sábado, 1 de setembro de 2012

XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - "...O QUE SAI DE DENTRO DE NÓS É QUE NOS TORNA IMPUROS..."

A liturgia do 22º domingo do tempo comum propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei”. Deus quer a realização e a vida plena para o homem e, nesse sentido, propõe-lhe a sua “Lei”. A “Lei” de Deus indica ao homem o caminho a seguir. Contudo, esse caminho não se esgota num mero cumprimento de ritos ou de práticas vazias de significado, mas num processo de conversão que leve o homem a comprometer-se cada vez mais com o amor a Deus e aos irmãos.
A primeira leitura garante-nos que as “leis” e preceitos de Deus são um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Por isso, o autor dessa catequese recomenda insistentemente ao seu Povo que acolha a Palavra de Deus e se deixe guiar por ela.
No Evangelho, Jesus denuncia a atitude daqueles que fizeram do cumprimento externo e superficial da “lei” um valor absoluto, esquecendo que a “lei” é apenas um caminho para chegar a um compromisso efectivo com o projecto de Deus. Na perspectiva de Jesus, a verdadeira religião não se centra no cumprimento formal das “leis”, mas num processo de conversão que leve o homem à comunhão com Deus e a viver numa real partilha de amor com os irmãos.
A segunda leitura convida os crentes a escutarem e acolherem a Palavra de Deus; mas avisa que essa Palavra escutada e acolhida no coração tem de tornar-se um compromisso de amor, de partilha, de solidariedade com o mundo e com os homens.
1 leitura: Dt. 4,1-2.6-8 - AMBIENTE
O Livro do Deuteronômio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”, que enlaça esta secção com a precedente: mostra-se que o compromisso que agora se pede a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos… A ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.
O capítulo 4 do Livro do Deuteronômio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilônia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Jahwéh e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilônico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Jahwéh pelos deuses babilônicos. É neste contexto que os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Jahwéh e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança.
MENSAGEM
Esse Deus que, no passado, interveio na história para salvar e libertar Israel é o mesmo Deus que agora oferece ao seu Povo leis e preceitos.
Porque é que Israel deve acolher e praticar essas leis e preceitos que Deus lhe propõe? Em primeiro lugar, como forma de gratidão: é a resposta de Israel a esse Deus libertador, que mil vezes agiu no passado para salvar o seu Povo… Em segundo lugar, porque as leis e preceitos do Senhor são inquestionavelmente um caminho que conduz o Povo pela estrada da felicidade e da liberdade. Em qualquer caso, o viver de acordo com as leis e os preceitos de Jahwéh ajudará o Povo a concretizar todos os seus sonhos e esperanças – nomeadamente o grande sonho de se estabelecer numa terra, escapando aos perigos e incomodidades da vida nómada (v. 1).
Israel deve, contudo, ter cuidado para não adulterar as leis e preceitos que Deus lhe propõe. Há sempre o perigo de os homens adaptarem a Palavra de Deus, de forma a que ela sirva os seus interesses; há sempre o perigo de os homens suavizarem a Palavra de Deus, de forma a que ela não seja tão exigente; há sempre o perigo de os homens suprimirem da Palavra de Deus aquilo que os incomoda; há sempre o perigo de os homens acrescentarem algo à Palavra de Deus, atribuindo a Deus ideias e propostas com as quais Deus não tem nada a ver… Israel tem de resistir a estas tentações: a Palavra de Deus deve ser uma proposta sagrada, que o Povo se esforçará por cumprir integralmente (v. 2).
Na parte final do texto que nos é proposto, o catequista deuteronomista manifesta o seu orgulho pelo facto de Israel ser um Povo especial, o Povo eleito de Deus. Essa eleição manifesta-se na presença amorosa e libertadora de Jahwéh junto do seu Povo (“qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?” – v. 7), no dom da Lei e na “sabedoria” presente nessas leis e preceitos que o Senhor deu a Israel, a fim de o conduzir pelos caminhos da história (“qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?” – v. 8).
Israel, Povo “de dura cerviz”, nem sempre acolheu e cumpriu as leis e os preceitos que o Senhor lhe propôs; mas os círculos religiosos de Israel preocuparam-se sempre em mostrar ao Povo que essa Lei era uma proposta segura para chegar à vida plena, à felicidade. É essa convicção que o nosso catequista deuteronomista deixa transparecer nesta “homilia” que nos propõe.
ATUALIZAÇÃO
¨ O autor deste texto é, antes de mais, um crente com um enorme apreço pela Palavra de Deus. Ele vê nas leis e preceitos de Deus um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Por isso, recomenda insistentemente ao seu Povo que acolha a Palavra de Deus e se deixe guiar por ela. Que importância é que a Palavra de Deus assume na minha existência? Consigo encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para meditar e interiorizar a Palavra de Deus, de forma a que ela informe os meus valores, os meus sentimentos e as minhas ações?
¨ Para muitos dos nossos contemporâneos, as leis e preceitos de Deus são um caminho de escravidão, que condicionam a autonomia e que limitam a liberdade do homem; para outros, as leis e preceitos de Deus são uma moral ultrapassada, que não condiz com os valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da história. Em contrapartida, para o catequista que nos oferece esta reflexão do Livro do Deuteronômio, a Palavra de Deus é um caminho sempre atual, que liberta o homem da escravidão do egoísmo e que o conduz ao encontro da verdadeira vida e da verdadeira liberdade. De fato, a escuta atenta e o compromisso firme com a Palavra de Deus é, para os crentes, uma experiência libertadora: salva-nos do egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência e projeta-nos para o amor, para a partilha, para o serviço, para o dom da vida.
¨ Uma das insistentes recomendações do nosso texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor dos interesses pessoais dos homens. Existe sempre o perigo, quer na nossa reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos os aspectos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que caminham conosco, que nos questionam e que partilham conosco a sua perspectiva das coisas.
¨ Nós os crentes comprometidos andamos sempre muito ocupados a fazer coisas bonitas no sentido de mudar o mundo, num ativismo por vezes exagerado e que, aos poucos, nos vai fazendo perder o sentido da nossa ação e do nosso testemunho. No meio dessa atividade frenética, temos de encontrar tempo para escutar Deus, para meditar as suas propostas, para repensar as suas leis e preceitos, para descobrir o sentido da nossa ação no mundo. Sem a escuta da Palavra, a nossa ação torna-se um “fazer coisas” estéril e vazio que, mais tarde ou mais cedo, nos leva a perder o sentido do nosso testemunho e do nosso compromisso.
2 leitura: Tg. 1,17-18.21-22.27 – AMBIENTE
A carta de onde foi extraída a nossa segunda leitura de hoje é um escrito de um tal Tiago (cf. Tg 1,1), que a tradição liga a esse Tiago “irmão” do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de certa Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). Teria morrido decapitado em Jerusalém no ano 62… No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 e par. – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 e par. – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até, com frequência, à “diatribe” – um gênero muito usado pela filosofia popular helênica. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram na boca e no ensinamento de Jesus.
A carta foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egito; mas, no geral, a carta parece dirigir-se a todos os crentes, exortando-os a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Denuncia, sobretudo, certas interpretações consideradas abusivas da doutrina paulina da salvação pela fé, sublinhando a importância das obras; e ataca com extrema severidade os ricos (cf. Tg. 1,9-11; 2,5-7; 4,13-17; 5,1-6).
O nosso texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg. 1,2-27). Aí, o autor apresenta, num conjunto de desenvolvimentos e de sentenças aparentemente sem ordem nem lógica, uma síntese ou guia breve da carta, pois oferece um breve panorama dos problemas que o preocupam e que ele vai tratar nos capítulos seguintes.
MENSAGEM
Os versículos da Carta de Tiago que nos são propostos como segunda leitura refletem sobre a Palavra de Deus. O autor da carta não desenvolve um raciocínio continuada, mas vai elencando vários aspectos relacionados com a forma como os crentes devem ver e acolher a Palavra de Deus…
1. Deus oferece continuamente ao homem os seus dons, a fim de lhe proporcionar vida e felicidade (v. 17). A Palavra de Deus é um dom que o “Pai das luzes” oferece ao homem e destina-se a gerar uma nova humanidade. Os crentes, iluminados pela “Palavra da verdade” que lhes vem de Deus, podem caminhar em segurança em direção à vida plena, à felicidade sem fim (v. 18).
2. Os crentes devem estar sempre disponíveis para acolher a Palavra de Deus. Não podem fechar-se no seu orgulho e auto-suficiência, ignorando as propostas de Deus; mas devem abrir o coração para que a Palavra lançada por Deus aí encontre lugar, aí possa lançar raízes e desenvolver-se (v. 21b).
3. A escuta e o acolhimento da Palavra têm, contudo, de conduzir à ação. A escuta da Palavra de Deus tem de conduzir à conversão, à mudança, ao abandono da vida velha do egoísmo e do pecado, a fim de abraçar uma vida segundo Deus. A escuta da Palavra de Deus também não pode fechar o homem num espiritualismo alienante e estéril, mas tem de conduzir a um compromisso efetivo com a transformação do mundo (v. 22).
4. No último versículo da nossa leitura (v. 27), o autor da carta descreve a religião autêntica (por oposição à religião vazia, inoperante, morta, daqueles que falam muito mas não praticam ações coerentes com as suas palavras – v. 26): “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”. Ligando este versículo com o tema central do resto da leitura (a Palavra de Deus), podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos projeta para a ação e para o compromisso. A escuta da Palavra de Deus leva o crente a passar de uma religião ritual, legalista, externa, superficial, para uma religião de efetivo compromisso com a realização do projeto de Deus e com o amor dos irmãos.
ATUALIZAÇÃO
¨ Na nossa sociedade, há uma tal super-abundância de palavras, que a palavra se desvalorizou. Todos dizem o que muito bem entendem, às vezes de uma forma pouco serena e pouco equilibrada, sem pesar as consequências. Habituamo-nos, portanto, a não levar demasiado a sério as palavras que escutamos e a não lhes conceder um crédito absoluto. O nosso texto, contudo, valoriza a Palavra de Deus e sublinha a sua importância no sentido de nos conduzir ao encontro da vida verdadeira e eterna. É preciso darmos à Palavra que Deus nos dirige um peso infinitamente superior às palavras sem nexo que todos os dias enchem os nossos ouvidos e que intoxicam a nossa mente… A Palavra de Deus é Palavra geradora de vida, de eternidade, de felicidade; por isso, deve ser por nós valorizada.
¨ O excesso de palavras (autêntica poluição sonora!) leva também à dificuldade em escutar com atenção. Não temos tempo nem paciência para escutar todos os disparates, todas as conversas sem sentido, toda a verborreia daqueles que gostam de se ouvir a si próprios, embora não digam nada de importante. Por outro lado, as exigências da vida moderna, o trabalho excessivo, o corre-corre do dia a dia, limitam muito a nossa disponibilidade para escutar. Criamos hábitos de não escuta e tornamo-nos surdos aos apelos que chegam até nós através da palavra. A nossa leitura convida-nos, entretanto, a encontrar tempo e disponibilidade para escutar o Deus que nos fala e que, através da Palavra que nos dirige, nos apresenta as suas propostas para nós e para o mundo.
¨ A Palavra de Deus que escutamos e que acolhemos no coração deve conduzir-nos à ação. Se ficamos apenas pela escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. É preciso transformar essa Palavra que escutamos em gestos concretos, que nos levem à conversão e que tragam um acréscimo de vida para o mundo. A Palavra de Deus que escutamos tem de nos levar ao compromisso – à luta pela justiça, pela paz, pela dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos pobres, por um mundo mais fraterno e mais cristão.
¨ A nossa religião, sem a escuta atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero cumprimento de ritos, a fidelidade a certas práticas de piedade, uma tradição que herdamos e na qual nos instalamos, uma prática que torna mais fácil a nossa inserção num determinado meio social, uma alienação que nos faz esquecer certos dramas da nossa vida… É a Palavra de Deus que, propondo-nos uma escuta contínua de Deus e dos seus projetos e um compromisso continuamente renovado com a construção do mundo, dá sentido a toda a nossa experiência religiosa, transformando-a numa verdadeira experiência de vida nova, de vida autêntica.
Evangelho: Mc. 7,1-8.14-15.21-23 - AMBIENTE
Na primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30), o autor apresenta Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Deslocando-se por toda a Galileia, Jesus anuncia a Boa Nova do Reino de Deus com as suas palavras e os seus gestos, propondo um mundo novo de vida, de liberdade, de fraternidade para todos os homens. A sua proposta provoca as reações e as respostas mais diversas nos líderes judaicos, no povo e nos próprios discípulos.
A cena que nos é hoje proposta no Evangelho mostra-nos, precisamente, a reação dos fariseus e dos doutores da Lei à ação de Jesus. Pouco antes, Jesus tinha realizado a multiplicação dos pães e dos peixes (cf. Mc 6,34-44), propondo, com o seu gesto, um mundo novo de fraternidade, de serviço e de partilha (o “Reino de Deus”); e os líderes judaicos, sem coragem para enfrentar-se diretamente com Jesus e para pôr em causa a sua proposta, escolhem os discípulos como alvo das suas críticas… Naturalmente, esses fariseus, fanáticos da Lei, vão questionar os discípulos de Jesus acerca da forma deficiente como eles cumprem a “tradição dos antigos”.
Para os fariseus, a “tradição dos antigos” não se cingia às normas escritas contidas na Lei (Torah), mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polêmica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.
Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. A questão que era preciso equacionar era a seguinte: o cumprimento da Lei de Moisés era importante, para a comunidade cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos e que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rom 14,1-15,6).
É, provavelmente, a esta temática que o evangelista Marcos quer responder.
MENSAGEM
Os povos antigos, em geral, e os judeus, em particular, sentiam um grande desconforto quando tinham de lidar com certas realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar nem dominar. Criaram, então, um conjunto abundante de regras que interditavam o contacto com essas realidades (por exemplo, os cadáveres, o sangue, a lepra, etc.) ou que, pelo menos, regulamentavam a forma de lidar com elas, de forma a torná-las inofensivas. No contexto judaico, quem infringia – mesmo involuntariamente – essas regras colocava-se a si próprio numa situação de marginalidade e de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade do Povo santo de Deus. Dizia-se então que a pessoa ficava “impura”. Para readquirir o estado de “pureza” e poder reintegrar a comunidade do Povo santo, o crente necessitava de realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado na “Lei”.
Na época de Jesus, as regras da “pureza” tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Na opinião dos rabis de Israel, existia uma lista imensa de coisas que tornavam o homem “impuro” e que o afastavam da comunidade do Povo santo de Deus. Daí a obsessão com os rituais de “purificação”, que deviam ser cumpridos a cada passo da vida diária.
Um desses ritos consistia na lavagem das mãos antes das refeições. Na sua origem está, provavelmente, a universalização do preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos, antes de se aproximarem do altar para o exercício do culto (cf. Ex 30,17-21). Na perspectiva dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era uma questão de higiene, mas uma questão religiosa… Em cada momento o crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma realidade impura e de lhe tocar; para evitar que a “impureza” (que lhe ficara agarrada às mãos) se introduzisse, juntamente com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das mãos antes das refeições.
Na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo pagão e onde as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém, não se dava demasiada importância ao ritual de lavar as mãos antes das refeições para evitar a ingestão da “impureza”. Os fariseus vindos de Jerusalém, testemunhando como os discípulos comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos, ficaram escandalizados e referiram o caso a Jesus. Provavelmente, a história serviu aos fariseus para sondar Jesus e para averiguar a sua ortodoxia e o seu respeito pela tradição dos antigos.
Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de uma grave deficiência quanto à forma de ver e de viver a religião; por isso, Jesus responde ao reparo dos fariseus com alguma dureza… Partindo da Escritura (vs. 6-8) e da análise da práxis dos judeus (vs. 9-13), Jesus denuncia essa vivência religiosa que aposta apenas na repetição de práticas externas e formalistas, mas que não se preocupa com a vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” – v. 6) ou com o amor aos irmãos. Trata-se de uma religião vazia e estéril (“é vão o culto que Me prestam” – v. 7), que não vem de Deus mas foi inventada pelos homens (“as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos” – v. 7). Àqueles que apostam na religião dos ritos estéreis, Jesus chama “hipócritas” (v. 6): interessa-lhes mais o “parecer” do que o “ser”, a materialidade do que a essência das coisas… Eles cumprem as regras, mas não amam; vestem com fingimento a máscara da religião, mas não se preocupam minimamente com a vontade de Deus. Esta religião é uma mentira, uma hipocrisia, ainda que se revista de ares muito santos e muito piedosos.
Depois, Jesus dirige-Se à multidão e formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é que o torna impuro” (v. 15). Este princípio geral, à primeira vista enigmático e passível de várias interpretações, será explicado mais à frente: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro” (vs. 22-23). O dito de Jesus refere-se, naturalmente, a dois “circuitos” diversos: o do estômago (onde entram os alimentos que se ingerem) e o do coração (de onde saem os pensamentos, os sentimentos e as ações). Os alimentos que entram no estômago não são fonte de “impureza”; os pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”: afastam o homem de Deus e da comunidade do Povo santo.
Na antropologia judaica, o “coração” é o “interior do homem” em sentido amplo; é aí que está a sede dos sentimentos, dos desejos, dos pensamentos, dos projetos e das decisões do homem. É nesse “centro vital” de onde tudo parte que é preciso atuar. A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas, que regulam o que o homem come ou não come; mas passa por uma autêntica conversão do coração, que leve o homem a deixar a vida velha e a transformar-se num Homem Novo, que assume e que vive os valores do Reino. A preocupação com as regras externas de “pureza” é uma preocupação estéril, que não toca com o essencial – o coração do homem; pode até servir para distrair o crente do essencial, dando-lhe uma falsa segurança e uma falsa sensação de estar em regra com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, os seus desejos, os seus pensamentos, os seus projetos, as suas decisões se concretizem, no dia a dia, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.
ATUALIZAÇÃO
¨ O que é que é decisivo na experiência religiosa? Será o estrito cumprimento das leis definidas pela Igreja? Serão as manifestações exteriores de religiosidade que definem quem é bom ou mau, santo ou pecador, amigo ou inimigo de Deus?
¨ As “leis” têm o seu lugar numa experiência religiosa, enquanto sinais indicadores de um caminho a percorrer. No entanto, é preciso que o crente tenha o discernimento suficiente para dar à “lei” um valor justo, vendo-a apenas como um meio para chegar mais além no compromisso com Deus e com os irmãos. A finalidade da nossa experiência religiosa não é cumprir leis, mas aprofundar a nossa comunhão com Deus e com os outros homens sendo, eventualmente, ajudados nesse processo por “leis” que nos indicam o caminho a seguir.
¨ Se fizermos das leis algo de absoluto, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Nesse caso, as “leis” serão, em última análise, uma forma de acalmar a nossa consciência, de nos julgarmos em regra com Deus, de sentirmos que Deus nos deve algo porque nós cumprimos todas as regras estabelecidas. Tornamo-nos orgulhosos e auto-suficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e não uma manifestação do amor que nos enche o coração. A nossa religião será, nesse caso, uma mentira, uma negociata, que Deus não aprecia nem pode caucionar.
¨ De acordo com os ensinamentos de Jesus, não é muito religioso ou muito cristão quem aceita todas as “leis” propostas pela Igreja, ou quem cumpre escrupulosamente todos os ritos; mas é cristão verdadeiro aquele que, no seu coração, aderiu a Jesus e procura segui-l’O no caminho do amor e da entrega, que aceita integrar a comunidade dos discípulos, que acolhe com gratidão os dons de Deus, que celebra a fé em comunidade, que aceita fazer com os irmãos uma experiência de amor partilhado.
¨ É isso que Jesus quer dizer quando convida os seus discípulos a não se preocuparem com as leis e os ritos externos, mas a preocuparem-se com o que lhes sai do coração. É no interior do homem que se definem os sentimentos, os desejos, os pensamentos, as opções, os valores, as ações do homem. É daí que nascem os nossos gestos injustos, as discórdias e violências que destroem a relação, as tentativas de humilhar os irmãos, os rancores que nos impedem de perdoar e de aceitar os outros, as opções que nos fazem escolher caminhos errados e que nos escravizam a nós e àqueles que caminham ao nosso lado… A verdadeira religião passa por um processo de contínua conversão, no sentido de nos parecermos cada vez mais com Jesus e de acolhermos a proposta de Homem Novo que Ele nos veio fazer.
¨ É preciso mantermo-nos livres e críticos em relação às “leis” que nos são propostas, sejam elas leis civis ou religiosas... Elas servem-nos e devem ser consideradas se nos ajudarem a ser mais humanos, mais fraternos, mais justos, mais comprometidos, mais coerentes, mais “família de Deus”; elas deixam de servir se geram escravidão, dependência, injustiça, opressão, marginalização, divisão, morte. O processo de discernimento das “leis” boas e más não pode, contudo, ser um processo solitário; mas deve ser um processo que fazemos, com o Espírito Santo, na partilha comunitária, no confronto fraterno com os irmãos, numa procura coerente e interessada do melhor caminho para chegarmos à vida plena e verdadeira.
 
 
 
 
 
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho

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