Todo ser humano, criado à imagem e semelhança de seu
Criador, é chamado a participar da bem-aventurança celeste mediante o
cumprimento de sua finalidade sobre a terra: com seu intelecto conhecer a Verdade
absoluta, e com sua vontade aderir ao Bem supremo, que é o próprio
Deus. Por isto, deverá viver uma vida reta, repleta de justiça,
contribuindo com seus valores para que também a sociedade, na qual está
inserido, atinja o mesmo objetivo.
Contudo, após o pecado das origens, o homem é
cotidianamente violentado pelas suas más paixões, por ter perdido a integridade
e o pleno domínio que possuía sobre seu corpo, outrora em perfeita
tranquilidade. Necessita ele agora de uma lei que ordene seus atos, afim de não
vir a desviar-se do caminho que o levará à divina beatitude. Esta lei é
denominada natural.
A temática do presente artigo será discorrer sobre a lei
natural que rege o agir do homem, auxiliando-o diretamente a
salvar-se.
1. A lei é a expressão da norma moral
Em qualquer época histórica ou lugar do mundo, sob
quaisquer condições, o homem sempre buscou a felicidade. Criatura de Deus, tem
as potências de sua alma direcionadas, ainda que não perceba, para a posse do
Bem Supremo. Assim, a inteligência
deseja sofregamente possuir o conhecimento absoluto, a vontade almeja amá-lo
ardentemente, e ambas não serão saciadas enquanto não se encontrarem com o ser
pleno e perfeito, ou seja, Deus. A este respeito comenta Gambra (1973, p.
275) que “Deus como criador da natureza humana é o bem supremo para o qual,
consciente ou inconscientemente, o homem tende ao desejar as diferentes coisas
que pretende, naquilo que possuem de particularmente bom”. Portanto, a felicidade completa, a realização
plena de suas potencialidades, só se encontrará na contemplação ou posse de
Deus. O ser humano caminha neste mundo qual peregrino em busca do mundo
sobrenatural em que espera entrar após a morte (p. 276).
Tendo uma finalidade, deve cada homem orientar sua
atuação moral rumo a ela, diria o conselheiro Acácio, profeta das evidências.
Aliás, entende-se a própria finalidade como “aquilo que move alguém a praticar
determinado ato; o bem (ou o mal) que a pessoa tem em vista ao agir”
(BETTENCOURT, 2003, p. 13). Esta orientação se faz através da norma de
moralidade, “regra ou medida a qual o sujeito pode reconhecer os seus atos como
bons ou maus, segundo se conformem ou não com ela” (GAMBRA, 1973, p. 279),
podendo ser denominada lei, que é a expressão da norma moral (p.
278).
A lei divina – não será tratada aqui a lei humana -,
aquela promulgada pelo próprio Deus que, como afirma São Tomás, “é uma
determinação da razão em vista do bem comum, promulgada por quem tem o encargo
da comunidade (apudBETTENCOURT, 2003, p. 17), pode dividir-se em três tipos:
eterna, natural e positiva.
Como a lei natural tem seu fundamento na lei divina,
faz-se necessário abordá-la sinteticamente para tornar o tema mais
claro.
2.1 A lei divina eterna
A lei divina eterna é considerada “o plano da sabedoria
divina, concebido desde toda a eternidade, para levar as criaturas ao seu Fim
supremo” (2003), ou ainda, como Santo Agostinho e São Tomás definiram, “a razão
ou vontade de Deus que manda conservar a ordem natural ou proíbe perturbá-la”
(apud FERNÁNDEZ, 2004, p. 164). Para um não cristão pode ser definida como a
ordem do cosmos. A Declaração sobre a Liberdade Religiosa, Dignitatis humanæ, do
Concílio Vaticano II, assim a ela se refere:
… a norma suprema da vida humana é a própria lei divina,
eterna, objetiva e universal, pela qual Deus ordena, dirige e governa todo o
mundo e os caminhos da comunidade humana, segundo os desígnios da Sua Sabedoria
e do Seu Amor (n. 3)
A lei divina natural é uma participação na lei eterna
pela criatura racional. É a mesma lei divina referente ao universo em geral, que
recebe o nome de natural na parte que regula o homem, fisicamente capaz de
cumpri-la ou violá-la (GAMBRA, 1973). Continua a este respeito a Declaração
Dignitatis humanæ, ao esclarecer o significado da lei eterna: “Deus torna o
homem participante de sua lei, de maneira que o homem, por suave disposição da
Providência divina, pode conhecer cada vez melhor a verdade imutável” (n.
3).
Por ser parte da
lei divina ela tem também Deus como seu legislador. Contudo não se encontra
escrita concretamente, pois tem um conteúdo geral e amplo que não permitiria
esta formulação. Ao contrário, encontra-se impressa na consciência de cada
indivíduo, de tal forma que por mais rude que seja um homem, este sabe se os
atos que pratica são bons ou maus (GAMBRA, 1973). A Constituição pastoral
Gaudim et Spes reafirmou esta doutrina:
Na intimidade da
consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve
obedecer. Chamando-o sempre a amar e praticar o bem, evitar o mal, no
momento oportuno a voz desta lei lhe faz ressoar nos ouvidos do coração: ‘faze
isto, evita aquilo’. De fato, o homem tem uma lei escrita por Deus em seu
coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de
acordo com essa lei. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do
homem, onde ele está a sós com Deus e onde ressoa a voz de Deus (n.
16).
Há certas escolas filosóficas que não a admitem, tais
como o positivismo e o empirismo. Explicam que no homem existem apenas certas
inclinações mais ou menos persistentes para atuar num certo sentido, porém
variáveis em função dos tempos e dos países. Aceitam como efetiva somente a lei
positiva humana. No entanto, na prática
percebe-se patentemente a existência da lei natural, porque os homens aceitam e
deixam certos princípios e normas, apesar de desviados e obscurecidos em certas
ocasiões, presidirem suas vidas independentemente do tempo e lugar.
De outro lado, alguns que constantemente não respeitam a
lei positiva do seu país, acatam em sua conduta pessoal normas de honestidade e
lealdade, que consideram invioláveis e válidas para si mesmos (GAMBRA,
1973).
A história confirma que os povos primitivos já percebiam
a existência da lei natural e a praticavam. Entre estes povos estavam os
greco-romanos. Preceitos tais como não
matar, não roubar, cultuar a divindade, eram reconhecidos em sua sociedade. Isto
se dava porque a lei natural é inteiramente racional. A razão aponta a
sua existência recorrendo a dois argumentos. O primeiro deles refere-se à
existência do próprio Deus:
Quem admite a existência de Deus Criador, admitirá que
tenha infundido dentro das criaturas livres, feitas à sua imagem, algumas
grandes normas que encaminhem o homem à consecução da vida eterna. Essa
orientação interior é precisamente o que se chama ‘a lei natural’ (BETTENCOURT,
2003, p. 18).
Deus não pode criar nada que não seja para si mesmo. Ao
designar o homem à bem-aventurança eterna, deu-lhe a lei natural para orientar
seus atos.
O segundo argumento baseia-se numa possível negação desta
lei:
A negação da lei
natural leva a dizer que os atos mais abjetos podem vir a ser considerados
virtudes, e vice-versa. Quem não conhece a lei natural, atribui ao estado civil
poder de definir o bem e o mal éticos; à vontade do Estado tornar-se a fonte da
moralidade e do Direito; desde princípio segue-se a legitimação do totalitarismo
e da tirania,de que testemunha o século XX (BETTENCOURT, 2003, p.
18).
A lei natural é que determina serem bons ou maus os atos
humanos.
Uma prova concreta de sua existência, ademais, é a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, pelas Nações Unidas, que
não é senão sua reafirmação. Enfim,
assim como no âmbito físico o homem segue certas leis (não comer pedras, não
deixar de dormir) também no plano moral o corpo exige dele certas normas. O
desprezo destas normas leva-o à desintegração psíquica, e quiçá física
(BETTENCOURT, 2003, p. 18).
As normas morais são também necessárias por duas razões,
como esclarece João Konzen,
a) A consciência moral da pessoa não capta de modo
intuitivo e direto os valores morais, mas pela mediação da fórmula normativa que
os expressa. Isso é uma exigência da psicologia do conhecimento humano. b) A
condição social do ser humano exige a expressão normativa dos valores morais
subjetivos, para possibilitar o necessário intercâmbio, a aprendizagem, a
crítica, a formulação de um ethoscomunitário, um consenso mediante a
reciprocidade das consciências (2007, p. 154-155)
De outro lado,
Deus, criador de todo o universo, tendo escolhido Israel como seu povo,
revelou-lhe sua lei, preparando-os assim para a vinda do
Messias. Aos pés da montanha, coberta por uma espessa nuvem, ao som de
uma trombeta, Moisés falou com Deus e Ele lhe respondeu através de trovões (Ex
19, 16-25). Por fim Deus “pronunciou” o Decálogo. Santo Agostinho comenta que
“Ele escreveu nas tábuas da lei aquilo que os homens não conseguiram ler em seus
corações” (apud Catecismo da Igreja Católica, 1962). Estas leis estavam
declaradas e autenticadas no interior da aliança da salvação. Deste modo, o
decálogo é uma luz para iluminar a consciência dos homens, manifestar-lhes os
caminhos de Deus e protegê-los do mal (2070).
Ora, encontrando-se na Sagrada Escritura, tal lei é parte
integrante e essencial da revelação. Delineiam os deveres imprescindíveis e, por
isso, os direitos humanos fundamentais, inerentes à natureza da pessoa
humana.
Ora, de acordo como o Catecismo da Igreja Católica “o Decálogo contém uma expressão privilegiada
da ‘lei natural’ (2070). Isto quer dizer que a substância moral existente
em ambos é a mesma, ainda que em um de forma mais completa, como escreveu Santo
Irineu, “Deus enraizara no coração dos homens os preceitos da lei natural.
Inicialmente Ele se contentou em lhos recordar. Foi o Decálogo (apud
2070).
Embora acessíveis à razão, os preceitos do da Lei de Deus
foram revelados, e para chegar a um conhecimento mais perfeito e correto das
exigências da lei natural, a humanidade pecadora tinha necessidade dessa
revelação. Conhece-se os Mandamentos divinos pela Revelação, proposta por
intermédio da Igreja e por meio da consciência moral (2071).
Enfim, este trabalho não abarca todo o conteúdo referente
à lei natural: ele é por demais extenso para limitar-se a tão pequeno espaço. Há
inúmeros livros e tratados de moral ricos em comentários e opiniões de diversos
autores que aqui, por brevidade e pelo desejo de se apresentar uma síntese
acadêmica sobre o referido assunto, não foram expostos. Além disso, para se
conhecer mais profundamente a lei natural, a normativa dada por Deus ao ser
humano a fim de obter a divina beatitude, é essencial uma densa análise das
outras leis.
Seja por meio do
Decálogo ou da lei natural impressa na alma, todos são convocados ao grau
eminente das virtudes, através do qual, realçando seus valores e os do próximo,
atingirão a idade perfeita de Cristo em sua plenitude.
REFERÊNCIAS
FERNÁNDEZ, Aurelio. Compêndio de Teología Moral. 3. ed.
Madrid: Ediciones Palavra, 2002.
FERNÁNDEZ, Aurelio. Moral Fundamental: Iniciação
Teológica. Tradução de Marta Mendonça. Lisboa: Diel, 2004.
GAMBRA, Rafael. Noções de Filosofia. Tradução de Levi
António Malho. Porto: Livraria Tavares Martins, 1973.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição revisada de acordo
com o texto oficial em latim. 11. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
JOSÉ SALIM, Emílio. Sciencia e Religião. Rio de Janeiro:
Escolas Profissionais Salesianas, 1937.
KONZEN, Pe. João. Ética Teológica Fundamental. São Paulo:
Paulinas, 2007.
VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes: Moral Fundamental.
Tradução de Pe. Ivo Montanhese. 5. ed. Aparecida, SP: Editora Santuário,
1978
TAVARES BETTENCOURT, Pe. Estevão. Curso de Teologia
Moral. Rio de Janeiro: Escola Mater Eclesiae, 2003.
VIDAL, Marciano. Nova moral fundamental: O lar teológico
da Ética. Aparecida, SP: Editora Santuário; São Paulo: Paulinas,
2003.
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