amadurecendo progressivamente. Confrontado com os dirigentes e intimado a renegar a “luz” e a liberdade recebidas, ele torna-se, em dado momento, o homem das certezas, das convicções; argumenta com agilidade e inteligência, joga com a ironia, recusa-se a regressar à escravidão: mostra o homem adulto, maduro, livre, sem medo… É isso que a “luz” que Jesus oferece produz no homem. Finalmente, o texto descreve o estádio final dessa caminhada progressiva: a adesão plena a Jesus (vers. 35-38). Encontrando o ex-cego, Jesus convida-o a aderir ao “Filho do Homem” (“acreditas no Filho do Homem?” - vers. 35); a resposta do ex-cego é a adesão total: “creio, Senhor” (vers. 38). O título “Senhor” (“kyrios”) era o título com que a comunidade cristã primitiva designava Jesus, o Senhor glorioso. Diz, ainda, o texto, que o ex-cego se prostrou e adorou Jesus: adorar significa reconhecer Jesus como o projecto de Homem Novo que Deus apresenta aos homens, aderir a Ele e segui-l’O.
Neste percurso está simbolicamente representado o “caminho” do catecúmeno. O primeiro passo é o encontro com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a sua adesão à “luz” e vai amadurecendo a sua descoberta… Torna-se, progressivamente, um homem livre, sem medo, confiante; e esse “caminho” desemboca na adesão total a Jesus, no reconhecimento de que Ele é o Senhor que conduz a história e que tem uma proposta de vida para o homem… Depois disto, ao cristão nada mais interessa do que seguir Jesus.
A missão de Jesus é aqui apresentada como criação de um Homem Novo. Deus criou o homem para ser livre e feliz; mas o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, dominaram o coração do homem, prenderam-no num esquema de “cegueira” e frustraram o projeto de Deus. A missão de Jesus consistirá em destruir essa “cegueira”, libertar o homem e fazê-lo viver na “luz”. Trata-se de uma nova criação… Assim, da ação de Jesus irá nascer um Homem Novo, liberto do egoísmo e do pecado, vivendo na liberdade, a caminho da vida em plenitude.

ATUALIZAÇÃO

Considerar, na reflexão, as seguintes propostas:
• Nós, os crentes, não podemos fechar-nos num pessimismo estéril, decidir que o mundo “está perdido” e que à nossa volta só há escuridão… No entanto, também não podemos esconder a cabeça na areia e dizer que tudo está bem. Há, objetivamente, situações, instituições, valores e esquemas que mantêm o homem encerrado no seu egoísmo, fechado a Deus e aos outros, incapaz de se realizar plenamente. O que é que, no nosso mundo, gera escuridão, trevas, alienação, cegueira e morte? O que é que impede o homem de ser livre e de se realizar plenamente, conforme previa o projeto de Deus?
• A catequese que João nos propõe hoje garante-nos: a realização plena do homem continua a ser a prioridade de Deus. Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens e mostrou-lhes a luz libertadora: convidou-os a renunciar ao egoísmo e autossuficiência que geram “trevas”, sofrimento, escravidão e a fazerem da vida um dom, por amor. Aderir a esta proposta é viver na “luz”. Como é que eu me situo face ao desafio que, em Jesus, Deus me faz?
• O Evangelho deste domingo descreve várias formas de responder negativamente à “luz” libertadora que Jesus oferece. Há aqueles que se opõem decididamente à proposta de Jesus porque estão instalados na mentira e a “luz” de Jesus só os incomoda; há aqueles que têm medo de enfrentar as “bocas”, as críticas, que se deixam manipular pela opinião dominante, e que, por medo, preferem continuar escravos do que arriscar ser livres; há aqueles que, apesar de reconhecerem as vantagens da “luz”, deixam que o comodismo e a inércia os prendam numa vida de escravos… Eu identifico-me com algum destes grupos?
• O cego que escolhe a “luz” e que adere incondicionalmente a Jesus e à sua proposta libertadora é o modelo que nos é proposto. A Palavra de Deus convida-nos, neste tempo de Quaresma, a um processo de renovação que nos leve a deixar tudo o que nos escraviza, nos aliena, nos oprime – no fundo, tudo o que impede que brilhe em nós a “luz” de Deus e que impede a nossa plena realização. Para que a celebração da ressurreição – na manhã de Páscoa – signifique algo, é preciso realizarmos esta caminhada quaresmal e renascermos, feitos Homens Novos, que vivem na “luz” e que dão testemunho da “luz”. O que é que eu posso fazer para que isso aconteça?
• Receber a “luz” que Cristo oferece é, também, acender a “luz” da esperança no mundo. O que é que eu faço para eliminar as “trevas” que geram sofrimento, injustiça, mentira e alienação? A “luz” de Cristo que os padrinhos me passaram no dia em que fui batizado brilha em mim e ilumina o mundo?