A
liturgia do 21º domingo do tempo comum fala-nos de opções. Recorda-nos que a
nossa existência pode ser gasta a perseguir valores efêmeros e estéreis, ou a
apostar nesses valores eternos que nos conduzem à vida definitiva, à realização
plena. Cada homem e cada mulher têm, dia a dia, de fazer a sua
escolha.
Na
primeira leitura, Josué convida as tribos de Israel reunidas em Siquém a
escolherem entre “servir o Senhor” e servir outros deuses. O Povo escolhe
claramente “servir o Senhor”, pois viu, na história recente da libertação do
Egito e da caminhada pelo deserto, como só Jahwéh pode proporcionar ao seu Povo
a vida, a liberdade, o bem estar e a paz.
O
Evangelho coloca diante dos nossos olhos dois grupos de discípulos, com opções
diversas diante da proposta de Jesus. Um dos grupos, prisioneiro da lógica do
mundo, tem como prioridade os bens materiais, o poder, a ambição e a glória; por
isso, recusa a proposta de Jesus. Outro grupo, aberto à ação de Deus e do
Espírito, está disponível para seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida;
os membros deste grupo sabem que só Jesus tem palavras de vida eterna. É este
último grupo que é proposto como modelo aos crentes de todos os
tempos.
Na
segunda leitura, Paulo diz aos cristãos de Éfeso que a opção por Cristo tem
consequências também ao nível da relação familiar. Para o seguidor de Jesus, o
espaço da relação familiar tem de ser o lugar onde se manifestam os valores de
Jesus, os valores do Reino. Com a sua partilha de amor, com a sua união, com a
sua comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser sinal e reflexo da união
de Cristo com a sua Igreja.
1ª
leitura - Josué 24,1-2a.15-17.18b - AMBIENTE
O
livro de Josué (de onde é tirada a nossa primeira leitura) abarca uma parte do
séc. XII a.C., desde a época da entrada na Terra Prometida das tribos do Povo de
Deus libertadas do Egito, até à morte de Josué. O livro oferece-nos uma visão
muito simplificada da ocupação de Canaan: as doze tribos, unidas sob a liderança
de Josué, realizaram várias expedições militares fulgurantes e apoderaram-se,
quase sem oposição, de todo o território anteriormente nas mãos dos cananeus…
Historicamente, contudo, as coisas não se passaram nem de forma tão fácil, nem
de forma tão linear: é mais verosímil a versão apresentada no Livro dos Juízes e
que fala de uma conquista lenta e difícil (cf. Jz 1), incompleta (cf. Jz 13,1-6;
17,12-16), que não foi obra de um povo unido à volta de um chefe único, mas de
tribos que fizeram a guerra isoladamente.
O
Livro de Josué, antes de ser um livro de história, é um livro de catequese. O
objetivo dos autores deuteronomistas que o escreveram era destacar o poder
imenso de Jahwéh, posto ao serviço do seu Povo: foi Deus (e não a capacidade
militar das tribos) que, com os seus prodígios, ofereceu a Israel a Terra
Prometida; ao Povo resta-lhe aceitar os dons de Deus e responder-Lhe com a
fidelidade à Aliança e aos mandamentos.
O
texto que nos é hoje proposto situa-nos na fase final da vida de Josué. Sentindo
aproximar-se a morte, Josué teria reunido em Siquém (no centro do país) os
líderes das diversas tribos do Povo de Deus e ter-lhes-ia proposto uma renovação
do seu compromisso com Jahwéh. De acordo com Jos 24,15, Josué teria colocado as
coisas da seguinte forma: “escolhei hoje a quem quereis servir… porque eu e a
minha casa serviremos o Senhor”.
Na
versão do autor deuteronomista a quem devemos esta notícia, Josué parece
dirigir-se a um grupo de tribos que partilha uma fé comum em Jahwéh. Estaremos
diante de uma assembléia que reúne essas “doze tribos” que, mais tarde (na época
de David) vão constituir uma unidade nacional? Alguns biblistas pensam que não.
Entre as tribos presentes não estaria certamente a tribo de Judá, já que os
contactos entre Judá e a “casa de José” só se estabeleceram na época do rei
David. A “casa” de Josué a que o texto se refere é certamente constituída pelas
tribos do centro do país – Efraim, Benjamim e Manassés – que há muito tempo
tinham aderido a Jahwéh e à Aliança. E as outras tribos, convidadas a
comprometer-se com Jahwéh? Provavelmente, o convite a escolher entre “o Senhor”
e os outros deuses (cf. Jos 24,14) dirige-se às tribos do norte do país que, sem
dúvida, não abandonaram a Palestina desde a época dos patriarcas (e que,
portanto, não viveram a experiência do Egito, nem fizeram a experiência de
encontro com Jahwéh, o Deus libertador).
Talvez
a “assembléia de Siquém” referida em Jos 24 seja a primeira tentativa histórica
de estabelecer laços entre as tribos do centro da Palestina (Efraim, Benjamim e
Manassés – as tribos que viveram a experiência do Egito, a libertação, a
caminhada pelo deserto e a Aliança com Jahwéh) e as tribos do norte (Issacar,
Zabulón, Neftali, Asher e Dan – tribos que nem sequer estiveram no Egito). A
ligação far-se-ia à volta de uma fé comum num mesmo Deus. A união das diversas
tribos do norte e do centro não se deu, contudo, de uma vez; mas foi uma
caminhada lenta e progressiva, que só se completou muito tempo depois de
Josué.
O
ponto de partida para o texto que nos é proposto é o fato histórico em si
(provavelmente, uma assembléia em Siquém, onde Josué propôs às tribos do norte
que aceitassem Jahwéh como seu Deus). No entanto, o autor deuteronomista
responsável por este texto pegou na notícia histórica e transformou-a numa
catequese sobre o compromisso que Israel assumiu para com Jahwéh. O seu objetivo
é convidar os israelitas da sua época (séc. VII a.C.) a não se deixarem seduzir
por outros deuses e a manterem-se fiéis à Aliança.
MENSAGEM
Estamos,
portanto, em Siquém, com “todas as tribos de Israel” (v. 1) reunidas à volta de
Josué. Na interpelação que dirige às tribos, Josué começa por elencar alguns
momentos capitais da história da salvação, mostrando ao Povo como Jahwéh é um
Deus em quem se pode confiar; as suas ações salvadoras e libertadoras em favor
de Israel são uma prova mais do que suficiente do seu poder e da sua fidelidade
(cf. Jos 24,2-13).
Depois
dessa introdução, Josué convida os representantes das tribos presentes a tirarem
as devidas consequências e a fazerem a sua opção. É necessário escolher entre
servir esse Senhor que libertou Israel da opressão, que o conduziu pelo deserto
e que o introduziu na Terra Prometida, ou servir os deuses dos mesopotâmios e os
deuses dos amorreus. Josué e a sua família já optaram: eles escolheram servir
Jahwéh (v. 15).
A
resposta do Povo é a esperada. Todos manifestam a sua intenção de servir o
Senhor, em resposta à sua acção libertadora e à sua proteção ao longo da
caminhada pelo deserto (vs. 16-18). Israel compromete-se a renunciar a outros
deuses e a fazer de Jahwéh o seu Deus.
A
aceitação de Jahwéh como Deus de Israel é apresentada, não como uma obrigação
imposta a um grupo de escravos, mas como uma opção livre, feita por pessoas que
fizeram uma experiência de encontro com Deus e que sabem que é aí que está a sua
realização e a sua felicidade. Depois de percorrer com Jahwéh os caminhos da
história, Israel constatou, sem margem para dúvidas, que só em Deus pode
encontrar a liberdade e a vida em plenitude.
ATUALIZAÇÃO
¨
O problema fundamental posto pelo autor do nosso texto é o das opções: “escolhei
hoje a quem quereis servir” – diz Josué ao Povo reunido. É uma questão que nunca
deixará de nos ser posta… Ao longo da nossa caminhada pela vida, vamos fazendo a
experiência do encontro com esse Deus libertador e salvador que Israel descobriu
na sua marcha pela história; mas encontramo-nos também, muito frequentemente,
com outros deuses e outras propostas que parecem garantir-nos a vida, o êxito, a
realização, a felicidade e que, quase sempre, nos conduzem por caminhos de
escravidão, de dependência, de desilusão, de infelicidade. A expressão “escolhei
hoje a quem quereis servir” interpela-nos acerca da nossa servidão ao dinheiro,
ao êxito, à fama, ao poder, à moda, às exigências dos valores que a opinião
pública consagrou, ao reconhecimento público… Naturalmente, nem todos os valores
do mundo são geradores de escravidão ou incompatíveis com a nossa opção por
Deus… Temos, no entanto, que repensar continuamente a nossa vida e as nossas
opções, a fim de não corrermos atrás de falsos deuses e de não nos deixarmos
seduzir por propostas falsas de realização e de felicidade. O verdadeiro crente
sabe que não pode prescindir de Deus e das suas propostas; e sabe que é nesse
Deus que nunca desilude aqueles que n’Ele confiam que pode encontrar a sua
realização plena.
¨
Israel aceitou “servir o Senhor” e comprometer-se com Ele, não por obrigação,
mas pela convicção de que era esse o caminho para a sua felicidade. Por vezes,
Deus é visto como um concorrente do homem e os seus mandamentos como uma
proposta que limita a liberdade e a independência do homem… Na verdade, o
compromisso com Deus e a aceitação das suas propostas não é um caminho de
servidão, mas um caminho que conduz o homem à verdadeira liberdade e à sua
realização plena. O caminho que Deus nos propõe – caminho que somos livres de
aceitar ou não – é um caminho que nos liberta do egoísmo, do orgulho, da
auto-suficiência, da escravidão dos bens materiais e que nos projeta para o
amor, para a partilha, para o serviço, para o dom da vida, para a verdadeira
felicidade.
¨
Josué, o líder da comunidade do Povo de Deus, tem um papel fundamental no
sentido de interpelar o Povo e de testemunhar a sua opção por Deus. Não é um
líder que diz belas palavras e apresenta belas propostas, mas que desmente com a
vida aquilo que diz… É um líder plenamente comprometido com Deus e que
testemunha, com a própria vida, essa opção. Josué poderia ser um exemplo para
todos aqueles que têm responsabilidades na condução da comunidade do Povo de
Deus em marcha pela história. O seu exemplo convida aqueles que presidem à
comunidade do Povo de Deus a serem uma voz de Deus que interpela e que questiona
aqueles que caminham ao seu lado; e convida também os responsáveis pelas
comunidades cristãs a testemunharem com a própria vida aquilo que ensinam ao
Povo.
2ª
leitura – Ef. 5,21-32 - AMBIENTE
Continuamos
a ler a parte moral e parenética da Carta aos Efésios (cf. Ef. 4,1-6,20). Nessa
parte, Paulo lembra aos crentes a opção que fizeram no dia do seu batismo e que
os obriga a viver como Homens Novos, à imagem de Jesus.
A
vida desse Homem Novo que deixou as trevas e escolheu a luz deve traduzir-se em
atitudes concretas. Por isso, Paulo enumera, a dado passo da sua reflexão, um
conjunto de normas de conduta, através das quais se deve manifestar a opção que
o crente assumiu no dia do seu batismo.
Na
secção de Ef. 5,21-6,9 (a que o texto que hoje nos é proposto pertence), Paulo
apresenta as normas que devem reger as relações familiares. De forma especial,
Paulo refere-se aos deveres dos esposos, seguramente porque vê na sua união uma
figura da união de Cristo com a sua Igreja. Trata-se de um dos temas mais
importantes da teologia desenvolvida na Carta aos
Efésios.
MENSAGEM
O
nosso texto começa com um princípio geral que deve regular as relações entre os
diversos membros da família cristã: “sede submissos uns aos outros no temor de
Cristo” (Ef. 5,21). O “ser submisso” expressa aqui a condição daquele que está
permanentemente numa atitude de serviço simples e humilde, sem deixar que a sua
relação com o irmão seja dominada pelo orgulho ou marcada por atitudes de
prepotência. A expressão “no temor de Cristo” recorda aos crentes que o Cristo
do amor, do serviço, da partilha é o exemplo e o modelo que eles devem ter
sempre diante dos olhos.
Depois,
Paulo dirige-se aos vários membros da família e propõe-lhes normas concretas de
conduta. O texto que nos é proposto, contudo, apenas conservou a parte que se
refere à relação dos esposos um com o outro (na continuação, Paulo falará também
da conduta dos filhos para com os pais, dos pais para com os filhos, dos
senhores para com os escravos e dos escravos para com os senhores – cf. Ef.
6,1-9).
Às
mulheres, Paulo pede a submissão aos maridos, porque “o marido é a cabeça da
mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo” (v. 23). Esta afirmação –
que, à luz da nossa sensibilidade e dos nossos esquemas mentais modernos parece
discriminatória – deve ser entendida no contexto sócio-cultural da época, onde o
homem aparece como a referência suprema da organização do núcleo familiar. De
qualquer forma, a “submissão” de que Paulo fala deve ser sempre entendida no
sentido do amor e do serviço e não no sentido da
escravidão.
Aos
maridos, Paulo recomenda que amem as suas esposas, “como Cristo amou a Igreja e
Se entregou por ela” (vers. 25). Não se trata de um amor qualquer, mas de um
amor igual ao de Cristo pela sua comunidade – isto é, de um amor generoso e
total, que é capaz de ir até ao dom da própria vida. Para Paulo, portanto, o
amor dos maridos pelas esposas deve ser um amor completamente despido de
qualquer sinal de egoísmo e de prepotência; e deve ser um amor cheio de
solicitude, que se manifesta em atitudes de generosidade, de bondade e de
serviço, que se faz dom total à pessoa a quem se ama.
Neste
contexto, Paulo desenvolve a sua teologia da relação entre Cristo e a Igreja,
para depois tirar daí as devidas consequências para a união dos esposos
cristãos… Cristo santificou a Igreja, purificando-a “no batismo da água pela
palavra da vida” (v. 26). Há aqui, certamente, uma alusão ao batismo cristão
(inspirada, provavelmente, nas cerimônias preparatórias do matrimônio, que
contemplavam o “banho” da noiva antes de se apresentar diante do noivo), pelo
qual Cristo edifica a sua comunidade e a purifica do pecado. O batismo é o
momento em que Cristo oferece a vida plena à sua Igreja e em que a Igreja se
compromete com Cristo numa comunidade de amor. A partir desse momento, Cristo e
a Igreja formam um só corpo… Como Cristo e a Igreja formam um só corpo, do mesmo
modo marido e esposa, comprometidos numa comunidade de amor, formam um só corpo:
“por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua mulher e serão dois numa
só carne” (v. 31). A expressão “uma só carne” aqui usada por Paulo não alude só
à união carnal dos esposos, mas a toda a sua vida conjugal, feita de um empenho
quotidiano na vivência do amor, da fidelidade e da partilha de toda a
existência.
Este
paralelismo estabelecido por Paulo entre a união de Cristo e da Igreja e o amor
que une os esposos dá um significado especial ao casamento cristão: a vocação
dos esposos é anunciar e testemunhar, com o seu amor e a sua união, o amor de
Cristo pela sua Igreja. Dito de outra forma: a união dos esposos cristãos deve
ser, aos olhos do mundo, um sinal e um reflexo do “mistério” de amor que une
Cristo e a Igreja.
ATUALIZAÇÃO
¨
O compromisso com Jesus e com a proposta de vida nova que Ele veio apresentar
mexe com a totalidade da vida do homem e tem consequências em todos os níveis da
existência, nomeadamente ao nível da relação familiar. Para o seguidor de Jesus,
o espaço da relação familiar tem de ser também o lugar onde se manifestam os
valores de Jesus, os valores do Reino. Com a sua partilha de amor, com a sua
união, com a sua comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser sinal e
reflexo da união de Cristo com a sua Igreja. “Os esposos, feitos à imagem de
Deus e estabelecidos numa ordem verdadeiramente pessoal, estejam unidos em
comunhão de afeto e de pensamento e com mútua santidade de modo que, seguindo a
Cristo, princípio da vida, se tornem, pela fidelidade do seu amor, através das
alegrias e sacrifícios da sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que
Deus revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição” (Gaudium et Spes,
52).
¨ Para
Paulo, o amor que une o marido e a esposa deve ser um amor como o de Cristo pela
sua Igreja. Desse amor devem, portanto, estar ausentes quaisquer sinais de
egoísmo, de prepotência, de exploração, de injustiça… Deve ser um amor que se
faz doação total ao outro, que é paciente, que não é arrogante nem orgulhoso,
que compreende os erros e as falhas dos outro, que tudo desculpa, tudo crê, tudo
espera, tudo suporta (cf. 1Cor. 13,4-7).
¨
Para Paulo, o amor que une a esposa e o marido deve ser um amor que se faz
serviço simples e humilde. Não se trata de exigir submissão de um a outro, mas
trata-se de pedir que os crentes manifestem total disponibilidade para servir e
para dar a vida, sem esperar nada em troca. Trata-se de seguir o exemplo de
Cristo que não veio para afirmar a sua superioridade e para ser servido, mas
para servir e dar vida. O matrimônio cristão não pode tornar-se uma competição
para ver quem tem mais direitos ou mais obrigações, mas uma comunhão de vida de
pessoas que, a exemplo de Cristo, fazem da sua existência uma partilha e um
serviço a todos os irmãos que caminham ao seu lado.
¨
Paulo utiliza, neste texto, a propósito das mulheres, uma palavra que não
devemos absolutizar: “submissão”. Esta palavra deve ser entendida no contexto
sócio-cultural da época, em que o marido era considerado a referência
fundamental da ordem familiar. É claro que, nos dias de hoje, Paulo não teria
usado este termo para falar da relação da esposa com o marido. A afirmação de
Paulo não pode servir para fundamentar qualquer tipo de discriminação contra as
mulheres… Aliás, Paulo dirá, noutras circunstâncias, que “não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só
em Cristo Jesus” (Gl. 3,28).
Evangelho
– Jo 6,60-69 - AMBIENTE
Estamos
no final do episódio que começou com a multiplicação dos pães e dos peixes (cf.
Jo 6,1-15) e que continuou com o “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59).
Trata-se de um episódio atravessado por diversos equívocos e onde se manifesta a
perplexidade e a confusão daqueles que escutam as palavras de Jesus… A multidão
esperava um messias rei que lhe oferecesse uma vida confortável e pão em
abundância e Jesus mostrou que não veio “dar coisas”, mas oferecer-Se a Ele
próprio para que a humanidade tivesse vida; a multidão esperava de Jesus uma
proposta humana de triunfo e de glória e Jesus convidou-a a identificar-se com
Ele e a segui-l’O no caminho do amor e do dom da vida até à morte… Os
interlocutores de Jesus perceberam claramente que Jesus os tinha colocado diante
de uma opção fundamental: ou continuar a viver numa lógica humana, virada para
os bens materiais e para as satisfações mais imediatas, ou o assumir a lógica de
Deus, seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida um dom de amor para ser
partilhado. Instalados nos seus esquemas e preconceitos, presos a aspirações e
sonhos demasiado materiais, desiludidos com um programa que lhes parecia
condenado ao fracasso, os interlocutores de Jesus recusaram-se a identificar-se
com Ele e com o seu programa.
O
nosso texto mostra-nos a reação negativa de “muitos discípulos” às propostas que
Jesus faz. Nem todos os discípulos estão dispostos a identificar-se com Jesus
(“comer a sua carne e beber o seu sangue”) e a oferecer a sua vida como dom de
amor que deve ser partilhado com toda a humanidade. Temos de situar esta
“catequese” no contexto em que vivia a comunidade joânica, nos finais do séc. I…
A comunidade cristã era discriminada e perseguida; muitos discípulos
afastavam-se e trilhavam outros caminhos, recusando-se a seguir Jesus no caminho
do dom da vida. Muitos cristãos, confusos e perplexos, perguntavam: para ser
cristão é preciso percorrer um caminho tão radical e de tanta exigência? A
proposta de Jesus será, efetivamente, um caminho de vida plena, ou um caminho de
fracasso e de morte? É a estas questões que o “catequista” João vai tentar
responder.
MENSAGEM
A
perícope divide-se em duas partes. A primeira (vs. 60-66) descreve o protesto de
um grupo de discípulos face às exigências de Jesus; a segunda (vs. 67-69)
apresenta a resposta dos Doze à proposta que Jesus faz. Estes dois grupos (os
“muitos discípulos” da primeira parte e os “Doze” da segunda parte) representam
duas atitudes distintas face a Jesus e às suas
propostas.
Para
os “discípulos” de que se fala na primeira parte do nosso texto, a proposta de
Jesus é inadmissível, excessiva para a força humana (v. 60). Eles não estão
dispostos a renunciar aos seus próprios projetos de ambição e de realização
humana, a embarcar com Jesus no caminho do amor e da entrega, a fazer da própria
vida um serviço e uma partilha com os irmãos. Esse caminho parece-lhes, além de
demasiado exigente, um caminho ilógico. Confrontados com a radicalidade do
caminho do Reino, eles não estão dispostos a arriscar.
Na
resposta à objeção desses “discípulos”, Jesus assegura-lhes que o caminho que
propõe não é um caminho de fracasso e de morte, mas é um caminho destinado à
glória e à vida eterna. A “subida” do Filho do Homem, após a morte na cruz, para
reentrar no mundo de Deus, será a “prova provada” de que a vida oferecida por
amor conduz à vida em plenitude (vs. 61-62). Esses “discípulos” não estão
dispostos a acolher a proposta de Jesus porque raciocinam de acordo com uma
lógica humana, a lógica da “carne”; só o dom do Espírito possibilitará aos
crentes perceber a lógica de Jesus, aderir à sua proposta e seguir Jesus nesse
caminho do amor e da doação que conduz à vida (v. 63).
Na
realidade, esses discípulos que raciocinam segundo a lógica da “carne” seguem
Jesus pelas razões erradas (a glória, o poder, a fácil satisfação das
necessidades materiais mais básicas). A sua adesão a Jesus é apenas exterior e
superficial. Jesus tem consciência clara dessa realidade. Ele sabe até que um
dos “discípulos” O vai trair e entregar nas mãos dos líderes judaicos (v. 64).
De qualquer forma, Jesus encara a decisão dos discípulos com tranquilidade e
serenidade. Ele não força ninguém; apenas apresenta a sua proposta – proposta
radical e exigente – e espera que o “discípulo” faça a sua opção, com toda a
liberdade.
Em
última análise, a vida nova que Jesus propõe é um dom de Deus, oferecido a todos
os homens (v. 65). O termo deste movimento que o Pai convida o “discípulo” a
fazer é o encontro com Jesus e a adesão ao seu projeto. Se o homem não está
aberto à ação do Pai e recusa os dons de Deus, não pode integrar a comunidade
dos discípulos e seguir Jesus.
A
primeira parte da cena termina com a retirada de “muitos discípulos” (v. 66). O
programa exposto por Jesus, que exige a renúncia às lógicas humanas de ambição e
de realização pessoal, é recusado… Esses “discípulos” mostram-se absolutamente
indisponíveis para percorrer o caminho de Jesus.
Confirmada
a deserção desses “discípulos”, Jesus pede ao grupo mais restrito dos “Doze” que
façam a sua escolha: “também vós quereis ir embora?” (v. 67). Repare-se que
Jesus não suaviza as suas exigências, nem atenua a dureza das suas palavras… Ele
está disposto a correr o risco de ficar sem discípulos, mas não está disposto a
prescindir da radicalidade do seu projeto. Não é uma questão de teimosia ou de
não querer dar o braço a torcer; mas Jesus está seguro que o caminho que Ele
propõe – o caminho do amor, do serviço, da partilha, da entrega – é o único
caminho por onde é possível chegar à vida plena… Por isso, Ele não pode mudar
uma vírgula ao seu discurso e à sua proposta. O caminho para a vida em plenitude
já foi claramente exposto por Jesus; resta agora aos “discípulos” aceitá-lo ou
rejeitá-lo.
Confrontados
com esta opção fundamental, os “Doze” definem claramente o caminho que querem
percorrer: eles aceitam a proposta de Jesus, aceitam segui-l’O no caminho do
amor e da entrega. Quem responde em nome do grupo (uso do plural) é Simão Pedro:
“Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (v. 68). A
comunidade reconhece, pela voz de Pedro, que só no caminho proposto por Jesus
encontra vida definitiva. Os outros caminhos só geram vida efêmera e parcial e,
com frequência, conduzem à escravidão e à morte; só no caminho que Jesus acabou
de propor (e que “muitos” recusaram) se encontra a felicidade duradoura e a
realização plena do homem (v. 68).
É
porque reconhece em Jesus o único caminho válido para chegar à vida eterna que a
comunidade dos “Doze” adere ao que Ele propõe (“cremos” – v. 69a). A “fé”
(adesão a Jesus) traduz-se no seguimento de Jesus, na identificação com Ele, no
compromisso com a proposta que Ele faz (“comer a carne e beber o sangue” que
Jesus oferece e que dão a vida eterna).
A
resposta posta na boca de Pedro é precisamente a resposta que a comunidade
joânica (a tal comunidade que vive a sua fé e o seu compromisso cristão em
condições difíceis e que, por vezes, tem dificuldade em renunciar à lógica do
mundo e apostar na radicalidade do Evangelho de Jesus) é convidada a dar:
“Senhor, as tuas propostas nem sempre fazem sentido à luz dos valores que
governam o nosso mundo; mas nós estamos seguros de que o caminho que Tu nos
indicas é um caminho que leva à vida eterna. Queremos escutar as tuas palavras,
identificar-nos contigo, viver de acordo com os valores que nos propões,
percorrer contigo esse caminho do amor e da doação que conduz à vida
eterna.
ATUALIZAÇÃO
¨
O Evangelho deste domingo põe claramente a questão das opções que nós,
discípulos de Jesus, somos convidados a fazer… Todos os dias somos desafiados
pela lógica do mundo, no sentido de alicerçarmos a nossa vida nos valores do
poder, do êxito, da ambição, dos bens materiais, da moda, do “politicamente
correto”; e todos os dias somos convidados por Jesus a construir a nossa
existência sobre os valores do amor, do serviço simples e humilde, da partilha
com os irmãos, da simplicidade, da coerência com os valores do Evangelho… É
inútil esconder a cabeça na areia: estes dois modelos de existência nem sempre
podem coexistir e, frequentemente, excluem-se um ao outro. Temos de fazer a
nossa escolha, sabendo que ela terá consequências no nosso estilo de vida, na
forma como nos relacionamos com os irmãos, na forma como o mundo nos vê e,
naturalmente, na satisfação da nossa fome de felicidade e de vida plena. Não
podemos tentar agradar a Deus e ao diabo e viver uma vida “morna” e sem
exigências, procurando conciliar o inconciliável. A questão é esta: estamos ou
não dispostos a aderir a Jesus e a segui-l’O no caminho do amor e do dom da
vida?
¨
Os “muitos discípulos” de que fala o texto que nos é proposto não tiveram a
coragem para aceitar a proposta de Jesus. Amarrados aos seus sonhos de riqueza
fácil, de ambição, de poder e de glória, não estavam dispostos a trilhar um
caminho de doação total de si mesmos em benefício dos irmãos. Este grupo
representa esses “discípulos” de Jesus demasiado comprometidos com os valores do
mundo, que até podem frequentar a comunidade cristã, mas que no dia a dia vivem
obcecados com a ampliação da sua conta bancária, com o êxito profissional a todo
o custo, com a pertença à elite que frequenta as festas sociais, com o aplauso
da opinião pública… Para estes, as palavras de Jesus “são palavras duras” e a
sua proposta de radicalidade é uma proposta inadmissível. Esta categoria de
“discípulos” não é tão rara como parece… Em diversos graus, todos nós sentimos,
por vezes, a tentação de atenuar a radicalidade da proposta de Jesus e de
construir a nossa vida com valores mais condizentes com uma visão “light” da
existência. É preciso estarmos continuamente numa atitude de vigilância sobre os
valores que nos norteiam, para não corrermos o risco de “virar as costas” à
proposta de Jesus.
¨
Os “doze” ficaram com Jesus, pois estavam convictos de que só Ele tem “palavras
que comunicam a vida definitiva”. Eles representam aqueles que não se conformam
com a banalidade de uma vida construída sobre valores efêmeros e que querem ir
mais além; representam aqueles que não estão dispostos a gastar a sua vida em
caminhos que só conduzem à insatisfação e à frustração; representam aqueles que
não estão dispostos a conduzir a sua vida ao sabor da preguiça, do comodismo, da
instalação; representam aqueles que aderem sinceramente a Jesus, se comprometem
com o seu projeto, acolhem no coração a vida que Jesus lhes oferece e se
esforçam por viver em coerência com a opção por Jesus que fizeram no dia do seu
batismo. Atenção: esta opção pelo seguimento de Jesus precisa de ser
constantemente renovada e constantemente vigiada, a fim de que o nível da
coerência e da exigência se mantenha.
¨
Na cena que o Evangelho de hoje nos traz, Jesus não parece estar tão preocupado
com o número de discípulos que continuarão a segui-l’O, quanto com o manter a
verdade e a coerência do seu projeto. Ele não faz cedências fáceis para ter
êxito e para captar a benevolência e os aplausos das multidões, pois o Reino de
Deus não é um concurso de popularidade… Não adianta escamotear a verdade: o
Evangelho que Jesus veio propor conduz à vida plena, mas por um caminho que é de
radicalidade e de exigência. Muitas vezes tentamos “suavizar” as exigências do
Evangelho, a fim de que ele seja mais facilmente aceite pelos homens do nosso
tempo… Temos de ter cuidado para não desvirtuarmos a proposta de Jesus e para
não despojarmos o Evangelho daquilo que ele tem de verdadeiramente
transformador. O que deve preocupar-nos não é tanto o número de pessoas que vão
à Igreja; mas é, sobretudo, o grau de radicalidade com que vivemos e
testemunhamos no mundo a proposta de Jesus.
¨
Um dos elementos que aparece nitidamente no nosso texto é a serenidade com que
Jesus encara o “não” de alguns discípulos ao projeto que Ele veio propor. Diante
desse “não”, Jesus não força as coisas, não protesta, não ameaça, mas respeita
absolutamente a liberdade de escolha dos seus discípulos. Jesus mostra, neste
episódio, o respeito de Deus pelas decisões (mesmo erradas) do homem, pelas
dificuldades que o homem sente em comprometer-se, pelos caminhos diferentes que
o homem escolhe seguir. O nosso Deus é um Deus que respeita o homem, que o trata
como adulto, que aceita que ele exerça o seu direito à liberdade. Por outro
lado, um Deus tão compreensivo e tolerante convida-nos a dar mostras de
misericórdia, de respeito e de compreensão para com os irmãos que seguem
caminhos diferentes, que fazem opções diferentes, que conduzem a sua vida de
acordo com valores e critérios diferentes dos nossos. Essa “divergência” de
perspectivas e de caminhos não pode, em nenhuma circunstância, afastar-nos do
irmão ou servir de pretexto para o marginalizarmos e para o excluirmos do nosso
convívio.
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas
Carvalho
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