Ainda
que percorramos todas as Escrituras, não encontraremos, nem mesmo entre
os Salmos, uma oração mais bela e perfeita do que o Pai-Nosso. Na
Oração do Senhor está contida toda a ciência da vida espiritual.
Durante seu último período de ensino em Nápoles, entre os anos de 1272 e
1273, Santo Tomás de Aquino dividiu-se entre a cátedra e o púlpito. É a
essa época que pertence uma série de homilias quaresmais pregadas pelo
Angélico em dialeto napolitano e posteriormente transcritas em latim por
algum confrade seu. Entre as que sobreviveram ao tempo, encontra-se uma
densa, mas sucinta exposição sobre o Pai-Nosso (Collationes in Orationem Dominicam),
cujo prólogo apresentamos abaixo em nova tradução ao português.
Trata-se de um "escrito" que, com a liberdade típica de um sermão
proferido ante um público de leigos e religiosos, preserva os traços
característicos de um gênio teológico como o de Santo Tomás. Análise minuciosa, clareza expositiva e, sobretudo, o respaldo constante das Escrituras
são algumas das notas que dão a essa obra uma fisionomia genuinamente
tomista; só no pequeno trecho introdutório com que hoje damos início à
sua publicação contam-se mais de vinte referências bíblicas — citadas pelo Aquinate, provavelmente, todas de memória.
Depois de explicar a excelência da Oração do Senhor e as palavras
invocatórias "Pai nosso que estais nos céus", Tomás expõe cada um dos
sete pedidos que a compõem, concluindo com uma brevíssima síntese de
todo o Pai-Nosso, semelhante em certos pontos à que se lê em
S. Th. II-II, q. 83, a. 9. Resumo de todo o Evangelho e centro a que converge a riqueza dos Salmos, a Oração dominical ocupa o principal lugar entre as demais orações; por ela não só aprendemos o que podemos desejar (cf. De decem præceptis,
pr.), mas ainda o modo com que o devemos pedir, e nisto consiste o
fundamento e ponto de arranque de toda a vida espiritual. Esmiuçando a
prece que, por ter em grau sumo as qualidades que uma boa oração deve
possuir, é com justiça as mais perfeita de todas, estas Collationes são de grande proveito para a nossa meditação diária. E se bem que não tenham sido vistas e revistas pelo autor, constituem,
em todo o caso, uma joia da literatura cristã medieval que ainda merece
ser lida, apreciada e, acima de tudo, meditada nos dias de hoje, em que
rezar nunca foi tão necessário. Foram esses os motivos que levaram a equipe Christo Nihil Præponere a dá-las a conhecer a quantos estiverem interessados não só em aprender com o Aquinate, mas também a orar com ele e com a ajuda dele.
O texto-base de que nos servimos para realizar essa tradução é o
estabelecido na conhecida edição de Turim (cf. S. Thomæ Aquinatis, "In
Orationem Dominicam, videlicet 'Pater noster' expositio",
in: R. M. Spiazzi (org.), Opuscula Theologica, vol. 2. 2.ª ed., Taurini-Romæ: Marietti, 1954, pp. 219-235). No que respeita aos critérios adotados, convém
observar que, embora procure manter-se fiel ao fraseado original, a
versão portuguesa aqui disponibilizada não tem a pretensão de ser
"acadêmica", mas uma pequena tentativa de divulgar a obra de Santo Tomás
de Aquino sem trair-lhe o pensamento. Esta tradução, mais do que
decalcar ad litteram, procura dizer em português aquilo e só
aquilo que o original diz sinteticamente em latim. Por isso, as
inelegâncias de estilo e a repetição frequente de certas fórmulas
correspondem, na medida do possível, ao sabor e à sobriedade do
original, carente de sutilezas escolásticas, palavras técnicas e voos
oratórios [1]. As palavras entre divisas (< >) são explicitações
ou inserções de nossa parte que visam ora esclarecer o texto, ora
torná-lo mais fluido. A tradução das citações bíblicas foi extraída, na
maioria dos casos, das versões "Ave-Maria" (195.ª ed., São Paulo:
Ave-Maria, 2011) e do Pe. Matos Soares (6.ª ed., Porto: Tip. Sociedade
de Papelaria, 1956). Além destas, foram utilizadas também, de quando em
quando, as traduções da CNBB e da Bíblia de Jerusalém.
Exposição sobre a Oração do Senhor [2]
Santo Tomás de Aquino
PRÓLOGO [3]
I. A excelência do Pai-Nosso
1․ As cinco qualidades da oração․ — A Oração do Senhor
ocupa, entre as demais orações, o principal lugar, já que possui as
cinco qualidades de que oração se deve revestir. Com
efeito, a oração deve ser confiante, reta, ordenada, devota e humilde.
a) Deve ser confiante, para que nos "aproximemos confiadamente do trono da graça" (Hb 4, 16), como está escrito na Epístola aos Hebreus, e também firme na fé, como diz São Tiago: "Peça com fé, sem nada hesitar" (Tg
1, 6). A Oração do Senhor é com razão a mais confiável, porque (i) foi
instituída pelo nosso advogado, o mais sábio dos pedintes, "no qual
estão escondidos todos os tesouros de sabedoria" (Cl 2, 3) e de quem diz São João: "Temos um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo" (1Jo
2, 1). Por isso, diz Cipriano: "Uma vez que temos a Cristo como
advogado junto ao Pai por nossos pecados, ao pedirmos perdão de nossos
delitos apresentemo-nos com as palavras do nosso defensor" [4]. Ela
parece ser, além disso, ainda mais confiável (ii) pelo fato de nos ter
ensinado a rezar aquele que com o Pai presta ouvidos à nossa oração, de
acordo com o Salmo: "Quando me invocar, eu o atenderei" (Sl 90, 15). Por isso, diz Cipriano: "Rogar ao Senhor com suas próprias palavras é dirigir-lhe uma oração amiga, familiar e piedosa" [5]. Daí que nunca se saia desta oração sem fruto. De fato, como diz Agostinho, por ela são perdoadas as faltas veniais [6].
b) A nossa oração deve também ser reta, de maneira
que o orante peça a Deus o que lhe convém, pois, segundo Damasceno, "a
oração é um pedido a Deus dos bens adequados" [7]. Com efeito, a oração
deixa muitas vezes de ser atendida porque se pedem coisas inapropriadas:
"Pedis e não recebeis, porque pedis mal" (Tg 4, 3) [8]. De
fato, é dificílimo saber o que se deve pedir, já que tampouco é fácil
saber o que se deve desejar. Igualmente, é permitido aspirar ao que na
oração é lícito pedir. Por isso, o Apóstolo reconhece: "Não sabemos o
que devemos pedir, nem orar como convém" (Rm 8, 26). Ora, é a
Cristo, nosso Mestre, que toca ensinar o que temos de pedir, e por isso
lhe rogaram os discípulos: "Senhor, ensina-nos a orar" (Lc 11, 1). Por conseguinte, o que Ele nos ensina a pedir na oração é o que mais retamente podemos desejar: "Quaisquer que sejam as nossas palavras", diz Agostinho , "nada diremos que já não esteja contido nessa oração, contanto que rezemos de modo justo e adequado" [9].
c) Em terceiro lugar, a oração tem de ser ordenada
como o desejo do qual é expressão. Pois bem, a ordem devida é que em
nossos desejos e orações prefiramos os bens do espírito aos da carne e
as coisas celestes às terrenas, conforme o que se lê no Evangelho
segundo Mateus: "Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo" (Mt
6, 33). É isso o que o Senhor nos ensinou a observar nessa oração, em
que primeiro se pedem os bens celestiais e só depois os terrenos.
d) Deve também ser devota, pois a devoção em
abundância torna aceitável a Deus o sacrifício da oração, de acordo com o
Salmo: "Invocando o vosso nome, levantarei as minhas mãos. Como de
banha e de gordura será saciada a minha alma" (Sl 62, 5s). Ora,
acontece muitas vezes de a devoção enfraquecer-se por causa do excesso
de palavras. Por esse motivo, o Senhor ensinou a fugir à excessiva
prolixidade da oração, ao dizer: "Nas vossas orações, não multipliqueis
as palavras" (Mt 6, 7). E Agostinho escreve a Proba: "Que a
oração não tenha excesso de palavras, mas de súplicas, se continua
fervorosa a atenção" [10]. Por isso, o Senhor instituiu essa breve
oração. Mas a devoção, por sua vez, nasce da caridade, que é amor a Deus
e ao próximo, ambos os quais estão presentes nessa oração. Com efeito,
para manifestarmos nosso amor a Deus, chamamos-lhe Pai; e para
manifestarmos nosso amor ao próximo, oramos por todos em comum dizendo:
"Pai nosso" e "Perdoai-nos as nossas ofensas". A isso nos move, pois, o
amor aos semelhantes.
e) A oração precisa, enfim, ser humilde, conforme o que diz o Salmo: "Ele se voltou para a súplica dos indigentes" (Sl 101, 18), a parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-15) e o que se lê no Livro de Judite: "Sempre vos foram aceitas as preces dos mansos e humildes" (Jt 9, 16). Ora, na Oração do Senhor se guarda a verdadeira humildade, que consiste em nada presumir das próprias forças, mas tudo esperar da virtude divina.
2․ Os três efeitos da oração․ — Deve-se notar, além disso, que a oração produz três bons efeitos.
a) Em primeiro lugar, ela é um remédio eficaz e útil
contra os males. A oração livra-nos, pois, (i) dos pecados cometidos,
como canta o salmista: "E vós perdoastes a pena do meu pecado. Assim
também todo fiel recorrerá a vós" (Sl 31, 5s). Desse modo orou o ladrão pregado à cruz, obtendo o perdão: "Hoje estarás comigo no paraíso" (Lc 23, 42) e o publicano, voltando para casa justificado (cf. Lc 18, 9-14). Livra-nos também (ii) do medo dos pecados futuros, das tribulações e das tristezas: "Alguém entre vós está triste? Reze!" (Tg 5, 13). Livra-nos, enfim, (iii) das perseguições e dos inimigos: "Em resposta ao meu afeto, acusaram-me. Eu, porém, orava" (Sl 108, 4).
b) A oração, em segundo lugar, é um meio eficaz e útil de obter tudo o que se deseja: "Tudo o que pedirdes na oração, crede que o tendes recebido" (Mc
11, 24). Mas se porventura não somos ouvidos, isto se deve a que ou não
pedimos com insistência, pois "é necessário orar sempre sem jamais
deixar de fazê-lo" (Lc 18, 1), ou não pedimos o que mais convém à nossa salvação: "O bom Senhor", diz Agostinho, "negando-nos muitas vezes o que queremos, dá-nos o que deveríamos querer" [11]. Assim sucedeu a Paulo, que três vezes rogou a Deus que lhe apartasse um espinho na carne e não foi atendido (cf. 2Cor 12, 7s).
c) Em terceiro lugar, é útil, porque nos torna amigos íntimos de Deus: "Que minha oração suba até vós como a fumaça do incenso" (Sl 140, 2).
Referências
- Cf. J.-P. Torrell, Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Trad. port. de Luiz P. Rouanet. 3.ª ed., São Paulo: Loyola, 2011, p. 86.
- Ao presente opúsculo se atribuem outros títulos em diferentes edições: Expositio devotissima Orationis Dominicæ, Collationes de Pater noster, Expositio de Pater noster. P. Mandonnet (1858-1936), importante historiador da filosofia medieval, data-o do tempo da Quaresma de 1273 (cf. Bibliographie Thomiste, Le Saulchoir, Kain, 1921, p. XVII, n. 72. A sua autenticidade não é posta em dúvida por nenhum estudioso (cf. P. Mandonnet, Des écrits authentiques de Saint Thomas d'Aquin. 2.ª ed., Freibourg, 1910, p. 107, n. 72; A. Michelitsch, Thomas Schriften, vol. 1, Graz, 1913, p. 186, n. 78; M. Grabmann, Die echten Shriften des hl. Thomas von Aquin, 3.ª ed., Münster i. W. 1949, p. 318). Pertence aos Reportata, isto é, ao conjunto de obras que, não tendo sido escritas de próprio punho por Santo Tomás, foram passadas ao papel seja por ditado, seja pela transcrição (reportatio) de alguma homilia; a desta nos foi legada, provavelmente, por Reginaldo de Piperno (c. 1230 – c. 1290), amigo e secretário do Aquinate. Trata-se de escritos nem sempre revistos e corrigidos pelo autor, mas recebidos, em todo o caso, de sua própria boca.
- Cf. Tomás de Aquino, S. Th. II-II, q. 83, a. 9; III Sent.,d. 34, q. 1, a. 6; Compend. Theol. II, cc. 4ss; In Matth., c. 6.
- Cipriano de Cartago, De or. dom. 3 (PL 4, 521B).
- Id., ibid.
- Cf. Agostinho de Hipona, Ench. 78․21 (PL 40, 270). É doutrina comum que os pecados veniais podem ser perdoados, mesmo sem contrição perfeita, fora do sacramento da Penitência, desde que o fiel se encontre em estado de graça (cf. E. Genicot; I. Salsmans, Institutiones Theologiæ Moralis.
17.ª ed., Bruxelas: Universelle, 1951, p. 153, n. 238). É o que se
deduz das seguintes palavras do Concílio de Trento: "Os
veniais, pelos quais não somos excluídos da graça de Deus e nos quais caímos com frequência, posto que com retidão e utilidade, e sem qualquer presunção, se digam na confissão [...], todavia podem ser calados sem culpa e expiados por muitos outros meios" (14.ª sessão, de 25 nov. 1551, c. 5; DH 1680). - João Damasceno, De fide orth. 3․24 (PG 94, 1090). Por "bens adequados" ou "convenientes" (decentia) se entende o que é necessário à salvação. Isto não significa, porém, que o cristão não possa pedir bens temporais a Deus; pode pedi-los, mas não principalmente (principaliter), como se fossem o fim da oração, mas de modo secundário, subordinado-os ao bem da alma. De fato, os bens deste mundo, como o alimento, o vestuário etc., devem ser pedidos na condição de instrumentos (adminicula), isto é, na medida em que nos auxiliam a chegar à bem-aventurança eterna, a conservar a vida corporal, a dispor-nos com mais facilidade ao exercício das virtudes e a servir melhor a Deus (cf. S. Th. II-II, q. 83, a. 6, co.).
- Muitos autores ensinam, baseados no claro testemunho das Escrituras (cf., por exemplo, Mt 7, 7s; 21, 22; Jo 14, 13s; 15, 7․16; 16, 23s; 1Jo 5, 14s), que a oração possui uma eficácia infalível, desde que cumpra quatro condições imprescindíveis: (1) pedir para si mesmo (2) coisas necessárias à salvação, como graças atuais eficazes, (3) de modo piedoso — o que abrange a humildade, a firme confiança, a atenção e a petição em nome de Cristo (cf. Jo 14, 13s; 15, 16; 16, 23s) — e (4) com perseverança. Se observados estes pré-requisitos, a oração "obtém infalivelmente o que pede em virtude das promessas de Deus" (A. Royo Marín, Teología de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2012, p. 425, n. 287). Cf. S. Th. II-II, q. 83, a. 7, ad 2; a. 15, ad 2; a. 16, co.
- Agostinho de Hipona, Ep. 130, 12․22 (PL 33, 502); para uma explicação detalhada de todo o Pai-Nosso, v. também, do mesmo autor, Serm. Dom. 2․4-11․15-39 (PL 34, 1275-1287). Santo Tomás repete esta mesma tese em S. Th. II-II, q. 83, a. 9, co.: "Visto que a oração, com efeito, é como um intérprete do nosso desejo diante de Deus, só podemos pedir retamente o que retamente nos é permitido querer. Pois bem, na Oração dominical não apenas se pedem todas as coisas que retamente podemos desejar, mas ainda na ordem em que elas devem ser desejadas. De modo que esta oração não só nos ensina a pedir, mas também retifica todos os nossos afetos".
- Id., Ep. 130, 10․20 (PL 33, 502). De acordo com Santo Tomás, a atenção é absolutamente necessária à oração, sobretudo à vocal, de modo que distrair-se deliberadamente (ex proposito) ao rezar não só é pecado como também impede o fruto da oração, o que não se dá com a distração involuntária (cf. S. Th. II-II, q. 83, a. 13, co. e ad 3). O Angélico distingue ainda, na resposta a esta mesma questão, três tipos de atenção que se podem dar à oração vocal, em graus crescentes de perfeição: a) atenção ad verba, ordenada à correta enunciação das palavras; b) atenção ad sensum, com a qual nos atemos ao sentido delas; e c) atenção ad finem, "que atende ao fim da oração, ou seja, a Deus e à coisa que se pede" (A. Royo Marín, op. cit., p. 654, n. 494). No que respeita à duração, Santo Tomás afirma que a oração deve, por um lado, ser a) contínua, na medida em que procede da virtude da caridade — cujo influxo atual ou habitual perpassa todos os atos de quem está na graça de Deus e os transforma, assim, em "oração" incessante (cf. 1Ts 5, 17) — e, por outro, b) transitória e proporcionada ao seu fim, ou seja: convém que a oração dure o necessário para excitar o fervor interior (cf. S. Th. II-II, q. 83, a. 14, co.; A. Royo Marín, op. cit., p. 655, n. 495).
- Id., Ep. 31, 1 (PL 33, 121).
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