Entrevista com especialista em bioética, Pe. Helio Lucian
Por Thácio
Siqueira
Para ajudar os católicos e pessoas de boa
vontade do Brasil na reflexão sobre as implicações
desse anteprojeto, ZENIT entrevistou o especialista em bioética, Pe.
Hélio (para ler anterior entrevista com Pe. Hélio, sobre o aborto no Brasil clique aqui), membro
da comissão de bioética da CNBB.
***
Qual é a sua opinião sobre o Anteprojeto
do Código Penal entregue ao Senado Federal recentemente? Houve participação de
católicos preparados em todo o período de estudo e de debate sobre o
anteprojeto? O governo se interessou realmente em fazer que a sociedade
debatesse todos os pontos? Houve uma aceitação das propostas enviadas pela
liderança da Igreja católica, dos cristãos no geral, e de todos os que são
contrários ao aborto, como os espíritas e outros
grupos?
PE.HELIO – Há que se falar, antes
de qualquer coisa, da necessidade premente de um novo Código Penal no Brasil. O
atual está defasado, tanto pela sua “idade” – já passa dos setenta anos – como
pelo fato de que, desde a sua promulgação durante o “Estado Novo”, foram
promulgadas ou outorgadas pelo menos outras três Constituições no Brasil (alguns
consideram que foram quatro). Neste período, o Código atual foi sofrendo
diversas emendas, perdendo sua unidade e, em alguns pontos, mantendo
regulamentações que já não condizem às práticas atuais.
Também é necessário dizer que o
texto do Anteprojeto para o novo Código Penal, apresentado pela comissão de
juristas, é um texto claro, unitário e, em grande parte, em conformidade com a
Constituição Cidadã de 1988.
Ainda que no seu
conjunto seja um texto positivo, existem alguns pontos que contradizem tanto a
nossa Carta Magna como a opinião da imensa maioria dos
brasileiros. Sendo assim, minha preocupação em relação a este
Anteprojeto é, em primeiro lugar, uma preocupação em sentido jurídico – um Código Penal não pode legislar afrontando
a Constituição, criando ou eximindo de crime aquilo que a Carta Magna
defende.
Em segundo lugar, preocupa-me que alguns
valores próprios de uma sociedade tentem ser desrespeitados de modo quase
despótico, ou seja, sem ampla consulta à sociedade. É verdade que havia
um canal de sugestões no Senado no qual foram apresentadas aproximadamente 3.000
propostas, mas pergunto-me: quantas pessoas sabiam que o código penal estava
sendo reelaborado e que são 3.000 sugestões para uma população de quase
200.000.000 de habitantes?
O que reivindico – até este ponto
– não tem nenhuma conotação religiosa – peço apenas o respeito à Constituição e
aos valores próprios de um povo.
Em terceiro lugar – mas não menos
importante – preocupa-me que em um País de imensa maioria cristã, alguns valores
defendidos pelo cristianismo possam ser simplesmente contrariados. Não se trata
aqui de reivindicar a presença de católicos ou de outros cristãos na comissão de
juristas, mas sim de defender que os
valores cristãos – próprios da nossa sociedade – fossem respeitados. Certamente
a laicidade do Estado não pode ser confundida com um laicismo. A laicidade
separa o Estado da religião enquanto o laicismo nega todos os valores de uma
sociedade.
Finalmente, é bom lembrar que as
falhas do Anteprojeto não se referem apenas às questões ligadas à vida – como o
aborto e a eutanásia – mas também a outras questões importantes como, por
exemplo, o uso de drogas e a aceitação de um terrorismo
bom.
Ainda há algo a ser feito ou podemos
dizer que a proposta atual é a proposta que vai
permanecer?
PE.HELIO – Certamente há ainda
muito a ser feito. O Anteprojeto do Código Penal, como diz o próprio nome, não é ainda nem mesmo o projeto que será
submetido a votação. Agora é o momento de juristas competentes enviarem
emendas ao texto. Este é o momento
também da sociedade exercer sua função dentro da democracia – explicando
aos amigos o que está em jogo, usando a
mídia, as redes sociais, os e-mails, entre outros meios, para que não aceitemos,
passivamente, que mudem a nossa sociedade naquilo que não estamos de
acordo.
Um modo de nos fazer ouvir também
seria enviar e-mails aos Senadores e
Deputados, manifestando a nossa opinião através de argumentos racionais –
se um ou dois enviam, não surtirá efeito, mas se uma grande porcentagem da
população começa a escrever, com certeza nos
ouvirão.
O direito não é filho do céu. É um
produto cultural e histórico da evolução humana”, frase de Tobias Barreto, que
se encontra no cabeçalho da apresentação do Anteprojeto assinado pelo Relator
Geral. Essa frase, não mostra a raiz do problema do direito na nossa época
contemporânea, que elimina a existência de um direito natural? E que autoriza,
de certa forma, as sociedades a inventarem as suas normas de conduta, de acordo
com os interesses do momento?
PE.HELIO – De fato, infelizmente,
uma parte dos juristas brasileiros interpreta a justiça de um modo puramente
positivo. Segundo estes, o que define o
certo e o errado é apenas aquilo que está escrito na lei, mas esta não
corresponderia a nenhuma natureza humana, ou seja, não expressaria, em forma de
lei, o modo como o homem é de fato. É lógico que a expressão da natureza
humana pode dar-se de distintos modos ao longo da história – e isso também deve
ser contemplado pelo ordenamento jurídico – mas não será a cultura quem configurará o
modo de ser do homem. Consequentemente, as leis devem expressar este modo
de ser – o matrimônio, a defesa da vida, a busca do bem comum, são elementos que transcendem a cultura,
pois pertencem ao homem em si
mesmo.
Mas antes de falar desta crise do
direito natural é necessário falar da
crise da “verdade”. Parece que, em alguns ambientes, a “verdade” deixou
de existir – expressões típicas como “você tem a sua verdade e eu tenho a
minha”, demonstram tal crise. É certo
que podemos ver a realidade desde distintas perspectivas, mas um dos princípios
mais básicos da racionalidade humana é o princípio da não contradição – uma
coisa não pode “ser” e “não ser” ao mesmo tempo. Um exemplo mais simples:
se chegarmos a um consenso absoluto – 100% dos votos – de que uma vaca é um
cavalo, não converteremos a vaca em cavalo. As coisas existem na realidade e
podemos alcançar o conhecimento delas ou não, mas jamais podemos alcançar duas
verdades contraditórias sobre a mesma realidade: a vaca não pode ser vaca e
cavalo ao mesmo tempo. Isso nos leva àquilo que o Papa chamou de “ditadura do
relativismo” – não se pode impor nada a
não ser a absoluta necessidade de ser relativista. Todos os que disserem
conhecer uma “verdade” são considerados totalitaristas ou
fundamentalistas.
Parte da nossa cultura jurídica
sofre também deste mal: segundo esta cultura, seria necessário fazer um ordenamento
jurídico que não possua “verdades”, mas apenas normas. Seria a norma que
converteria a realidade em “verdade”. A “marcha da maconha”, ainda
induzindo às drogas e incentivando o tráfico, é “liberdade de expressão” –
segundo o Anteprojeto do Código Penal até mesmo o consumo pessoal de qualquer
droga é lícito – enquanto defender a vida de um feto é um desrespeito à
liberdade individual.
Desta crise da “verdade” nasce a crise do
direito natural. Se não existe “verdade” não pode existir um verdadeiro modo de
ser do homem. Sendo assim, todas
as liberdades devem ser respeitadas, ainda que destruam a sociedade. A
“liberdade” tomou o lugar da “verdade” – e não uma liberdade que busca o
bem, mas uma simples liberdade de escolha. Esquecemos que o que deve guiar a
sociedade é a busca do bem comum e não a busca dos bens individuais – e assim
deixamos de ser uma sociedade fraterna e nos convertemos, como diria Hobbes, em
lobos para os outros lobos.
No Anteprojeto, no art. 128, inciso IV
fala-se da descriminalização do aborto quando a mulher, até a décima semana,
quiser abortar, seguindo o parecer de um psicólogo. É lícito, moralmente
falando, que uma mulher decida pela vida do seu filho? A lei tem o poder de
definir isso? Não será injusto deixar para a mãe a decisão, principalmente na
hora da fraqueza?
PE.HELIO – É necessário,
primeiro, distinguir o texto escrito da intenção dada ao artigo – deixemos de
lado se a confusão textual foi colocada de modo proposital ou não. O texto
mencionado diz que o aborto, até a décima segunda semana de gestação
(aproximadamente três meses), não poderia ser punido “quando o médico ou
psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar
com a maternidade”. Segundo o texto, o aborto não seria mais punido, pois se
alguém decide abortar, é lógico que se sente – psicologicamente – incapaz de
arcar com a maternidade. A Espanha, em
1983, aprovou o aborto com um texto bastante similar a este. As clínicas de
aborto tinham psicólogos contratados somente para assinar os prontuários, sem
nem mesmo conversar com as mães.
Por outro lado, o Anteprojeto
apresenta na justificação do mesmo artigo e inciso – tal justificação não faz
parte do texto oficial – que esta despenalização abordada no texto refere-se
apenas a “estados psicológicos mórbidos, como a adicção por entorpecentes”. Parece-me que a comissão de juristas é
suficientemente competente para redatar – se assim o quisesse – o texto do
inciso de forma clara, contemplando somente esta intenção explicitada na
justificação. Além disso, mesmo que o texto fosse claro para contemplar somente
estes casos citados, não se poderia,
nem deveria tomar tal decisão sem uma ampla consulta à sociedade, sendo esse um
tema tão sensível aos brasileiros.
Além do aborto, o senhor referia outros
problemas também incluídos no Anteprojeto. Quais seriam estes
problema?
PE.HELIO – De fato, além da
liberação, na prática, do aborto, o Anteprojeto apresenta outros problemas. Não
pretendo ser exaustivo, mas para citar alguns, podemos falar dos problemas
relativos à eutanásia, à liberação do consumo de drogas e à despenalização de
algumas atividades terroristas.
O art. 122 do Anteprojeto
apresenta a prática da eutanásia – definida pelo Anteprojeto como “matar, por
piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu
pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença
grave” – como um crime diferente ao do homicídio, reduzindo a pena do mesmo. É
verdade que as circunstâncias dramáticas de algumas situações deveriam reduzir a
pena de alguém que comete este tipo de homicídio, porém, matar a outra pessoa,
ainda que por compaixão, não deixa de ser homicídio. Para deixar claro o valor
da vida e a gravidade do crime, o Anteprojeto poderia ter inserido a eutanásia
dentro dos crimes de homicídio, incluindo-a apenas nos atenuantes da pena.
Porém, o mais grave não é isso, mas sim que o Parágrafo Primeiro do mesmo artigo
deixa ao juiz a possibilidade de não aplicar nenhuma pena para os casos de
eutanásia, reduzindo dessa forma, o valor da vida, um dos bens primários
previstos na Constituição.
Outro problema do Anteprojeto
encontra-se no art. 212, Parágrafo Segundo, que exclui de crime a aquisição,
armazenamento, transporte e cultivo de drogas para consumo próprio. Segundo o
Anteprojeto, “presume-se a destinação da droga para uso pessoal quando a
quantidade apreendida for suficiente para o consumo médio individual por cinco
dias”. Não há dúvidas que o tráfico de drogas será favorecido com tal medida.
Com o intuito de permitir, de um modo velado, o consumo de maconha – um dos
verbos contemplados é o de “semear” e “colher”, claramente referidos a esta
droga – o Anteprojeto parece esquecer que o tráfico obedece às regras de
mercado: aumentando o consumo, aumentará também a oferta. Certamente os
distribuidores de drogas jamais levarão consigo uma quantidade maior do que a
“suficiente para o consumo médio individual por cinco dias”, e, deste modo, não
incorrerão em crime.
Por fim, o Anteprojeto, tratando
dos crimes de terrorismo, exclui de crime tais atividades quando movidas por
“propósitos sociais ou com fins reivindicatórios” (art. 239, Parágrafo Sétimo).
Certamente o limite dos meios utilizados para ser configurado ou não em crime
será definido pelo juiz, mas, com esta lei, por exemplo, os jovens que tomaram a
reitoria da USP no fim do ano passado, não teriam incorrido em crime algum. Como
dissemos anteriormente, a exaltação da liberdade individual por cima do bem
comum da população degrada a sociedade e mina a força da autoridade
constituída.
Repito o que afirmei no começo
desta entrevista – são muitos os pontos positivos do Anteprojeto, mas agora se
faz necessário ressaltar as suas deficiências para que, enquanto ainda houver
tempo, possamos solucioná-las de modo
democrático.
Será que a
proposta contida no Anteprojeto contempla a vontade de toda a população
brasileira?
A resposta a esta pergunta
corresponde, em parte, ao final do que foi dito na pergunta anterior: A maior
parte do Anteprojeto contempla a vontade de toda a população brasileira, mas
existem pontos complicados, que devem ser revistos e adaptados aos valores
próprios da nossa sociedade.
Não podemos permitir que
novamente – como vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil – a opinião de pessoas
que se creem “iluminadas” e com a “missão de iluminar” o ordenamento jurídico
brasileiro, corrompam nossos valores e as opiniões da imensa maioria do povo
brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário