O iniciador do movimento protestante é
Martinho Lutero, que, a partir de 1517, pretendeu reformar o credo e as
instituições cristãs, e por isto se afastou da Igreja, dando início
ao Luteranismo.
Ao lado deste, enumeram-se
o Calvinismo (que absorveu o Zwinglianismo ou
a reforma de Zwingli em Zürich, Suíça), movimento afim ao de Lutero, empreendido
por Calvino em Genebra, Suíça, e o Anglicanismo, reforma
congênere oriunda na Inglaterra. Estas três denominações (Luteranismo,
Calvinismo e Anglicanismo) representam o que se pode chamar «Igrejas
protestantes tradicionais», todas iniciadas no séc. XVI (os Anglicanos nem
sempre aceitam a designação de «protestantes», embora, por seus princípios
doutrinários, se filiem ao Protestantismo).
Das três Igrejas protestantes derivaram-se
centenas de sociedades menores, que não mais recebem o nome
de Igrejas, mas o de seitas, visto serem
movidas por espírito diverso do das Igrejas; são reformas da reforma,
dissidências da dissidência: metodistas, batistas, congregacionais,
quakers, etc.
Esses
múltiplos grupos protestantes autônomos professam credos diferentes, chegando
alguns a negar a própria Divindade de Cristo; o liberalismo doutrinário
predomina entre eles. Contudo podem-se enunciar três grandes teses como
características dos diversos tipos de Protestantismo:
1) a justificação pela fé sem as obras;
2) a Bíblia como única fonte de fé,
interpretada segundo o «livre exame»;
3) a negação de intermediários entre
Deus e o crente.
1.
Três pontos capitais
a) A
justificação pela fé sem as obras
Lutero considerava esta tese como
central dentro da sua ideologia: «artigo do qual nada se poderá subtrair, ainda
que o céu e a terra venham a desmoronar» (Artigos de Schmakalde,
1537).
Qual o significado de tal proposição e donde
lhe vem a sua importância no Protestantismo?
A resposta não é difícil; deriva-se da
situação psicológica em que o reformador se achou em certa fase de sua vida.
Lutero fez-se frade agostiniano, mais movido pelo medo (tendo escapado à
fulminação por um raio, prometeu entrar no convento) do que por autêntica
vocação. No claustro, experimentou a concupiscência, à qual opôs penitência e
ascese. Sentindo, porém, continuamente as más tendências em sua natureza, entrou
em angustiosa crise: queria libertar-se da concupiscência, mas não o conseguia…
Um belo dia julgou ter encontrado a solução: apelando para São Paulo (principal
mente para a epístola aos Romanos), começou a ensinar que a concupiscência é
realmente invencível; por conseguinte vão é procurar dominá-la mediante
penitência e boas obras. Nem Deus requer isto do homem; basta aceitar Cristo
como Salvador, isto é, crer com confiança que Deus Pai, em vista dos méritos de
Jesus, não leva em conta os pecados do indivíduo; a fé confiante («fiducial»),
independentemente de boas obras, faz que Deus nos recubra com o manto dos
méritos de Cristo, declarando-nos justos.
Tal declaração é meramente legal ou
extrínseca, não afeta o interior da natureza humana; esta, mesmo depois de
«justificada», nada pode fazer para obter a salvação eterna, pois se acha como
que aniquilada pelo pecado, reduzida à categoria de instrumento inerte nas mãos
de Deus ou de serra nas mãos do carpinteiro (assim se formula a famosa tese do
«servo arbítrio» de Lutero).
Neste quadro de idéias, vê-se que não se pode
falar de cooperação do homem com a graça de Deus, nem de méritos. Lutero
e Calvino reconheciam que a caridade nasce da fé, como a maçã provém da
macieira, mas (acrescentavam) não são a caridade e suas obras que importam (ou
ao menos… que importam em primeiro lugar); o crente pode estar certo da salvação
eterna em qualquer fase da sua vida, desde que mantenha a sua fé confiante.
Donde o famoso adágio de Lutero «Pecco fortiter, sed fortius credo. — Peco
intensamente, mas ainda mais intensamente creio» (carta a Melancton, 1º de
agosto de 1521); com estas palavras, o reformador não recomendava o pecado, mas
queria dizer que a simples confiança no Salvador ainda tem mais peso no processo
de salvação do que a culpa do homem.
Calvino, do qual muito se inspiraram os
presbiterianos e batistas, acentuou ao extremo estas idéias, afirmando que Deus
predestina infalivelmente para a salvação eterna, de sorte que, se o homem não
perde a sua fé, pode ter certeza de que chegará à bem-aventurança celeste (donde
se deriva para o crente suavíssimo
reconforto).
b) A Bíblia,
única fonte de fé, sujeita ao «livre
exame»
A fim de dar fundamento à inovadora tese
da justificação pela fé fiducial, os reformadores precisavam de fazer uma
revisão nas fontes da Revelação cristã. Estas são a Escritura Sagrada e a
Tradição oral apregoada pelo magistério da Igreja. Resolveram, pois, rejeitar a Tradição ou o
magistério, para só dar crédito à Palavra escrita ou à Bíblia. Esta, para o
protestante, tudo contém: é, por si mesma, clara em tudo que concerne a salvação
eterna.
Calvino se exprime a respeito em termos
muito fortes:
«Quanto à objeção que os católicos nos
fazem, perguntando-nos de quem, donde e como temos a convicção de que a
Escritura provém de Deus, é semelhante à questão de quem quisesse saber como
aprendemos a distinguir a luz das trevas, o branco do negro, o doce do amargo. A
Escritura, com efeito, tem seu modo de se manifestar, modo tão notório e seguro
que se compara à maneira como as coisas brancas e negras manifestam sua cor e as
coisas doces e amargas manifestam o seu sabor» (Institution chrétienne I 7 &
3).
Para ajudar a pessoa a ler e entender a
Bíblia, o Espírito Santo dá seu testemunho interior, iluminando a mente e
dirigindo o coração. Em consequência, cada crente tem o direito de «deduzir» da
Bíblia as verdades que ele, em seu bom senso, julgue haverem sido a ele
ensinadas pelo Espírito Santo.
Assim o Protestantismo atribui ao individuo
uma prerrogativa que ele nega à Igreja visível e hierárquica: esta pode errar no
seu ensinamento, corrompendo o depósito da fé (apesar das promessas de Cristo,
seu Fundador); toca, por conseguinte, a cada cristão, guiado pelo Espírito
Santo, encontrar de novo a Palavra de Deus perdida pela
Igreja…
A reação do crente protestante contra o
magistério eclesiástico é, aliás, típica expressão da mentalidade da
Renascença: no séc. XVI o homem criou, sim, uma consciência nova dentro de si,
tendente a pôr em cheque qualquer tipo de autoridade, para mais exaltar o
individuo.
«O que rejeito absolutamente é a
autoridade», escrevia Alexandre Vinet (1797-1847), chefe do movimento dito «da
Igreja Livre» na Suíça ocidental calvinista. O Evangelho, para Lutero, devia ser
não somente uma escola de obrigações, mas também uma via de libertações (entre
as quais, a libertação frente à autoridade religiosa
visível).
c)
A negação de intermediários entre Deus e o
crente
O Protestantismo dá valor decisivo à
atitude do individuo diante de Deus; segundo a ideologia reformada, é a fé subjetiva nos méritos de Cristo que
garante a salvação. Em consequência, pouca margem aí resta para se
conceberem dons de Deus que permaneçam extrínsecos ao indivíduo e a este
comuniquem os méritos do Salvador.
Em outros termos: não têm cabimento
canais transmissores da graça, como sejam ritos e práticas a serem administrados
por uma sociedade visível (a Igreja) e por uma hierarquia de ministros
oficialmente instituída.
Para o protestante, entre o homem
justificado pela fé e Deus, não há Sacerdote senão o Senhor Jesus invisível que
está nos céus (a prolongação da
Encarnação através da Igreja e dos sacramentos é depreciada); também não
há outro Mestre senão o Espírito Santo, que fala nas Escrituras e no íntimo de
cada alma, sem se servir de algum magistério viável e
objetivo.
Note-se, em particular, a repercussão
destas idéias nos conceitos de sacramentos e
Igreja.
O número
dos sacramentos foi notavelmente diminuído pelos doutores do
Protestantismo. Dentre os sete tradicionais, Calvino chegou a admitir dois
apenas: o Batismo e a Ceia. Quanto à função dos sacramentos, os reformadores nos
diriam que estes não são portadores da graça, mas apenas sinais que, lembrando
as promessas da benevolência divina, excitam a fé (ou confiança) nessas
promessas; estimulada por tais sinais, é a fé que produz a santificação do
crente. Os sacramentos portanto não exercem, como se diz em linguagem teológica,
causalidade nem física nem moral no processo de santificação; a sua influência
fica limitada ao setor psicológico (recordam a palavra de
Deus…).
No Calvinismo, torna-se mesmo impossível
que a graça esteja associada a algum sinal objetivo, pois ela só é dada aos
predestinados; a quem não pertença ao número destes, não adianta recorrer a
algum rito sensível. Lutero, um pouco menos inovador neste ponto, afirmava que o
Batismo confere a santidade, mas só o faz mediante a fé: «Não o sacramento, mas
a fé no sacramento é que justifica. — Non sacramentum, sed fides in sacramento
iustificat», escrevia o reformador ao Cardeal Caetano.
O Zwinglianismo empalidecia ainda mais o
papel dos sacramentos, reduzindo-os a meros testemunhos da fé capazes de unir os
homens entre si: pelos sacramentos, ensinava Zwingli, o crente atesta e comprova
à Igreja a sua fé, sem que da Igreja receba sequer o selo ou a comprovação da
fé.
A prevalência do indivíduo sobre a
coletividade se exprime com não menor clareza no conceito protestante
de Igreja. Esta,
conforme os reformadores, não é um corpo visível, mas sociedade
invisível; só uma coisa impede que alguém a ela pertença: o pecado. Quem
não se deixa contaminar por este, torna-se membro da Igreja, independentemente
dos quadros externos nos quais os crentes professam a sua fé. Em geral, dizem os
protestantes que a Igreja visível se corrompeu e extinguiu no séc. IV, sob o
Imperador Constantino, dada a colaboração do Estado e da Igreja, pois então se
introduziram nos mais íntimos redutos do Cristianismo doutrinas e costumes
pagãos. Subsiste, porém, a Igreja invisível, a qual continua a vida da
comunidade primitiva de Jerusalém. Ora seria essa Igreja invisível que vai
tomando corpo nas denominações protestantes a partir do séc.
XVI…
Se agora se pergunta como é governada a
Igreja invisível, toca-se uma questão árdua para o Protestantismo: este,
de um lado, rejeita o Papado e, de outro lado, afirma que todos os fiéis são
sacerdotes. Em consequência, não restam
critérios muito seguros para se constituir o governo da igreja… Donde a
multiplicidade de soluções: há denominações protestantes dirigidas por seus
«bispos» (tais são o episcopalismo anglicano, o metodismo…), bispos porém que
são mais mentores dos crentes do que sacerdotes ou ministros dos meios de
santificação;
Há as também dirigidas por presbíteros
(o presbiterianismo, por exemplo), e há-as dirigidas por meros delegados da
coletividade ou da congregação (congregacionalismo, que reproduz o sistema
democrático no setor religioso).
Vários grupos
protestantes não concebem mesmo dificuldade em admitir a autoridade mais ou
menos absoluta dos governos civis no que diz respeito à vida temporal da Igreja
(o que resulta em secularização da face visível do Cristianismo).
Expostas
sumariamente as três características da ideologia protestante, incumbe-nos agora
analisar o seu significado.
2. Uma estimação da
doutrina
a) A justificarão pela fé sem as
obras
1. Não há dúvida, a Escritura ensina que
a remissão dos pecados é gratuitamente outorgada aos homens pelos méritos de
Jesus Cristo (cf. Rom 5,8s); o homem não pode merecer o perdão, mas tem que o
aceitar contritamente, crendo no amor de Deus e entregando-se humilde a esse
amor. Contudo a Escritura ensina
outrossim que o perdão outorgado por Deus não é mera fórmula jurídica em virtude
da qual não nos seria mais levado em conta o pecado, pecado que, apesar de tudo,
ficaria inamovível a contaminar a alma. Não; justificação, segundo as
Escrituras, é regeneração (cf. Jo
3,3.5;Tit
3,5), elevação à dignidade de filhos de Deus não nominais apenas, mas reais
(cf. 1Jo
3,1), de modo a nos tornarmos consortes da natureza divina (cf. 2
Pdr 1,4), capazes de produzir atos que imitem a santidade do Pai Celeste
(cf. Mt
5,48).
Se, por conseguinte, Deus, ao nos
perdoar as faltas, nos concede uma nova natureza, está claro, conforme as
Escrituras mesmas, que as obras boas que estejam ao alcance desta nova natureza,
devem pertencer ao programa de santificação do cristão; elas se tornam condição
indispensável para que alguém consiga a vida eterna. Deus não pode deixar de exigir tais obras
depois de nos haver concedido o princípio capaz de as
produzir.
É óbvio que essas obras boas não constituem o
pagamento dado pelo homem em troca da graça de Deus, nem são algo que a criatura
efetue independentemente dos méritos de Cristo Salvador, mas são os frutos
necessários da ação de Deus (ou da graça) no homem regenerado, são
concretizações dos méritos do Salvador; na verdade, é Cristo quem vive no
cristão e neste exerce seu influxo vital, como a cabeça nos seus membros e como
o tronco da videira nos seus ramos (cf. Gál
2,20; Jo
15,1s).
São Paulo, na epístola dos Romanos,
tanto inculca a justificação pela fé sem as obras, porque tem em vista a
primeira conversão ou a conversão do pecador a Deus (claro está que esta não
pode ser o resultado de obras meritórias prévias). São Tiago, porém, que visa propriamente o
desabrochar da vida cristã após a conversão, inculca fortemente a necessidade
das boas obras (por isto a epistola de Tiago muito desagradava a Lutero, que
quis negar a sua autenticidade).
Quanto à concupiscência que permanece no
cristão por toda a vida, ela não constitui pecado enquanto o indivíduo não lhe
dá consentimento; por muito intensa que seja, a graça do Redentor é certamente
capaz de triunfar sobre ela. O fato de que a Escritura a chama «pecado»
(cf. Rom
7,20), explica-se por estar a concupiscência intimamente ligada ao pecado
como consequência deste.
De resto, na vida cotidiana os
protestantes valorizam altamente as boas obras; falam então linguagem muito
semelhante à dos católicos.
b) A Bíblia e o livre
exame
Já em «P. R.» 7/1958, qu. 2 e 3 foi
publicada longa explanação sobre a Tradição oral como fonte de fé e necessário
critério de interpretação da Bíblia Sagrada. O valor da Tradição se explica pelo
fato de que a Revelação oral antecedeu a redação das Escrituras e nem foi, por
inteiro, consignada nos livros sagrados (os hagiógrafos nunca tiveram a intenção
de confeccionar um manual completo dos ensinamentos revelados); donde se vê quão
alheio é ao espírito mesmo da Bíblia interpretá-la independentemente da corrente
de doutrinas dentro da qual a Escritura se originou, se conservou e sempre se
transmitiu.
Ao que foi dito ainda se pode
acrescentar a menção de algumas consequências do princípio do livre exame (é
pelos frutos que se conhece a árvore!).
Os próprios reformadores e seus discípulos,
desejando exaltar a autoridade das Escrituras, tornaram-se deturpadores da
Palavra de Deus. Foi, sim, em
nome do Antigo Testamento que Lutero permitiu a bigamia a Filipe de Hessen. É em
nome das Escrituras que os fundadores de seitas vão ensinando teses fantasistas
e contraditórias sobre a data do fim do mundo (tenham-se em vista os
Adventistas, os Testemunhas de Jeová, os Amigos do homem, de que trata «P.
R.» 14/1959, qu. 10). Em
nome do livre exame da Bíblia os críticos protestantes têm rejeitado inteiras
seções ou até livros escriturísticos; chegam a negar a Divindade de Cristo (o
primeiro autor que negou a plena veracidade dos Evangelhos, foi o protestante H.
S. Reimarus +1768).
De resto, verifica-se que as comunidades de
crentes tendo abandonado a venerável Tradição transmitida desde os inícios do
Cristianismo, ainda, e apesar de tudo, seguem uma tradição, … tradição
evidentemente humana, a que deu início tal ou tal fundador de seita. Criou-se em
cada denominação de «reformados» uma tradição particular ou uma via própria de
interpretação da Bíblia.
É a rejeição de todo magistério munido da
autoridade do próprio Deus que gera instabilidade nas comunidades protestantes,
ocasionando a criação de novas e novas seitas.
A razão destas múltiplas reformas não
será o fato de que nenhuma delas é realmente guiada pelo Espírito Santo, mas
todas são obra meramente humana? Aliás o próprio Lutero já verificava em seus
tempos: «Há tantos credos quantas cabeças há».
Alexandre Vinet, já citado, afirmava por
sua vez no século passado:
«Para mim, o Protestantismo é apenas um
ponto de partida; a religião fica muito além dele… A reforma será uma exigência
permanente dentro da Igreja; ainda hoje a reforma está por se
fazer».
A experiência de 500 anos mostrou que se
volta contra os próprios irmãos separados o principio com que estes quiseram
outrora impugnar os católicos: «Mais vale obedecer a Deus do que aos homens» (At
5,29).
c) A negação de intermediários entre Deus e o
crente
Esta posição acarreta, como dizíamos, a
negação de várias instituições que se tornaram clássicas no Cristianismo: os
sacramentos concebidos como canais da graça, a intercessão dos santos, o
sacerdócio oficial e hierárquico, a visibilidade da Igreja,
etc.
Alguns destes temas já foram diretamente
abordados em «P.R.»: assim o significado dos santos na piedade cristã, em «P.
R.» 13/1959, qu. 5; a
autoridade da canonização dos santos, em «P.R.»13/1959, qu. 5; a
necessidade do culto externo, em «P.R.» 15/1959, qu. 3; a instituição de um
chefe visível e de um magistério infalível dentro da Igreja, em «P.R.» 13/1959,
qu. 2 e 14/1959, qu.
3.
Seguem-se três observações aptas a mais
evidenciar o erro radical contido no princípio
protestante:
i) a rejeição dos sacramentos e do
sacerdócio hierárquico contradiz à lei geral que Deus sempre quis observar nas
suas relações com o homem: assim como na plenitude dos tempos o Senhor atingiu a
criatura mediante o mistério da Encarnação, assim antes e depois desta Ele veio
e vem sob sinais sensíveis; principalmente no Novo Testamento a dispensação das
graças conserva a estrutura da Encarnação: os sacramentos e sacramentais são
matéria consagrada que prolonga e desdobra a estrutura do Verbo Encarnado. Como
o corpo de Jesus recebeu outrora a vida divina e a comunicou aos homens seus
contemporâneos, assim os elementos corpóreos (água, pão, vinho, óleo, palavras e
gestos do homem…) vêm a ser, nos sacramentos, os canais que contêm e transmitem
a graça de Deus; não os poderíamos reduzir à categoria de meros estimulantes da
memória, vazios de conteúdo sobrenatural, sem quebrar a harmonia do plano da
salvação.
ii) Nos desígnios de Deus, a santificação do
homem sempre foi concebida comunitàriamente, em oposição a qualquer
individualismo. O Criador houve por bem, no inicio da história, incluir
todos os homens no primeiro Adão; quis outrossim restaurar todos conjuntamente
em Cristo; consequentemente santifica-nos hoje por meio de uma coletividade, que
é a Igreja, caracterizada por sinais objetivos e por um ministério visível, fora
do qual ninguém pode pretender encontrar o Cristo. — Exaltando o indivíduo a ponto de relegar para
plano secundário a comunidade, o Protestantismo vem a ser autêntico produto da
mentalidade subjetivista e antropocêntrica do
Renascimento.
iii) A Reforma pretende corresponder à
Igreja primitiva, anterior à corrupção que «paganizou» o Evangelho… Esta
pretensão é tão vã que os mestres protestantes se têm visto obrigados a fazer
recuar constantemente o período da «grande corrupção»: ao passo que os primeiros
reformadores a colocavam no séc. IV, outros foram retrocedendo até os tempos de
S. Cipriano (+258), S. Ireneu (+ cerca de 202), Clemente Romano (+102?) ou até a
geração apostólica.
O famoso crítico Harnack (+1930) chegava a
dizer que já os Apóstolos perverteram o Evangelho de Cristo — o que é
evidentemente absurdo, pois não conhecemos o Evangelho de Cristo senão através
da pregação e dos escritos dos Apóstolos; Harnack, porém, era obrigado a
proferir tal contrassenso, porque reconhecia claramente que a Igreja Católica
atual corresponde fielmente à Igreja primitiva ou, como dizia ele, que
«Cristianismo, Catolicismo e Romanismo constituem uma identidade
histórica perfeita» (Theologische Literaturzeitung, 16 jan.
1909).
Dom Estêvão
Bettencourt (OSB)
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