A
liturgia do 25º domingo do comum convida os crentes a prescindir da “sabedoria
do mundo” e a escolher a “sabedoria de Deus”. Só a “sabedoria de Deus” – dizem
os textos bíblicos deste domingo – possibilitará ao homem o acesso à vida plena,
à felicidade sem fim. O Evangelho apresenta-nos uma história de confronto entre
a “sabedoria de Deus” e a “sabedoria do mundo”. Jesus, imbuído da lógica de
Deus, está disposto a aceitar o projeto do Pai e a fazer da sua vida um dom de
amor aos homens; os discípulos, imbuídos da lógica do mundo, não têm dificuldade
em entender essa opção e em comprometer-se com esse projeto. Jesus avisa-os,
contudo, de que só há lugar na comunidade cristã para quem escuta os desafios de
Deus e aceita fazer da vida um serviço aos irmãos, particularmente aos humildes,
aos pequenos, aos pobres. A segunda leitura exorta os crentes a viverem de
acordo com a “sabedoria de Deus”, pois só ela pode conduzir o homem ao encontro
da vida plena. Ao contrário, uma vida conduzida segundo os critérios da
“sabedoria do mundo” irá gerar violência, divisões, conflitos, infelicidade,
morte. A primeira leitura avisa os crentes de que escolher a “sabedoria de Deus”
provocará o ódio do mundo. Contudo, o sofrimento não pode desanimar os que
escolhem a “sabedoria de Deus”: a perseguição é a consequência natural da sua
coerência de vida.
Sabedoria 2,12.17-20 -
AMBIENTE
O
“livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento
(aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um judeu de língua grega,
provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) – exprimindo-se em
termos e concepções do mundo helênico, faz o elogio da “sabedoria” israelita,
traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve
(com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os
pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egito),
num meio fortemente helenizado. As outras culturas – nomeadamente a judaica –
são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colônia judaica residente na cidade
conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de
Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helênicos
procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro,
a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os judeus são encorajados
a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da
cultura helênica. É neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria
decide defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é
duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na
idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os
valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da
idolatria e a aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para
outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Jahwéh garante
a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.
O texto que nos é proposto
faz parte da primeira parte do livro (cf. Sb. 1-5). Aí, o autor reflete
longamente e em pormenor sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”.
Na secção que vai de Sb. 1,16-2,24, o autor do Livro da Sabedoria apresenta o
quadro da vida dos “ímpios”. Depois de apresentar os raciocínios dos “ímpios”
(cf. Sb. 1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb.
2,10-20), o sábio autor desta reflexão partilha com os seus leitores a sua
própria crítica às atitudes incoerentes dos “ímpios” (cf. Sb. 2,21-24).
Mostrando o sem sentido da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus
concidadãos que vale a pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores
tradicionais da fé de Israel.
MENSAGEM
Esses
“ímpios” de que fala o sábio autor do nosso texto são, certamente, os pagãos
hostis, que zombavam dos costumes e dos valores religiosos judaicos e que
levavam uma vida de corrupção e de imoralidade; mas são também, com toda a
certeza, os judeus apóstatas, que se tinham deixado contaminar pela cultura
grega, que haviam abandonado as tradições dos antepassados e que consideravam a
religião judaica um conjunto de tradições obscurantistas, impróprias da
“modernidade”.
A
vida desses “justos” que assumiram os valores de Deus e que, mesmo no meio da
hostilidade geral, procuram preservar os seus valores e viver de forma coerente
com a sua fé, constitui um incômodo e uma dura interpelação para os “ímpios”. A
coerência, a honestidade, a verticalidade e a fidelidade dos “justos” constituem
um permanente espinho que magoa os “ímpios” e que não os deixa sentirem-se em
paz com a sua consciência. A reação dos “ímpios” apresenta-se sempre em forma de
perseguição, de ciladas, de ultrajes, de torturas e, em último caso, de
assassínios. Trata-se de uma realidade que os justos de todas as épocas conhecem
bem. A vida dos “justos” estará, então, condenada ao fracasso? Valerá a pena
enfrentar a perseguição e conservar-se fiel a Deus e às suas propostas? O texto
que nos é hoje proposto como primeira leitura não responde a estas questões; no
entanto, o autor do Livro da Sabedoria dirá, mais à frente, que a fidelidade do
justo será recompensada e que a sua vida desembocará nessa vida plena e
definitiva que Deus reserva para aqueles que seguem os seus
caminhos.
ATUALIZAÇÃO
•
Por detrás do confronto entre o “ímpio” e o “justo”, está o confronto entre a
“sabedoria do mundo” e a “sabedoria de Deus”. Trata-se de duas realidades em
permanente choque de interesses e diante das quais temos, tantas vezes, de fazer
a nossa opção. Para mim, qual destas duas realidades faz mais sentido? Por qual
delas costumo optar?
•
O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do mundo” é a atitude de quem,
fechado no seu orgulho e auto-suficiência, resolve prescindir de Deus e dos seus
valores, de quem vive para o “ter”, de quem põe em primeiro lugar o dinheiro, o
poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores efêmeros. Trata-se de uma
“sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua plena realização, o torna
vazio, frustrado, deprimido, escravo. Pode apresentar-se com as cores sedutoras
da felicidade efêmera, com as exigências da filosofia da moda, com a auréola
brilhante da intelectualidade, ou com o brilho passageiro dos triunfos humanos;
mas nunca dará ao homem uma felicidade duradoura.
•
O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de Deus” é a atitude daqueles que
assumiram e interiorizaram as propostas de Deus e se deixam conduzir por elas.
Atentos à vontade e aos desafios de Deus, procuram escutá-l’O e seguir os seus
caminhos; tendo como modelo de vida Jesus Cristo, vivem a sua existência no amor
e no serviço aos irmãos; comprometem-se com a construção de um mundo mais
fraterno e lutam pela justiça e pela paz. Trata-se de uma “sabedoria” que nem
sempre é entendida pelos homens e que, tantas vezes, é considerada um refúgio
para os simples, os incapazes, os pouco ambiciosos, os vencidos, aqueles que
nunca moldarão o edifício social. Parece, muitas vezes, apenas gerar sofrimento,
perseguição, incompreensão, dor, fracasso. No entanto, trata-se de uma
“sabedoria” que leva o homem ao encontro da verdadeira felicidade, da verdadeira
realização, da vida plena.
•
Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma vida fácil. Será incompreendido,
caluniado, desautorizado, perseguido, torturado… Contudo, o sofrimento não pode
desanimar os que escolhem a “sabedoria de Deus”: a perseguição é a consequência
natural da sua coerência de vida. Não devemos ficar preocupados quando o mundo
nos persegue; devemos ficar preocupados quando somos aplaudidos e adulados por
aqueles que escolheram a “sabedoria do mundo”.
2ª
leitura – Tiago 3,16-4,3 - AMBIENTE
Depois
de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg. 1,2-27) e de
os exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg. 2,1-24), o autor da
carta de Tiago elenca, na terceira parte desta carta (cf. Tg 3,1-4,10), uma
série de aspectos particulares que precisam da atenção e do cuidado dos crentes.
Estes aspectos particulares tratados na terceira parte da carta são, certamente,
questões e situações que incomodavam as comunidades cristãs de origem judaica a
quem a carta se dirige (e que não estão circunscritas à Palestina, mas
espalhadas por todo o mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da
Palestina, como a Síria, o Egito ou a Ásia Menor). O primeiro aspecto particular
a que o autor se refere é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg. 3,1-12); o
segundo refere-se à necessidade de os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo”
e de acolherem a “sabedoria que vem do alto” (cf. Tg. 3,13-18); o terceiro é uma
análise sobre a origem das discórdias que envenenam a vida das comunidades
cristãs (cf. Tg. 4,1-10). O texto que nos é proposto junta alguns versículos do
segundo com alguns versículos do terceiro ponto. O objetivo do autor da carta de
Tiago continua a ser, também nesta terceira parte, purificar a existência cristã
e exortar os crentes para que não percam os valores cristãos
autênticos.
MENSAGEM
A
primeira parte do nosso texto (cf. Tg. 3,16-18) exorta os crentes a viverem de
acordo com a “sabedoria de Deus”. A “sabedoria do mundo” gera inveja, contendas,
falsidade (cf. Tg. 3,14), rivalidade, desordem e toda a espécie de más ações
(cf. Tg. 3,16). Acaba por destruir a vida da própria pessoa e por impedir a
comunhão dos irmãos. Trata-se de uma “sabedoria” incompatível com as exigências
da adesão a Cristo. Ao contrário, a “sabedoria de Deus” é “pura, pacífica,
compreensiva e generosa, cheia de misericórdia e boas obras, imparcial e sem
hipocrisia” (Tg. 3,17). São sete as “qualidades” da “sabedoria” aqui enumeradas:
dado que o número sete significa “perfeição”, “plenitude”, o autor da Carta de
Tiago está, assim, a propor aos crentes um caminho de perfeição, de realização
total, de vida plena. Se o cristão quer viver em paz (isto é, em comunhão) com
Deus, deve acolher a “sabedoria de Deus” e atuar de acordo com ela em cada passo
da sua existência.
Na
segunda parte do nosso texto (cf. Tg. 4,1-3), o autor da Carta analisa as causas
da situação de conflito e de discórdia que se nota em muitas das comunidades
cristãs e que é incompatível com as exigências do compromisso com Cristo. Esse
quadro resulta do fato de os crentes não terem ainda interiorizado a proposta de
Cristo… Em lugar de fazerem da sua vida, como Cristo, um dom de amor aos irmãos,
e de traduzirem esse amor em gestos concretos de partilha, de serviço, de
solidariedade, de fraternidade, estes crentes vivem fechados no seu egoísmo e no
seu orgulho. O seu coração está dominado pela cobiça, pela inveja, pela vontade
de se sobrepor aos outros… E essas “paixões” más traduzem-se naturalmente, a
nível da relação comunitária, em atitudes de luta, de inveja, de rivalidade, de
ciúme, de arrogância, de ira. Vivem de acordo com a “sabedoria do mundo” e não
de acordo com a “sabedoria de Deus”. Naturalmente, a sua oração não é escutada
por Deus… O que eles pedem a Deus não é para satisfazer as suas necessidades
materiais, mas para satisfazer as suas “paixões”, o seu orgulho, a sua cobiça, a
sua vontade de se sobrepor aos outros irmãos. Uma oração que assenta em bases
egoístas não pode ser escutada por Deus.
ATUALIZAÇÃO
•
Batismo é, para todos os crentes, o momento da opção por Cristo e pela proposta
de vida nova que Ele veio apresentar; é o momento em que os crentes escolhem a
“sabedoria de Deus” e passam a conduzir a sua vida pelos critérios de Deus. A
partir desse momento, a vida dos crentes deve ser expressão da vida de Deus, dos
valores de Deus, do amor de Deus. Num mundo que se constrói, tantas vezes, à
margem de Deus, os cristãos devem ser os rostos dessa vida nova que Deus quer
oferecer ao mundo. Estou consciente desta realidade? Tenho vivido de forma
coerente com os compromissos que assumi no dia do meu batismo? Os valores que
conduzem a minha vida são os valores que brotam da “sabedoria de
Deus”?
•
No entanto, muitos batizados continuam a conduzir a sua vida de acordo com a
“sabedoria do mundo”. Passam, com indiferença, ao lado dos desafios que Deus
faz, instalam-se no egoísmo e na auto-suficiência, vivem para o “ter”, deixam
que a sua existência seja dirigida por critérios de ambição e de ganância,
recusam-se a fazer da sua vida uma partilha generosa com os irmãos… O autor da
Carta de Tiago avisa: cuidado, pois a opção pela “sabedoria do mundo” não é um
caminho para a realização plena do homem; só gera infelicidade, desordem,
guerras, rivalidades, conflitos, morte. Nós, os cristãos, temos de estar
permanentemente num processo de conversão para que a “sabedoria do mundo” não
ocupe todo o nosso coração e não nos impeça de atingir a vida plena.
•
Quando pautamos a nossa vida pela “sabedoria do mundo”, isso tem consequências
nas relações que estabelecemos com aqueles que caminham ao nosso lado. A
ambição, a inveja, o orgulho, a competição, o egoísmo, criam divisões e destroem
a comunidade. As nossas comunidades cristãs (ou religiosas) dão testemunho da
“sabedoria de Deus” ou da “sabedoria do mundo”? As rivalidades, os ciúmes, as
críticas destrutivas, a indiferença, as palavras que magoam, as lutas pelo
poder, as tentativas de afirmação pessoal à custa do irmão, são compatíveis com
a “sabedoria de Deus” que escolhemos no dia do nosso batismo?
•
Uma palavra para o tema da oração, abordado no último versículo do nosso texto…
Quando o nosso coração está cheio da “sabedoria do mundo”, a nossa oração não
faz sentido; torna-se um monólogo egoísta, uma pedinchice de coisas que se
destinam a satisfazer as nossas “paixões”, as nossas ambições, os nossos
interesses pessoais. Antes de falar com Deus, precisamos de mudar o nosso
coração, de reequacionar os nossos valores e as nossas prioridades, de aprender
a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus. Só então a nossa oração fará
sentido: será um diálogo de amor e de comunhão, através do qual escutamos Deus,
percebemos os seus planos, acolhemos essa vida que Ele nos quer
oferecer.
Evangelho
– Mc 9,30-37 - AMBIENTE
Já
dissemos no passado domingo que a preocupação essencial de Marcos na segunda
parte do seu Evangelho (cf. Mc. 8,31-16,8) é apresentar Jesus como “o Filho de
Deus”. No entanto, Marcos tem o cuidado de demonstrar que Jesus não veio ao
mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir
a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. É neste
contexto que devemos situar os três anúncios feitos por Jesus acerca da sua
paixão e morte (cf. Mc. 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34).
O texto que nos é proposto
neste domingo é, precisamente, o segundo desses anúncios. O grupo já deixou
Cesareia de Filipe (onde Jesus, pela primeira vez, tinha falado da sua paixão e
morte, como lemos no Evangelho do passado domingo) e está agora a atravessar a
Galileia. Muito provavelmente, a próxima ida para Jerusalém está no horizonte
dos discípulos e eles têm consciência de que em Jerusalém se vai jogar a cartada
decisiva para esse projeto em que tinham decidido apostar. Nesta fase, todos
acreditam ainda que Jesus irá entrar na cidade na pele de um Messias político,
poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do
domínio romano. Ao longo dessa “caminhada para Jerusalém”, Jesus vai
catequizando os discípulos, ensinando-lhes os valores do Reino e mostrando-lhes,
com gestos concretos, que o projeto do Pai não passa por esquemas de poder e de
domínio. O nosso texto faz parte de uma dessas instruções aos discípulos. Será
que eles entendem a lógica de Deus e estão dispostos a embarcar, com Jesus, na
aventura do Reino?
MENSAGEM
O
texto divide-se em duas partes. Na primeira, Jesus anuncia a sua próxima paixão,
em Jerusalém; na segunda, Jesus ensina aos discípulos a lógica do Reino: o
maior, é aquele que se faz servo de todos. Na primeira parte (vs. 30-32), Marcos
põe na boca de Jesus um segundo anúncio da sua paixão, morte e ressurreição, com
palavras ligeiramente diferentes do primeiro anúncio (cf. Mc 8,31-33), mas com o
mesmo conteúdo. As palavras de Jesus denotam tranquilidade e uma serena
aceitação desses fatos que irão concretizar-se num futuro próximo. Jesus recebeu
do Pai a missão de propor aos homens um caminho de realização plena, de
felicidade sem fim; e Ele vai fazê-lo, mesmo que isso passe pela cruz.
A
serenidade de Jesus vem-Lhe da total aceitação e da absoluta conformidade com os
projetos do Pai. Os discípulos mantêm-se num estranho silêncio diante deste
anúncio. Marcos explica que eles não entendem a linguagem de Jesus e que têm
medo de O interrogar (v. 32). As palavras de Jesus são claras; o que não é
claro, para a mentalidade desses discípulos, é que o caminho do Messias tenha de
passar pela cruz e pelo dom da vida. A morte, na perspectiva dos discípulos, não
pode ser caminho para a vitória. O “não entendimento” é, aqui, o mesmo que
discordância: intimamente, eles discordam do caminho que Jesus escolheu seguir,
pois acham que o caminho da cruz é um caminho de fracasso. Apesar de discordarem
de Jesus eles não se atrevem, contudo, a criticá-l’O. Provavelmente recordam a
dura reação de Jesus quando Pedro, logo a seguir ao primeiro anúncio da paixão,
Lhe recomendou que não aceitasse o projeto do Pai (cf. Mc. 8,32-33).
A
segunda parte (vs. 33-37) situa-nos em Cafarnaum, “em casa” (será a casa de
Pedro?). A cena começa com uma pergunta de Jesus: “Que discutíeis pelo caminho?”
(v. 33). O contexto sugere que Jesus sabe claramente qual tinha sido o tema da
discussão. Provavelmente, captou qualquer coisa da conversa e ficou à espera da
oportunidade certa – na tranquilidade da “casa” – para esclarecer as coisas e
para continuar a instrução dos discípulos. Só neste ponto Marcos informa os seus
leitores de que os discípulos tinham discutido, pelo caminho, “sobre qual deles
era o maior” (v. 34). O problema da hierarquização dos postos e das pessoas era
um problema sério na sociedade palestina de então. Nas assembléias, na sinagoga,
nos banquetes, a “ordem” de apresentação das pessoas estava rigorosamente
definida e, com frequência, geravam-se conflitos inultrapassáveis por causa de
pretensas infrações ao protocolo hierárquico. Os discípulos estavam
profundamente imbuídos desta lógica.
Uma vez que se aproximava o triunfo do
Messias e iam ser distribuídos os postos-chave na cadeia de poder do reino
messiânico, convinha ter o quadro hierárquico claro. Apesar do que Jesus lhes
tinha dito pouco antes acerca do seu caminho de cruz, os discípulos recusavam-se
a abandonar os seus próprios sonhos materiais e a sua lógica humana. Jesus ataca
o problema de frente e com toda a clareza, pois o que está em jogo afeta a
essência da sua proposta. Na comunidade de Jesus não há uma cadeia de grandeza,
com uns no cimo e outros na base… Na comunidade de Jesus, só é grande aquele que
é capaz de servir e de oferecer a vida aos seus irmãos (v. 35). Dessa forma,
Jesus deita por terra qualquer pretensão de poder, de domínio, de grandeza, na
comunidade do Reino.
O discípulo que raciocinar em termos de poder e de grandeza
(isto é, segundo a lógica do mundo) está a subverter a ordem do Reino. Jesus
completa a instrução aos discípulos com um gesto… Toma uma criança, coloca-a no
meio do grupo, abraça-a e convida os discípulos a acolherem as “crianças”, pois
quem acolhe uma criança acolhe o próprio Jesus e acolhe o Pai (vs. 36-37). Na
sociedade palestina de então, as crianças eram seres sem direitos e que não
contavam do ponto de vista legal (pelo menos enquanto não tivessem feito o “bar
mitzvah”, a cerimônia que definia a pertença de um rapaz à comunidade do Povo de
Deus). Eram, portanto, um símbolo dos débeis, dos pequenos, dos sem direitos,
dos pobres, dos indefesos, dos insignificantes, dos marginalizados. São esses,
precisamente, que a comunidade de Jesus deve abraçar. No contexto da conversa
que Jesus está a ter com os discípulos, o gesto de Jesus significa o seguinte: o
discípulo de Jesus é grande, não quando tem poder ou autoridade sobre os outros,
mas quando abraça, quando ama, quando serve os pequenos, os pobres, os
marginalizados, aqueles que o mundo rejeita e abandona. No pequeno e no pobre
que a comunidade acolhe, é o próprio Jesus (que também foi pobre, débil,
indefeso) que Se torna presente.
ATUALIZAÇÃO
•
Os anúncios da paixão testemunham que Jesus, desde cedo, teve consciência de que
a missão que o Pai Lhe confiara ia passar pela cruz. Por outro lado, a
serenidade e a tranquilidade com que Ele falava do seu destino de cruz mostram
uma perfeita conformação com a vontade do Pai e a vontade de cumprir à risca os
projetos de Deus. A postura de Jesus é a postura de alguém que vive segundo a
“sabedoria de Deus”… Ele nunca conduziu a vida ao sabor dos interesses pessoais,
nunca pôs em primeiro lugar esquemas de egoísmo ou de auto-suficiência, nunca Se
deixou tentar por sonhos humanos de poder ou de riqueza… Para Ele, o fator
decisivo, o valor supremo, sempre foi a vontade do Pai, o projeto de salvação
que o Pai tinha para os homens. Nós, cristãos, um dia aderimos a Jesus e
aceitamos percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu. Que valor e que
significado tem, para nós, essa vontade de Deus que dia a dia descobrimos nos
pequenos acidentes da nossa vida? Temos a mesma disponibilidade de Jesus para
viver na fidelidade aos projetos do Pai? O que é que dirige e condiciona o nosso
percurso: os nossos interesses pessoais, ou os projetos de Deus?
•
Neste episódio, os discípulos são o exemplo clássico de quem raciocina segundo a
“sabedoria do mundo”. Quando Jesus fala em servir e dar a vida, eles não
concordam e fecham-se num silêncio amuado; e logo a seguir, discutem uns com os
outros por causa da satisfação dos seus apetites de poder e de domínio. Aquilo
que os preocupa não é o cumprimento da vontade de Deus, mas a satisfação dos
seus interesses próprios, dos seus sonhos pessoais. A atitude dos discípulos
mostra a dificuldade que os homens têm em entender e acolher a lógica de Deus.
Contudo, a reação de Jesus diante de tudo isto é clara: quem quer seguir Jesus
tem de mudar a mentalidade, os esquemas de pensamento, os valores egoístas e
abrir o coração à vontade de Deus, às propostas de Deus, aos desafios de Deus.
Não é possível fazer parte da comunidade de Jesus, se não estivermos dispostos a
realizar este processo.
•
O Evangelho de hoje convida-nos a repensar a nossa forma de nos situarmos, quer
na sociedade, quer dentro da própria comunidade cristã. A instrução de Jesus aos
discípulos que o Evangelho deste domingo nos apresenta é uma denúncia dos jogos
de poder, das tentativas de domínio sobre os irmãos, dos sonhos de grandeza, das
manobras para conquistar honras e privilégios, da busca desenfreada de títulos,
da caça às posições de prestígio… Esses comportamentos são ainda mais graves
quando acontecem dentro da comunidade cristã: trata-se de comportamentos
incompatíveis com o seguimento de Jesus. Nós, os seguidores de Jesus, não
podemos, de forma alguma, pactuar com a “sabedoria do mundo”; e uma Igreja que
se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo não é a Igreja de
Jesus.
•
Na nossa sociedade, os primeiros são os que têm dinheiro, os que têm poder, os
que frequentam as festas badaladas nas revistas da sociedade, os que vestem
segundo as exigências da moda, os que têm sucesso profissional, os que sabem
colar-se aos valores politicamente corretos… E na comunidade cristã? Quem são os
primeiros? As palavras de Jesus não deixam qualquer dúvida: “quem quiser ser o
primeiro, será o último de todos e o servo de todos”. Na comunidade cristã, a
única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da
própria vida um serviço aos irmãos. Na comunidade cristã não há donos, nem
grupos privilegiados, nem pessoas mais importantes do que as outras, nem
distinções baseadas no dinheiro, na beleza, na cultura, na posição social… Na
comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a comunidade confia serviços diversos
em vista do bem de todos. Aquilo que nos deve mover é a vontade de servir, de
partilhar com os irmãos os dons que Deus nos concedeu.
•
A atitude de serviço que Jesus pede aos seus discípulos deve manifestar-se, de
forma especial, no acolhimento dos pobres, dos débeis, dos humildes, dos
marginalizados, dos sem direitos, daqueles que não nos trazem o reconhecimento
público, daqueles que não podem retribuir-nos… Seremos capazes de acolher e de
amar os que levam uma vida pouco exemplar, os marginalizados, os estrangeiros,
os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis, os que ninguém quer e ninguém
ama?
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas
Carvalho
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