O sábado, quando se refere a Jesus, aparece sempre nos Evangelhos como
um dia de ação e, para os judeus, ele é o coração da lei de Israel, ou seja, é
preciso observar os mandamentos segundo a vontade de Deus. Eles entendiam as
leis e, como Deus descansou no sétimo dia, no sábado, todos devem também
descansar e dedicá-lo a adorar Aquele que tudo criou. “O sétimo dia é sábado;
repouso absoluto em honra do Senhor” (Ex. 31,15), porém, Jesus veio ensinar que
o importante é o homem e não a lei, e que o Amor precede as regras, portanto,
“o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc. 2,27).
A idéia central deste Evangelho não é exatamente quando ou o quê Jesus
ensina, mas como Ele ensina; a autoridade que Ele imprime em Suas palavras e
ações e o efeito que provoca nas pessoas, que vai da admiração ao espanto. É um
ensinamento novo porque liberta e ensina ao mesmo tempo.
Na Bíblia, todo profeta é um portador de Deus, mas Jesus vai além,
porque Ele é o próprio Deus que se fez presente no diálogo com o homem, e a Sua
autoridade está tanto nas Palavras como no poder da sua ação, por isso é
repetida nos dois versículos: 22 e 27.
O espírito impuro fala em nome do povo dependente e submisso que
reconhece Jesus e O revela como o Santo de Deus, enquanto a maioria, ou a
totalidade dos que ali se encontram, O desconhecem como tal.
As pessoas, espantadas, reconhecem a autoridade de Jesus porque
presenciam o demônio saindo do corpo do possesso e obediente a Ele, mas ainda
não compreendem quem é esse Homem e de onde vem tal autoridade, perguntando
entre si: “O que é isso?”
Jesus veio para destruir todas as raízes do mal e as suas manifestações.
Ele é a pessoa escolhida pelo Pai para libertar o Seu povo!
Ao escrever esta passagem, Marcos quer passar a confiança em Jesus como
um Mestre e alguém que cura os doentes. E é, exatamente, o fato das pessoas
ficarem assustadas e impressionadas com a autoridade de Jesus, que a Sua fama
se espalha por toda a Galiléia e, posteriormente, desperta em Herodes e em
outros tantos poderosos, o desejo de destruí-Lo por uma falsa ameaça de poder.
Jesus apresenta uma nova doutrina nos seus ensinamentos através de
várias passagens, como nas bem-aventuranças, no mandamento do amor, nos
conselhos evangélicos; e, com autoridade, expulsando os demônios com efeito
imediato.
A liturgia do 4º domingo do tempo comum garante-nos que Deus não se
conforma com os projetos de egoísmo e de morte que desfeiam o mundo e que
escravizam os homens e afirma que Ele encontra formas de vir ao encontro dos
seus filhos para lhes propor um projeto de liberdade e de vida plena.
A primeira leitura propõe-nos – a partir da figura de Moisés – uma
reflexão sobre a experiência profética. O profeta é alguém que Deus escolhe,
que Deus chama e que Deus envia para ser a sua “palavra” viva no meio dos
homens. Através dos profetas, Deus vem ao encontro dos homens e apresenta-lhes,
de forma bem perceptível, as suas propostas.
O Evangelho mostra como Jesus, o Filho de Deus, cumprindo o projeto
libertador do Pai, pela sua Palavra e pela sua ação, renova e transforma em
homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da
morte.
A segunda leitura convida os crentes a repensarem as suas prioridades e
a não deixarem que as realidades transitórias sejam impeditivas de um
verdadeiro compromisso com o serviço de Deus e dos irmãos.
1ª leitura – Dt. 18,15-20 – AMBIENTE
O livro do Deuteronômio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança”
descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.)
(cf. 2Re. 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte
(Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do
norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia:
há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto
(Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e
o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh
(portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo
de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão). A
finalidade fundamental dos catequistas deuteronomistas é levar o Povo de Deus a
um compromisso firme e exigente com a Lei de Deus, proclamada no Sinai. É um
convite firme ao Povo de Deus no sentido de abraçar a Aliança com Jahwéh e de
viver na fidelidade aos compromissos assumidos.
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos
de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da
sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra
aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a
sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt. 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt. 16,18-18,22). Em concreto, o nosso texto refere-se ao papel e ao significado do profetismo.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt. 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt. 16,18-18,22). Em concreto, o nosso texto refere-se ao papel e ao significado do profetismo.
O fenômeno profético não é exclusivo de Israel, mas é um fenômeno
relativamente conhecido entre os povos do Crescente Fértil. Entre os cananeus,
os movimentos proféticos apareciam com relativa frequência, normalmente ligados
à adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (habitualmente provocados
por instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). A multiplicidade de
experiências proféticas obriga, exatamente, a pôr o problema do discernimento
entre a verdadeira e a falsa profecia… O que é que caracteriza o verdadeiro
profeta? Quando é que um profeta fala, realmente, em nome de Deus? Este
problema devia pôr-se, particularmente, no Reino do Norte, na época de Acab
(874-853 a.C.) e de Jezabel, quando os profetas de Baal dominavam. As tradições
sobre o profeta Elias (cf. 1Re. 17 - 2Re 13,21) traçam esse quadro de confronto
diário entre a verdadeira e a falsa profecia.
O catequista deuteronomista refere-se, precisamente, a esta questão. Ele
apresenta, aqui, o quadro do verdadeiro profeta, oferecendo assim ao seu povo
os critérios para distinguir o verdadeiro do falso profeta.
MENSAGEM
Para os teólogos deuteronomistas, Moisés é o exemplo e o modelo do
verdadeiro profeta. O que é que isso significa?
Significa, em primeiro lugar, que na origem e no centro da vocação de
Moisés está Deus. Não foi Moisés que se candidatou à missão profética, por sua
iniciativa; não foi Moisés que conquistou, pelas suas ações ou pelas suas
qualidades, o “direito” a ser “profeta”. A iniciativa foi de Deus que, de forma
gratuita, o escolheu, o chamou e o enviou em missão. Se Moisés foi designado
para ser um sinal de Jahwéh, foi porque Deus assim o quis. A consagração do
“profeta” resulta de uma ação gratuita de Deus que, de acordo com critérios
muitas vezes ilógicos na perspectiva dos homens, escolhe aquela pessoa em
concreto, com as suas qualidades e defeitos, para o enviar aos seus irmãos.
Em segundo lugar, Moisés disse sempre e testemunhou sempre as palavras
que Deus lhe colocou na boca e que lhe ordenou que dissesse. A mensagem
transmitida não era a mensagem de Moisés, mas a mensagem de Deus. O verdadeiro
profeta não é aquele que transmite uma mensagem pessoal, ou que diz aquilo que
os homens gostam de ouvir; o verdadeiro profeta é aquele que, com coragem e
frontalidade, testemunha fielmente as propostas de Deus para os homens e para o
mundo.
As palavras do profeta devem ser cuidadosamente escutadas e acolhidas,
pois são palavras de Deus. O próprio Deus pedirá contas a quem fechar os
ouvidos e o coração aos desafios que Deus, através do profeta, apresenta ao
mundo.
ATUALIZAÇÃO
A vocação profética é uma vocação que surge por iniciativa de Deus.
Ninguém é profeta por escolha própria, mas porque Deus o chama. O profeta tem
de ter consciência, antes de mais, que é Deus quem está por detrás da sua
escolha e do seu envio. O profeta não pode assumir uma atitude de arrogância e
de auto-suficiência, mas tem de se sentir um instrumento humilde através do
qual Deus age no mundo.
Ao tomar consciência de que é apenas um instrumento através do qual Deus
age no meio da comunidade humana, o profeta descobre a necessidade de levar
muito a sério a missão que lhe foi confiada. O testemunho profético não é um
passatempo ou um compromisso para as horas vagas; está fora de causa o cruzar
os braços e deixar correr. Trata-se de um compromisso que deve ser assumido e
vivido com fidelidade absoluta e total empenho.
Se o profeta é designado para tornar presente no meio dos homens o
projeto de Deus, ele não pode utilizar a missão em benefício próprio; não deve
ceder à tentação de se vender aos poderes do mundo e pactuar com eles, a fim de
concretizar a sua sede de poder e de protagonismo, não pode “vender a alma ao
diabo” para daí tirar algum benefício, não deve utilizar o seu ministério para
se exibir, para ser admirado, para conseguir sucesso, para promover a sua
imagem e obter os aplausos das multidões. A missão profética tem de estar
sempre ao serviço de Deus, dos planos de Deus, da verdade de Deus, e não ao
serviço de esquemas pessoais, interesseiros e egoístas.
2ª leitura – 1Cor. 7,32-35 – AMBIENTE
A comunidade cristã de Corinto é uma comunidade tipicamente grega, que
mergulha as suas raízes numa cultura-ambiente marcada por grandes contradições.
As diversas escolas filosóficas que existiam na cidade (e um pouco por todo o
mundo grego) tinham perspectivas muito diversas sobre o sentido da vida e sobre
a forma de chegar à felicidade e à realização plena. As propostas de caminho
apresentadas por essas escolas eram, frequentemente, divergentes e mesmo opostas.
Um dos sectores onde se nota, particularmente, esse balançar entre
caminhos opostos, é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura
coríntia oscilava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era
normal numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde
reinava Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto
pela sexualidade (típico de certas tendências filosóficas influenciadas pela
filosofia platônica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não
casar um ideal absoluto).
O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes
exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do
valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1Cor. 7).
Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor
caminho a seguir – o do matrimônio ou o do celibato. Paulo responde à questão
no capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios (de onde é retirado o texto da
nossa segunda leitura). Paulo considera que não tem, a este propósito, “nenhum
preceito do Senhor”; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido
com o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve “romper
o vínculo” (1Cor. 7,25-28). Na perspectiva de Paulo, os cristãos não devem
esquecer que “o tempo é breve”, quando tiverem que fazer as suas opções –
nomeadamente, quando tiverem que fazer a sua escolha entre o casamento ou o
celibato.
MENSAGEM
Paulo reconhece que, quem não é casado tem mais tempo e disponibilidade
para se preocupar “com as coisas do Senhor” (v. 32b) e para agradar ao Senhor.
Quem é casado tem de atender às necessidades da família e de dividir a sua
atenção por uma série de realidades ligadas à vida do dia a dia; quem não é
casado pode responder aos desafios de Deus e gastar a sua vida ao serviço do
projecto de Deus sem quaisquer condicionalismos ou limitações.
Paulo estará, aqui, a desvalorizar a vida conjugal e a sexualidade?
Estará a dizer que o matrimônio é um caminho a evitar, ou é um caminho que
afaste de Deus? De modo nenhum. Para Paulo, o casamento é uma realidade
importante (ele considera que tanto o casamento como o celibato são dons de
Deus – cf. 1Cor. 7,7); mas não deixa de ser uma realidade terrena e efêmera,
que não deve, por isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz que o casamento seja
uma realidade má ou um caminho a evitar; contudo, é evidente, nas suas
palavras, uma certa predileção pelo celibato… Na sua perspectiva, o celibato
leva vantagem enquanto caminho que aponta para as realidades eternas: anuncia a
vida nova de ressuscitados que nos espera, ao mesmo tempo que facilita um
serviço mais eficaz a Deus e aos irmãos.
Na verdade, as palavras de Paulo fazem sentido em todos os tempos e
lugares; mas elas tornam-se mais lógicas se tivermos em conta o ambiente
escatológico que se respirava nas primeiras comunidades. Para os crentes a quem
a Primeira Carta aos Coríntios se destinava, a segunda e definitiva vinda de
Jesus estava iminente; era preciso, portanto, preocupar-se com as coisas de
Deus e relativizar as realidades transitórias e efêmeras, entre as quais se
contava o casamento.
ATUALIZAÇÃO
Por detrás das afirmações que Paulo faz no texto que nos é proposto como
segunda leitura, está a convicção de que as realidades terrenas são passageiras
e efêmeras e não devem, em nenhum caso, ser absolutizadas. Não se trata de
propor uma evasão do mundo e uma espiritualidade descarnada, insensível, alheia
ao amor, à partilha, à ternura; mas trata-se de avisar que as realidades desta
terra não podem ser o objetivo final e único da vida do homem. Esta reflexão
convida-nos a repensarmos as nossas prioridades, e a não ancorarmos a nossa
vida em realidades transitórias.
A virgindade consagrada, por amor do Reino, nem sempre é um valor
compreendido, à luz dos valores da nossa sociedade. Paulo, contudo, sublinha o
valor da virgindade como valor autêntico, pois anuncia o mundo novo que há-de
vir e disponibiliza para o serviço de Deus e dos irmãos. É sinal de
desprendimento, de doação, de disponibilidade e deve ser positivamente
valorizada. Aqueles que são chamados a viver dessa forma não são gente estéril
e infeliz, alheia às coisas bonitas da vida, mas são pessoas generosas, que
renunciaram a um bem (o matrimônio) em vista da sua entrega a Deus e aos
outros.
Evangelho – Mc. 1,21-28 – AMBIENTE
21Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar.
22Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei.
23Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: 24“Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”. 25Jesus o intimou: “Cala-te e sai dele!”
26Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu. 27E
todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: “O que é
isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos
espíritos maus, e eles obedecem!” 28E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia.
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc. 1,14-8,30) tem
como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que
proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que
geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de
Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que
aderem à sua proposta de salvação/libertação. Este percurso de descoberta do
Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc. 8,29-30, com a
confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a
confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de
Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.
O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta
caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Rodeado já
pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o
Messias-libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar uma
proposta de salvação.
A cena situa-nos em Cafarnaum (em hebraico Kfar Nahum, a “aldeia de
Naum”), a cidade situada na costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da Galileia).
De acordo com os Evangelhos Sinópticos, é aí que Jesus se vai instalar durante
o tempo do seu ministério na Galileia. Vários dos discípulos – Simão e seu
irmão André, Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.
MENSAGEM
É um sábado. A comunidade está reunida na sinagoga de Cafarnaum para a
liturgia sinagogal. Jesus, recém-chegado à cidade, entra na sinagoga – como
qualquer bom judeu – para participar na liturgia sabática. A celebração
comunitária começava, normalmente, com a “profissão de fé” (cf. Dt 6,4-9), a
que se seguiam orações, cânticos e duas leituras (uma da Torah e outra dos
Profetas); depois, vinha o comentário às leituras e as bênçãos. É provável que
Jesus tivesse sido convidado, nesse dia, para comentar as leituras feitas.
Fê-lo de uma forma original, diferente dos comentários que as pessoas estavam
habituadas a ouvir aos “escribas” (os estudiosos das Escrituras). As pessoas
ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus, “porque ensinava com autoridade
e não como os escribas” (v. 22). A referência à autoridade das palavras de
Jesus pretende sugerir que Ele vem de Deus e traz uma proposta que tem a marca
de Deus.
A “autoridade” que se revela nas palavras de Jesus manifesta-se, também,
em ações concretas (como se a “autoridade” das palavras tivesse de ser
caucionada pela própria ação). Na sequência das palavras ditas por Jesus e que
transmitem aos ouvintes um sinal inegável da presença de Deus, aparece em cena
“um homem com um espírito impuro”. Os judeus estavam convencidos que todas as
doenças eram provocadas por “espíritos maus” que se apropriavam dos homens e os
tornavam prisioneiros. As pessoas afetadas por esses males deixavam de cumprir
a Lei (as normas corretas de convivência social e religiosa) e ficavam numa
situação de “impureza” – isto é, afastadas de Deus e da comunidade. Na
perspectiva dos contemporâneos de Jesus, esses “espíritos maus” que afastavam
os homens da órbita de Deus tinham um poder absoluto, que os homens não podiam,
com as suas frágeis forças, ultrapassar. Acreditava-se que só Deus, com o seu
poder e autoridade absolutos, era capaz de vencer os “espíritos maus” e
devolver aos homens a vida e a liberdade perdidas.
Numa encenação com um singular poder evocador, Marcos põe o “espírito
mau” que domina “um homem” presente na sinagoga, a interpelar violentamente
Jesus. Sugere-se, dessa forma, que diante da proposta libertadora que Jesus
veio apresentar, em nome de Deus, os “espíritos maus” responsáveis pelas
cadeias que oprimem os homens ficam inquietos, pois sentem que o seu poder
sobre a humanidade chegou ao fim. A ação da cura do homem “com um espírito
impuro” constitui “a prova provada” de que Jesus traz uma proposta de
libertação que vem de Deus; pela ação de Jesus, Deus vem ao encontro do homem
para o salvar de tudo aquilo que o impede de ter vida em plenitude.
Para Marcos, este primeiro episódio é uma espécie de apresentação de um
programa de acção: Jesus veio ao encontro dos homens para os libertar de tudo
aquilo que os faz prisioneiros e lhes rouba a vida. A libertação que Deus quer
oferecer à humanidade está a acontecer. O “Reino de Deus” instalou-se no mundo.
Jesus, cumprindo o projeto libertador de Deus, pela sua Palavra e pela sua
ação, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros
do egoísmo, do pecado e da morte.
ATUALIZAÇÃO
O “homem com um espírito impuro” representa todos os homens e mulheres,
de todas as épocas, cujas vidas são controladas por esquemas de egoísmo, de
orgulho, de auto-suficiência, de medo, de exploração, de exclusão, de
injustiça, de ódio, de violência, de pecado. É essa humanidade prisioneira de
uma cultura de morte, que percorre um caminho à margem de Deus e das suas
propostas, que aposta em valores efêmeros e escravizantes ou que procura a vida
em propostas falíveis ou efêmeras. O Evangelho de hoje garante-nos, porém, que
Deus não desistiu da humanidade, que Ele não Se conforma com o fato de os
homens trilharem caminhos de escravidão, e que insiste em oferecer a todos a
vida plena.
Para Marcos, a proposta de Deus torna-se realidade viva e atuante em
Jesus. Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a sua palavra, com
os seus gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um projeto de
liberdade e de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a partilha; ao
orgulho e à auto-suficiência, Ele contrapõe o serviço simples e humilde a Deus
e aos irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a misericórdia; à
injustiça, ao ódio, à violência, Ele contrapõe o amor sem limites; ao medo, Ele
contrapõe a liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida. O projeto de Deus,
apresentado e oferecido aos homens nas palavras e ações de Jesus, é
verdadeiramente um projeto transformador, capaz de renovar o mundo e de
construir, desde já, uma nova terra de felicidade e de paz. É essa a Boa Nova
que deve chegar a todos os homens e mulheres da terra.
Os discípulos de Jesus são as testemunhas da sua proposta libertadora.
Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a mesma luta de Jesus
contra os “demônios” que roubam a vida e a liberdade do homem, que introduzem
no mundo dinâmicas criadoras de sofrimento e de morte. Ser discípulo de Jesus é
percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu e lutar, se necessário até ao dom
total da vida, por um mundo mais humano, mais livre, mais solidário, mais
justo, mais fraterno. Os seguidores de Jesus não podem ficar de braços
cruzados, a olhar para o céu, enquanto o mundo é construído e dirigido por
aqueles que propõem uma lógica de egoísmo e de morte; mas têm a grave
responsabilidade de lutar, objetivamente, contra tudo aquilo que rouba a vida e
a liberdade ao homem.
O texto refere o incômodo do “homem com um espírito impuro”, diante da
presença libertadora de Jesus. O pormenor faz-nos pensar nas reações agressivas
e intolerantes – por parte daqueles que pretendem perpetuar situações de
injustiça e de escravidão – diante do testemunho e do anúncio dos valores do
Evangelho. Apesar da incompreensão e da intolerância de que são, por vezes,
vítimas, os discípulos de Jesus não devem deixar-se encerrar nas sacristias,
mas devem assumir corajosamente e de forma bem visível o seu empenho na
transformação das realidades políticas, econômicas, sociais, laborais,
familiares.
A luta contra os “demônios” que desfeiam o mundo e que escravizam os
homens nossos irmãos é sempre um processo doloroso, que gera conflitos,
divisões, sofrimento; mas é, também, uma aventura que vale a pena ser vivida e
uma luta que vale a pena travar. Embarcar nessa aventura é tornar-se cúmplice
de Deus na construção de um mundo de homens livres.
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