A liturgia deste último Domingo da Quaresma convida-nos a contemplar
esse Deus que, por amor, desceu ao nosso encontro, partilhou a nossa
humanidade, fez-Se servo dos homens, deixou-Se matar para que o egoísmo e
o pecado fossem vencidos. A cruz (que a liturgia deste domingo coloca
no horizonte próximo de Jesus) apresenta-nos a lição suprema, o último
passo desse caminho de vida nova que, em Jesus, Deus nos propõe: a
doação da vida por amor.
A primeira leitura apresenta-nos um profeta anônimo, chamado por Deus a
testemunhar no meio das nações a Palavra da salvação. Apesar do
sofrimento e da perseguição, o profeta confiou em Deus e concretizou,
com teimosa fidelidade, os projetos de Deus. Os primeiros cristãos
viram neste “servo” a figura de Jesus.
A segunda leitura apresenta-nos o exemplo de Cristo. Ele prescindiu do
orgulho e da arrogância, para escolher a obediência ao Pai e o serviço
aos homens, até ao dom da vida. É esse mesmo caminho de vida que a
Palavra de Deus nos propõe.
O Evangelho convida-nos a contemplar a paixão e morte de Jesus: é o
momento supremo de uma vida feita dom e serviço, a fim de libertar os
homens de tudo aquilo que gera egoísmo e escravidão. Na cruz, revela-se o
amor de Deus – esse amor que não guarda nada para si, mas que se faz
dom total.
LEITURA I – Is 50, 4-7
Leitura do Livro de Isaías
O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar, como escutam os discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio, e, por isso, não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido.
AMBIENTE
No livro do Deutero-Isaías (Is 40-55), encontramos quatro poemas que se
destacam do resto do texto (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11;
52,13-53,12). Apresentam-nos uma figura enigmática de um “servo de
Jahwéh”, que recebeu de Deus uma missão. Essa missão tem a ver com a
Palavra de Deus e tem caráter universal; concretiza-se no sofrimento,
na dor e no abandono incondicional à Palavra e aos projetos de Deus.
Apesar de a missão terminar num aparente insucesso, a dor do profeta não
foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; do seu sofrimento
resulta o perdão para o pecado do Povo. Deus aprecia o sacrifício do
profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o
triunfar dos seus detratores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por
causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho
da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É
uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado,
esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras
nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens
históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas,
de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no
entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra
iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Jahwéh”.
MENSAGEM
O texto dá a palavra a um personagem anônimo, que fala do seu chamamento
por Deus para a missão. Ele não se intitula “profeta”; porém, narra a
sua vocação com os elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.
Em primeiro lugar, a missão que este “profeta” recebe de Deus tem
claramente a ver com o anúncio da Palavra. O profeta é o homem da
Palavra, através de quem Deus fala; a proposta de redenção que Deus faz a
todos aqueles que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra
profética. O profeta é inteiramente modelado por Deus e não opõe
resistência nem ao chamamento, nem à Palavra que Deus lhe confia; mas
tem de estar, continuamente, numa atitude de escuta de Deus, para que
possa depois apresentar – com fidelidade – essa Palavra de Deus para os
homens.
Em segundo lugar, a missão profética concretiza-se no sofrimento e na
dor. É um tema sobejamente conhecido da literatura profética: o anúncio
das propostas de Deus provoca resistências que, para o profeta, se
consubstanciam, quase sempre, em dor e perseguição. No entanto, o
profeta não se demite: a paixão pela Palavra sobrepõe-se ao sofrimento.
Em terceiro lugar, vem a expressão de confiança no Senhor, que não
abandona aqueles a quem chama. A certeza de que não está só, mas de que
tem a força de Deus, torna o profeta mais forte do que a dor, o
sofrimento, a perseguição. Por isso, o profeta “não será confundido”.
ATUALIZAÇÃO
• Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Jahwéh”; no entanto,
os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para
interpretar o mistério de Jesus: ele é a Palavra de Deus feita carne,
que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A
vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da
vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida
deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera vida
nova.
• Jesus, o “servo” sofredor que faz da sua vida um dom por amor, mostra
aos seus seguidores o caminho: a vida, quando é posta ao serviço da
libertação dos pobres e dos oprimidos, não é perdida mesmo que pareça,
em termos humanos, fracassada e sem sentido. Temos a coragem de fazer da
nossa vida uma entrega radical ao projecto de Deus e à libertação dos
nossos irmãos? O que é que ainda entrava a nossa aceitação de uma opção
deste tipo? Temos consciência de que, ao escolher este caminho, estamos a
gerar vida nova, para nós e para os nossos irmãos?
• Temos consciência de que a nossa missão profética passa por sermos
Palavra viva de Deus? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso
testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração
dos homens?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)
Refrão: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?
Todos os que me vêem escarnecem de mim, estendem os meus lábios e meneiam a cabeça:
«Confiou no Senhor, Ele que o livre, Ele que o salve, se é meu amigo».
Matilhas de cães me rodearam, cercou-me um bando de malfeitores.
Trespassaram as minhas mãos e os meus pés, posso contar todos os meus ossos.
Repartiram entre si as minhas vestes e deitaram sortes sobre a minha túnica.
Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim, sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me.
Hei-de falar do vosso nome aos meus irmãos, hei-de louvar-Vos no meio da assembleia.
Vós, que temeis o Senhor, louvai-O, glorificai-O, vós todos os filhos de Jacob, reverenciai-O, vós todos os filhos de Israel.
LEITURA II – Filip 2, 6-11
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Filipenses
Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.
AMBIENTE
A cidade de Filipos era uma cidade próspera, com uma população
constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército.
Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes
das províncias locais e dependia diretamente do imperador; gozava, por
isso, dos mesmos privilégios das cidades de Itália. A comunidade cristã,
fundada por Paulo, era uma comunidade entusiasta, generosa,
comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da
Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2
Cor 8,1-5), por quem Paulo nutria um afeto especial. Apesar destes
sinais positivos, não era, no entanto, uma comunidade perfeita… O
desprendimento, a humildade, a simplicidade, não eram valores demasiado
apreciados entre os altivos patrícios que compunham a comunidade.
É neste enquadramento que podemos situar o texto que esta leitura nos
apresenta. Paulo convida os filipenses a encarnar os valores que
marcaram a trajetória existencial de Cristo; para isso, utiliza um hino
pré-paulino, recitado nas celebrações litúrgicas cristãs: nesse hino,
ele expõe aos cristãos de Filipos o exemplo de Cristo.
MENSAGEM
Cristo Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim – constitui o
motivo do hino. Dado que os Filipenses são cristãos – quer dizer, dado
que Cristo é o protótipo a cuja imagem estão configurados – têm a
iniludível obrigação de comportar-se como Cristo. Como é o exemplo de
Cristo?
O hino começa por aludir subtilmente ao contraste entre Adão (o homem
que reivindicou ser como Deus e lhe desobedeceu – cf. Gn 3,5.22) e
Cristo (o Homem Novo que, ao orgulho e revolta de Adão, responde com a
humildade e a obediência ao Pai). A atitude de Adão trouxe fracasso e
morte; a atitude de Jesus trouxe exaltação e vida.
Em traços precisos, o hino define o “despojamento” (“kenosis”) de
Cristo: Ele não afirmou com arrogância e orgulho a sua condição divina,
mas aceitou fazer-Se homem, assumindo com humildade a condição humana,
para servir, para dar a vida, para revelar totalmente aos homens o ser e
o amor do Pai. Não deixou de ser Deus; mas aceitou descer até aos
homens, fazer-Se servidor dos homens, para garantir vida nova para os
homens. Esse “abaixamento” assumiu mesmo foros de escândalo: Jesus
aceitou uma morte infamante – a morte de cruz – para nos ensinar a
suprema lição do serviço, do amor radical, da entrega total da vida.
No entanto, essa entrega completa ao plano do Pai não foi uma perda nem
um fracasso: a obediência e entrega de Cristo aos projetos do Pai
resultaram em ressurreição e glória. Em consequência da sua obediência,
do seu amor, da sua entrega, Deus fez d’Ele o “Kyrios” (“Senhor” – nome
que, no Antigo Testamento, substituía o nome impronunciável de Deus); e a
humanidade inteira (“os céus, a terra e os infernos”) reconhece Jesus
como “o Senhor” que reina sobre toda a terra e que preside à história.
É óbvio o apelo à humildade, ao desprendimento, ao dom da vida, que
Paulo aqui faz aos Filipenses e a todos os crentes: o cristão deve ter
como exemplo esse Cristo, servo sofredor e humilde, que fez da sua vida
um dom a todos. Esse caminho não levará ao aniquilamento, mas à glória, à
vida plena.
ATUALIZAÇÃO
• Os valores que marcaram a existência de Cristo continuam a não ser
demasiado apreciados no séc. XXI. De acordo com os critérios que
presidem à construção do nosso mundo, os grandes “ganhadores” não são os
que põem a sua vida ao serviço dos outros, com humildade e
simplicidade, mas são os que enfrentam o mundo com agressividade, com
auto-suficiência e fazem por ser os melhores, mesmo que isso signifique
não olhar a meios para passar à frente dos outros. Como pode um cristão
(obrigado a viver inserido neste mundo e a ser competitivo) conviver com
estes valores?
• Paulo tem consciência de que está a pedir aos seus cristãos algo
realmente difícil; mas é algo que é fundamental, à luz do exemplo de
Cristo. Também a nós é pedido, nestes últimos dias antes da Páscoa, um
passo em frente neste difícil caminho da humildade, do serviço, do amor:
será possível que, também aqui, sejamos as testemunhas da lógica de
Deus?
• Os acontecimentos que, nesta semana, vamos celebrar garantem-nos que o
caminho do dom da vida não é um caminho de “perdedores” e fracassados: o
caminho do dom da vida conduz ao sepulcro vazio da manhã de Páscoa, à
ressurreição. É um caminho que garante a vitória e a vida plena.
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Filip 2, 8-9
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
7. A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Cristo obedeceu até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes.
EVANGELHO – Mc 14, 1 - 15,47
N Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
N Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos Ázimos e os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam maneira de se apoderarem de Jesus à traição para Lhe darem a morte.
Mas diziam:
R «Durante a festa, não, para que não haja algum tumulto entre o povo».
N Jesus encontrava-Se em Betânia, em casa de Simão o Leproso, e, estando à mesa, veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro com perfume de nardo puro de alto preço.
Partiu o vaso de alabastro e derramou-o sobre a cabeça de Jesus.
Alguns indignaram-se e diziam entre si:
R «Para que foi esse desperdício de perfume?
Podia vender-se por mais de duzentos denários e dar o dinheiro aos pobres».
N E censuravam a mulher com aspereza.
Mas Jesus disse:
J «Deixai-a. Porque estais a importuná-la?
Ela fez uma boa acção para comigo.
Na verdade, sempre tereis os pobres convosco e, quando quiserdes, podereis fazer-lhes bem; Mas a Mim, nem sempre Me tereis.
Ela fez o que estava ao seu alcance:
ungiu de antemão o meu corpo para a sepultura.
Em verdade vos digo:
Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro, dir-se-á também em sua memória, o que ela fez».
N Então, Judas Iscariotes, um dos Doze, foi ter com os príncipes dos sacerdotes para lhes entregar Jesus.
Quando o ouviram, alegraram-se e prometeram dar-lhe dinheiro.
E ele procurava uma oportunidade para entregar Jesus.
N No primeiro dia dos Ázimos, em que se imolava o cordeiro pascal, os discípulos perguntaram a Jesus:
R «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?»
N Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes:
J «Ide à cidade.
Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água.
Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: ‘O Mestre pergunta: Onde está a sala, em que hei-de comer a Páscoa com os meus discípulos?’
Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior, alcatifada e pronta.
Preparai-nos lá o que é preciso».
N Os discípulos partiram e foram à cidade.
Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito
e prepararam a Páscoa.
Ao cair da tarde, chegou Jesus com os Doze.
Enquanto estavam à mesa e comiam, Jesus disse:
J «Em verdade vos digo:
Um de vós, que está comigo à mesa, há-de entregar-Me».
N Eles começaram a entristecer-se e a dizer um após outro:
R «Serei eu?»
N Jesus respondeu-lhes:
J «É um dos Doze, que mete comigo a mão no prato.
O Filho do homem vai partir, como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por quem o Filho do homem vai ser traído!
Teria sido melhor para esse homem não ter nascido».
N Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos discípulos e disse:
J «Tomai: isto é o meu Corpo».
N Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho.
E todos beberam dele.
Disse Jesus:
J «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens.
Em verdade vos digo:
Não voltarei a beber do fruto da videira, até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus».
N Cantaram os salmos e saíram para o Monte das Oliveiras.
N Disse-lhes Jesus:
J «Todos vós Me abandonareis, como está escrito:
‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’.
Mas depois de ressuscitar,
irei à vossa frente para a Galileia».
N Disse-Lhe Pedro:
R «Embora todos te abandonem, eu não».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Em verdade te digo:
Hoje, esta mesma noite, antes do galo cantar duas vezes, três vezes Me negarás».
N Mas Pedro continuava a insistir:
R «Ainda que tenha de morrer contigo, não Te negarei».
N E todos afirmaram o mesmo.
Entretanto, chegaram a uma propriedade chamada Getsémani
e Jesus disse aos seus discípulos:
J «Ficai aqui, enquanto Eu vou orar».
N Tomou consigo Pedro, Tiago e João e começou a sentir pavor e angústia.
Disse-lhes então:
J «A minha alma está numa tristeza de morte.
Ficai aqui e vigiai».
N Adiantando-Se um pouco, caiu por terra
e orou para que, se fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora.
Jesus dizia:
J «Abba, Pai, tudo Te é possível:
afasta de Mim este cálice.
Contudo, não se faça o que Eu quero, mas o que Tu queres».
N Depois, foi ter com os discípulos, encontrando-os dormindo
e disse a Pedro:
J «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora?
Vigiai e orai, para não entrardes em tentação.
O espírito está pronto, mas a carne é fraca».
N Afastou-Se de novo e orou, dizendo as mesmas palavras.
Voltou novamente e encontrou-os dormindo, porque tinham os olhos pesados e não sabiam que responder.
Jesus voltou pela terceira vez e disse-lhes:
J «Dormi agora e descansai...
Chegou a hora:
o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores.
Levantai-vos. Vamos.
Já se aproxima aquele que Me vai entregar».
N Ainda Jesus estava a falar, quando apareceu Judas, um dos Doze, e com ele uma grande multidão, com espadas e varapaus, enviada pelos príncipes dos sacerdotes, pelos escribas e os anciãos.
O traidor tinha-lhes dado este sinal:
«Aquele que eu beijar, é esse mesmo.
Prendei-O e levai-O bem seguro».
Logo que chegou, aproximou-se de Jesus e beijou-O, dizendo:
R «Mestre».
N Então deitaram-Lhe as mãos e prenderam-n’O.
Um dos presentes puxou da espada
e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha.
Jesus tomou a palavra e disse-lhes:
J «Vós saístes com espadas e varapaus para Me prender, como se fosse um salteador.
Todos os dias Eu estava no meio de vós, a ensinar no templo,
e não Me prendestes!
Mas é para se cumprirem as Escrituras».
N Então os discípulos deixaram-n’O e fugiram todos.
Seguiu-O um jovem, envolto apenas num lençol.
Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu nu.
N Levaram então Jesus à presença do sumo sacerdote, onde se reuniram todos os príncipes dos sacerdotes, os anciãos e os escribas.
Pedro, que O seguira de longe, até ao interior do palácio do sumo sacerdote, estava sentado com os guardas, a aquecer-se ao lume.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam um testemunho contra Jesus para Lhe dar a morte, mas não o encontravam.
Muitos testemunhavam falsamente contra Ele, mas os seus depoimentos não eram concordes.
Levantaram-se então alguns, para proferir contra Ele este falso testemunho:
R «Ouvimo-l’O dizer:
‘Destruirei este templo feito pelos homens e em três dias construirei outro que não será feito pelos homens’».
N Mas nem assim o depoimento deles era concorde.
Então o sumo sacerdote levantou-se no meio de todos e perguntou a Jesus:
R «Não respondes nada ao que eles depõem contra Ti?»
N Mas Jesus continuava calado e nada respondeu.
O sumo sacerdote voltou a interrogá-l’O: R «És Tu o Messias, Filho do Deus Bendito?»
N Jesus respondeu: J «Eu Sou. E vós vereis o Filho do homem sentado à direita do Todo-poderoso vir sobre as nuvens do céu».
N O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse:
R «Que necessidade temos ainda de testemunhas?
Ouvistes a blasfémia. Que vos parece?»
N Todos sentenciaram que Jesus era réu de morte.
Depois, alguns começaram a cuspir-Lhe, a tapar-Lhe o rosto com um véu e a dar-Lhe punhadas, dizendo: R «Adivinha».
N E os guardas davam-Lhe bofetadas.
N Pedro estava em baixo, no pátio, quando chegou uma das criadas do sumo sacerdote.
Ao vê-lo a aquecer-se, olhou-o de frente e disse-lhe: R «Tu também estavas com Jesus, o Nazareno».
N Mas ele negou: R «Não sei nem entendo o que dizes».
N Depois saiu para o vestíbulo e o galo cantou.
A criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos presentes: R «Este é um deles».
N Mas ele negou segunda vez.
Pouco depois, os presentes diziam também a Pedro: R «Na verdade, tu és deles, pois também és galileu».
N Mas ele começou a dizer imprecações e a jurar: R «Não conheço esse homem de quem falais».
N E logo o galo cantou pela segunda vez.
Então Pedro lembrou-se do que Jesus lhe tinha dito: «Antes do galo cantar duas vezes, três vezes Me negarás».
E desatou a chorar.
N Logo de manhã, os príncipes dos sacerdotes reuniram-se em conselho, com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio.
Depois de terem manietado Jesus, foram entregá-l’O a Pilatos.
Pilatos perguntou-Lhe: R «Tu és o Rei dos judeus?»
N Jesus respondeu: J «É como dizes».
N E os príncipes dos sacerdotes faziam muitas acusações contra Ele.
Pilatos interrogou-O de novo: R «Não respondes nada? Vê de quantas coisas Te acusam».
N Mas Jesus nada respondeu, de modo que Pilatos estava admirado.
N Pela festa da Páscoa, Pilatos costumava soltar-lhes um preso à sua escolha.
Havia um, chamado Barrabás, preso com os insurretos, que numa revolta tinham cometido um assassínio.
A multidão, subindo, começou a pedir o que era costume conceder-lhes.
Pilatos respondeu: R «Quereis que vos solte o Rei dos judeus?»
N Ele sabia que os príncipes dos sacerdotes O tinham entregado por inveja.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes incitaram a multidão a pedir que lhes soltasse antes Barrabás.
Pilatos, tomando de novo a palavra, perguntou-lhes: R «Então, que hei-de fazer d’Aquele que chamais o Rei dos judeus?»
N Eles gritaram de novo: R «Crucifica-O!».
N Pilatos insistiu: R «Que mal fez Ele?»
N Mas eles gritaram ainda mais: R «Crucifica-O!».
N Então Pilatos, querendo contentar a multidão, soltou-lhes Barrabás e, depois de ter mandado açoitar Jesus, entregou-O para ser crucificado.
Os soldados levaram-n’O para dentro do palácio, que era o pretório,
e convocaram toda a coorte.
Revestiram-n’O com um mando de púrpura e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos que haviam tecido.
Depois começaram a saudá-l’O: R «Salvé, Rei dos judeus!»
N Batiam-lhe na cabeça com uma cana, cuspiam-Lhe e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante d’Ele.
Depois de O terem escarnecido, tiraram-Lhe o manto de púrpura
e vestiram-Lhe as suas roupas.
Em seguida levaram-n’O dali para O crucificarem.
N Requisitaram, para Lhe levar a cruz, um homem que passava, vindo do campo, Simão de Cirene, pai de Alexandre e Rufo.
E levaram Jesus ao lugar do Gólgota, quer dizer, lugar do Calvário.
Queriam dar-Lhe vinho misturado com mirra, mas Ele não o quis beber.
Depois crucificaram-n’O.
E repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte, para verem o que levaria cada um.
Eram nove horas da manhã quando O crucificaram.
O letreiro que indicava a causa da condenação tinha escrito: «Rei dos Judeus».
Crucificaram com Ele dois salteadores, um à direita e outro à esquerda.
Os que passavam insultavam-n’O e abanavam a cabeça, dizendo: R «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-Te a Ti mesmo e desce da cruz».
N Os príncipes dos sacerdotes e os escribas troçavam uns com os outros, dizendo: R «Salvou os outros e não pode salvar-se a Si mesmo!
Esse Messias, o Rei de Israel, desça agora da cruz, para nós vermos e acreditarmos».
N Até os que estavam crucificados com ele o injuriavam.
Quando chegou o meio-dia, as trevas envolveram toda a terra até às três horas da tarde.
E às três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: J «Eloí, Eloí, lamá sabachtháni?»
N que quer dizer: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?»
N Alguns dos presentes, ouvindo isto, disseram: R «Está a chamar por Elias».
N Alguém correu a embeber uma esponja em vinagre e, pondo-a na ponta duma cana, deu-Lhe a beber e disse: R «Deixa ver se Elias vem tirá-l’O dali».
N Então Jesus, soltando um grande brado, expirou.
N O véu do templo rasgou-se em duas partes de alto a baixo.
O centurião que estava em frente de Jesus, ao vê-l’O expirar daquela maneira, exclamou: R «Na verdade, este homem era Filho de Deus».
N Estavam também ali umas mulheres a observar de longe, entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé, que acompanhavam e serviam Jesus, quando estava na Galileia, e muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém.
Ao cair da tarde – visto ser a Preparação, isto é, a véspera do sábado – José de Arimateia, ilustre membro do Sinédrio, que também esperava o reino de Deus, foi corajosamente à presença de Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus.
Pilatos ficou admirado de Ele já estar morto e, mandando chamar o centurião, ordenou que o corpo fosse entregue e José.
José comprou um lençol, desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol; depois depositou-O num sepulcro escavado na rocha e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro.
Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José,observavam onde Jesus tinha sido depositado.
AMBIENTE
Marcos procura, no seu Evangelho, apresentar a figura de Jesus de acordo
com duas grandes coordenadas. Uma, desenvolvida na primeira parte do
Evangelho, apresenta Jesus como o Messias, enviado por Deus aos homens
para lhes propor o Reino (cf. Mc 1,14-8,30); outra, tratada na segunda
parte do Evangelho, apresenta Jesus como o Filho de Deus, que para
cumprir a missão que o Pai lhe confiou tem de passar pela morte, mas a
quem Deus ressuscitará (cf. Mc 8,31-16,8).
A leitura que hoje nos é proposta é o relato da paixão de Jesus. O
relato, inegavelmente fundamentado em acontecimentos concretos, não é
uma simples reportagem jornalística da condenação à morte de um
inocente; mas é, sobretudo, uma catequese destinada a apresentar Jesus
como o Filho de Deus que aceita cumprir o projecto do Pai, mesmo quando
esse projeto passa por um destino de cruz. Marcos pretende que os
crentes a quem a catequese se destina concluam, como o centurião romano
que testemunha a paixão e morte de Jesus: “na verdade, este homem era
Filho de Deus” (Mc 15,39). Fica assim demonstrada a tese que Marcos,
desde o início do Evangelho (cf. Mc 1,1), se propôs apresentar: Jesus, o
Messias, é o Filho de Deus.
Betânia, o cenáculo, o Getsemani, o palácio do sumo-sacerdote, o
pretório romano, o Gólgota e o túmulo são os cenários onde se desenrola a
ação e onde vai sendo demonstrada a filiação divina de Jesus.
MENSAGEM
A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto daquilo que foi a sua
vida. Desde cedo, Jesus apercebeu-Se de que o Pai O chamava a uma
missão: anunciar esse mundo novo, de justiça, de paz e de amor para
todos os homens. Para concretizar este projeto, Jesus passou pelos
caminhos da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a proximidade de um
mundo novo, de vida, de liberdade, de paz e de amor para todos. Ensinou
que Deus era amor e que não excluía ninguém, nem mesmo os pecadores;
ensinou que os leprosos, os paralíticos, os cegos não deviam ser
marginalizados, pois não eram amaldiçoados por Deus; ensinou que eram os
pobres e os excluídos os preferidos de Deus e aqueles que tinham um
coração mais disponível para acolher o “Reino”; e avisou os “ricos” (os
poderosos, os instalados) de que o egoísmo, o orgulho, a
auto-suficiência, o fechamento só podiam conduzir à morte.
O projeto libertador de Jesus entrou em choque – como era inevitável –
com a atmosfera de egoísmo, de má vontade, de opressão que dominava o
mundo. As autoridades políticas e religiosas sentiram-se incomodadas com
a denúncia de Jesus: não estavam dispostas a renunciar a esses
mecanismos que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios;
não estavam dispostas a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a
conversão proposta por Jesus. Por isso, prenderam Jesus, julgaram-n’O,
condenaram-n’O e pregaram-n’O numa cruz.
A morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do “Reino”: resultou
das tensões e resistências que a proposta do “Reino” provocou entre os
que dominavam o mundo.
Podemos, também, dizer que a morte de Jesus é o culminar da sua vida; é a
afirmação última, porém mais radical e mais verdadeira (porque marcada
com sangue), daquilo que Jesus pregou com palavras e com gestos: o amor,
o dom total, o serviço.
Na cruz, vemos aparecer o Homem Novo, o protótipo do homem que ama
radicalmente e que faz da sua vida um dom para todos. Porque ama, este
Homem Novo vai assumir como missão a luta contra o pecado – isto é,
contra todas as causas objetivas que geram medo, injustiça, sofrimento,
exploração e morte. Assim, a cruz mantém o dinamismo de um mundo novo –
o dinamismo do “Reino”.
No relato da Paixão na versão de Marcos, não difere substancialmente das
versões de Mateus e de Lucas; no entanto, há algumas coordenadas que
Marcos sublinha especialmente. De entre elas, destacamos:
1. Ao longo de todo o processo, Jesus manifesta uma grande serenidade,
uma grande dignidade e uma total conformação com aquilo que se está a
passar. Não se trata de passividade ou de inconsciência, mas de
aceitação serena de um caminho que Ele sabe que passa pela cruz. Marcos
sugere, desta forma, que Jesus está perfeitamente conformado com o
projeto do Pai e que a sua vontade é cumprir fiel e integralmente o
plano de Deus, sem objecções ou resistências de qualquer espécie. Esta
“dignidade” de Jesus diante do processo que as autoridades religiosas e
políticas lhe movem é atestada em várias cenas:
Mateus e Lucas põem Jesus a interpelar diretamente Judas, quando este
o entrega no monte das Oliveiras (cf. Mt 26,50; Lc 22,48); mas na
narração de Marcos, Jesus mantém-se silencioso e cheio de dignidade
diante da traição do discípulo (cf. Mc 14,45-46), sem observações ou
recriminações.
Mateus põe Jesus a desautorizar Pedro quando este fere um servo do
sumo-sacerdote cortando-lhe uma orelha (cf. Mt 26,52) e, na narração de
Lucas, Jesus pede aos discípulos que deixem actuar os seus
sequestradores (cf. Lc 22,51); mas Marcos não apresenta, no mesmo
episódio, qualquer reacção de Jesus (cf. Mc 14,47). Marcos apenas
acrescenta que a prisão de Jesus acontece para que se cumpram as
Escrituras (cf. Mc 14,49).
No tribunal judaico, quando interrogado pelo sumo-sacerdote acerca das
acusações que lhe eram feitas, Jesus manteve um silêncio solene e digno
(cf. Mc 14,61a), recusando defender-Se das acusações dos seus
detratores.
2. Uma das teses fundamentais do Evangelho de Marcos é que Jesus é o
Filho de Deus (cf. Mc 1,1). Esta ideia também está bem presente, bem
sublinhada, bem desenvolvida, no relato da Paixão:
No jardim das Oliveiras, pouco antes de ser preso, Jesus dirige-Se a
Deus (cf. Mc 14,36) e chama-Lhe “Abba” (“paizinho”, “papá”). Esta
apalavra não era usada nas orações hebraicas como invocação de Deus; mas
era usada na intimidade familiar e expressava a grande proximidade
entre um filho e o seu pai. Para a psicologia judaica, teria sido um
sinal de irreverência usar uma palavra tão familiar para se dirigir a
Deus. O facto de Jesus usar esta palavra, revela a comunhão que havia
entre Jesus e o Pai e revela uma relação marcada pela simplicidade, pela
intimidade, pela total confiança.
Apesar do silêncio digno de Jesus durante o interrogatório no palácio
do sumo-sacerdote, há um momento em que Jesus não hesita em esclarecer
as coisas e em deixar clara a sua divindade. Quando o sumo-sacerdote Lhe
perguntou diretamente se Ele era “o Messias, o Filho de Deus bendito”
(Mc 14,61b), Jesus respondeu, sem subterfúgios: “Eu sou. E vereis o
Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso e vir sobre as nuvens
do céu” (Mc 14,62). A expressão “eu sou” (“egô eimi”) leva-nos ao nome
de Deus no Antigo Testamento (“eu sou aquele que sou” - Ex 3,14)… É, na
perspectiva do nosso evangelista, a afirmação inequívoca da dignidade
divina de Jesus. A referência ao “sentar-se à direita do Todo-poderoso” e
ao “vir sobre as nuvens” sublinha, também, a dignidade divina de Jesus,
que um dia aparecerá no lugar de Deus, como juiz soberano da humanidade
inteira. O sumo-sacerdote percebe perfeitamente o alcance da afirmação
de Jesus (Ele está a arrogar-Se a condição de Filho de Deus e a
prerrogativa divina por excelência – a de juiz universal); por isso,
manifesta a sua indignação rasgando as vestes e condenando Jesus como
blasfemo.
Marcos põe um centurião romano a dizer, junto da cruz de Jesus: “na
verdade, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Mais do que uma
afirmação histórica, esta frase deve ser vista como uma “profissão de
fé” que Marcos convida todos os crentes a fazer… Depois de tudo o que
foi testemunhado ao longo do Evangelho, em geral, e no relato da paixão,
em particular, a conclusão é óbvia: Jesus é mesmo o Filho de Deus que
veio ao encontro dos homens para lhes apresentar uma proposta de
salvação.
3. Apesar de Filho de Deus, o Jesus de Marcos é também homem e partilha da debilidade e da fragilidade da natureza humana:
No jardim das Oliveiras, pouco antes de ser preso, o Jesus de Marcos
sentiu “pavor” e “angústia” (cf. Mc 14,33), como acontece com qualquer
homem diante da morte violenta (Mateus é ligeiramente mais moderado e
fala da “tristeza” e da “angústia” de Jesus – cf. Mt 26,37; e Lucas
evita fazer qualquer referência a estes sentimentos que, sublinhando a
dimensão humana de Jesus, podiam lançar dúvidas sobre a sua divindade).
No momento da morte, Jesus reza: “meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste” (Mc 15,34). A “oração” de Jesus é a “oração” de um homem
que, como qualquer outro ser humano, experimenta a solidão, o abandono, o
sentimento de impotência, a sensação de falhanço… e do fundo do seu
drama, não compreende a ausência e a indiferença de Deus.
Não há dúvida: o Jesus apresentado por Marcos é, também, o homem/Jesus
que Se solidariza com os homens, que os acompanha nos seus sofrimentos,
que experimenta os seus dramas, fragilidades e debilidades.
4. Em todos os relatos da paixão, Jesus aparece a enfrentar sozinho
(abandonado pelas multidões e pelos próprios discípulos) o seu destino
de morte; mas Marcos sublinha especialmente a solidão de Jesus, nesses
momentos dramáticos:
Lucas põe um anjo a confortar Jesus, no jardim das Oliveiras (cf. Lc
22,43); Marcos não faz qualquer referência a esse momento de
“consolação.
Mateus conta que a mulher de Pilatos intercedeu por Jesus, pedindo ao
marido que não se intrometesse “no caso desse justo” (cf. Mt 27,19);
Marcos não refere nenhuma interferência deste tipo no processo de Jesus.
João, além de Pedro, refere a presença de um “outro discípulo
conhecido do sumo-sacerdote” no palácio de Anás (Jo 18,15); Marcos, para
além de Pedro (que negou Jesus três vezes), nunca refere a presença de
qualquer outro dos discípulos.
Lucas fala na presença de mulheres, ao longo do caminho do calvário,
que “batiam no peito e se lamentavam por Ele” (Lc 23,27-31); Marcos
também não conhece ninguém que se lamentasse durante o caminho
percorrido por Jesus em direcção ao lugar da execução (só após a morte
de Jesus, Marcos observa que algumas mulheres que O seguiam e serviam
quando estava na Galileia estavam ali a “contemplar de longe” – Mc
15,40-41).
Abandonado pelos discípulos, escarnecido pela multidão, condenado pelos
líderes, torturado pelos soldados, Jesus percorre na solidão, no
abandono, na indiferença de todos, o seu caminho de morte. O grito final
de Jesus na cruz (“meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” – Mc
15,34) pode ser o início do Salmo 22 (cf. Sal 22,2); mas é, também,
expressão dramática dessa solidão que Jesus sente à sua volta.
5. Só Marcos relata o episódio do jovem não identificado que seguia
Jesus envolto apenas num lençol e que fugiu nu quando os guardas o
tentaram agarrar (cf. Mc 14,51-52). Para alguns comentadores do
Evangelho segundo Marcos, o jovem em causa poderia ser o próprio
evangelista… Trata-se, no entanto, de uma simples conjectura.
É mais provável que o episódio tenha sido introduzido por Marcos para
representar plasticamente a atitude dos discípulos que, desiludidos e
amedrontados diante do fracasso do projeto em que acreditaram, largaram
tudo quando viram o seu líder ser preso e fugiram sem olhar para trás.
ATUALIZAÇÃO
• Celebrar a paixão e a morte de Jesus é abismar-se na contemplação de
um Deus a quem o amor tornou frágil… Por amor, Ele veio ao nosso
encontro, assumiu os nossos limites e fragilidades, experimentou a fome,
o sono, o cansaço, conheceu a mordedura das tentações, experimentou a
angústia e o pavor diante da morte; e, estendido no chão, esmagado
contra a terra, atraiçoado, abandonado, incompreendido, continuou a
amar. Desse amor resultou vida plena, que Ele quis repartir conosco
“até ao fim dos tempos”: esta é a mais espantosa história de amor que é
possível contar; ela é a boa notícia que enche de alegria o coração dos
crentes.
• Contemplar a cruz onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus
significa assumir a mesma atitude que Ele assumiu e solidarizar-Se com
aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os
que são explorados, os que são excluídos, os que são privados de
direitos e de dignidade… Olhar a cruz de Jesus significa denunciar tudo o
que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores,
práticas, ideologias; significa evitar que os homens continuem a
crucificar outros homens; significa aprender com Jesus a entregar a vida
por amor… Viver deste jeito pode conduzir à morte; mas o cristão sabe
que amar como Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não
pode vencer: o amor gera vida nova e introduz na nossa carne os
dinamismos da ressurreição.
• Um dos elementos mais destacados no relato marciano da paixão é a
forma como Jesus Se comporta ao longo de todo o processo que conduz à
sua morte… Ele nunca Se descontrola, nunca recua, nunca resiste, mas
mantêm-Se sempre sereno e digno, enfrentando o seu destino de cruz. Tal
não significa que Jesus seja um herói inconsciente a quem o sofrimento e
a morte não assustam, ou que Ele Se coloque na pele de um fraco que
desistiu de lutar e que aceita passivamente aquilo que os outros Lhe
impõem… A atitude de Jesus é a atitude de quem sabe que o Pai Lhe
confiou uma missão e está decidido a cumprir essa missão, custe o que
custar. Temos a mesma disponibilidade de Jesus para escutar os desafios
de Deus e a mesma determinação de Jesus em concretizar esses desafios no
mundo?
• A “angústia” e o “pavor” de Jesus diante da morte, o seu lamento pela
solidão e pelo abandono, tornam-n’O muito “humano”, muito próximo das
nossas debilidades e fragilidades. Dessa forma, é mais fácil
identificarmo-nos com Ele, confiar n’Ele, segui-l’O no seu caminho do
amor e da entrega. A humanidade de Jesus mostra-nos, também, que o
caminho da obediência ao Pai não é um caminho impossível, reservado a
super-heróis ou a deuses, mas é um caminho de homens frágeis, chamados
por Deus a percorrerem, com esforço, o caminho que conduz à vida
definitiva.
• A solidão de Jesus diante do sofrimento e da morte anuncia já a
solidão do discípulo que percorre o caminho da cruz. Quando o discípulo
procura cumprir o projeto de Deus, recusa os valores do mundo, enfrenta
as forças da opressão e da morte, recebe a indiferença e o desprezo do
mundo e tem de percorrer o seu caminho na mais dramática solidão. O
discípulo tem de saber, no entanto, que o caminho da cruz, apesar de
difícil, doloroso e solitário, não é um caminho de fracasso e de morte,
mas é um caminho de libertação e de vida plena.
• A figura do jovem que, no jardim das Oliveiras, deixou o lençol que o
cobria nas mãos dos soldados e fugiu pode ser figura do discípulo que,
amedrontado e desiludido, abandonou Jesus. Já alguma vez virámos as
costas a Jesus e ao seu projecto, seduzidos por outras propostas? O que é
que nos impede, por vezes, de nos mantermos fiéis ao projecto de Jesus?
Dehonianos