A liturgia do 19º domingo do tempo
comum tem como tema fundamental a revelação de Deus. Fala-nos de um Deus
apostado em percorrer, de braço dado com os homens, os caminhos da história.
A primeira leitura convida os crentes a
regressarem às origens da sua fé e do seu compromisso, a fazerem uma
peregrinação ao encontro do Deus da comunhão e da Aliança; e garante que o
crente não encontra esse Deus nas manifestações espetaculares, mas na
humildade, na simplicidade, na interioridade.
O Evangelho apresenta-nos uma reflexão
sobre a caminhada histórica dos discípulos, enviados à “outra margem” a propor
aos homens o banquete do Reino. Nessa “viagem”, a comunidade do Reino não está
sozinha, à mercê das forças da morte: em Jesus, o Deus do amor e da comunhão
vem ao encontro dos discípulos, estende-lhes a mão, dá-lhes a força para vencer
a adversidade, a desilusão, a hostilidade do mundo. Os discípulos são
convidados a reconhecê-l’O, a acolhê-l’O e a aceitá-l’O como “o Senhor”.
A segunda leitura sugere que esse Deus,
apostado em vir ao encontro dos homens e em revelar-lhes o seu rosto de amor e
de bondade, tem uma proposta de salvação que oferece a todos. Convida-nos a
estarmos atentos às manifestações desse Deus e a não perdermos as oportunidades
de salvação que Ele nos oferece.
1ª Leitura – 1 Reis
19,9a.11-13ª - AMBIENTE
A nossa leitura situa-nos no Reino do
Norte (Israel), durante o reinado de Acab (873-853 a.C.). No país
multiplicam-se os lugares sagrados onde se adoram deuses estrangeiros. De
acordo com 1Re. 16,31-33, o próprio rei – influenciado por Jezabel, a sua
esposa fenícia – erige altares a Baal e Asserá e presta culto a esses deuses.
Por detrás deste quadro está, provavelmente, a tentativa de Acab em abrir
Israel a outras nações, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial.
Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos
religiosos de Israel.
Contra estes desvios à fé tradicional,
levanta-se o profeta Elias. Ele aparece como o representante desses israelitas
fiéis, que recusam a substituição de Jahwéh por deuses estranhos ao universo
religioso de Israel. Num episódio dramático cuja memória é conservada no
primeiro livro dos Reis, o próprio Elias desafia os profetas de Baal para um
duelo religioso, que termina com o massacre de quatrocentos profetas de Baal,
no monte Carmelo (cf. 1Re. 18). Esse episódio é, certamente, uma representação
teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que
abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.
O texto que nos é proposto como
primeira leitura aparece, precisamente, na seqüência do massacre do Carmelo.
Jezabel, informada da morte dos profetas de Baal, promete matar Elias; e o
profeta foge para o sul, a fim de salvar a vida. Atravessa o Reino do Sul
(Judá), passa por Beer-Sheva e dirige-se para o deserto, em direção ao monte
Horeb/Sinai (cf. 1Re 19,1-8). É aí que o nosso texto nos situa.
MENSAGEM
A peregrinação de Elias ao Sinai/Horeb
é uma espécie de regresso aos inícios. Com Elias, é todo o Israel – esse Israel
infiel à aliança, que se deixou seduzir pelos cultos cananeus – que regressa às
suas origens, ao lugar do seu compromisso inicial com Deus. Israel precisa de
se encontrar de novo com Jahwéh e redescobrir a sua vocação de Povo da Aliança.
A cena descrita pelo texto que nos é
proposto contém uma clara alusão à revelação de Deus a Moisés (cf. Ex.
19,16-17; 33,18-23; 34,5-8): assim como Deus Se revelou a Moisés no
Sinai/Horeb, assim também Se revela a Elias no mesmo lugar. Dessas revelações
resulta, para um e para outro, um compromisso com a Aliança… Depois de receber
a revelação de Jahwéh, Moisés torna-se o instrumento através do qual Deus
propõe ao Povo uma Aliança; e Elias, depois de receber a revelação de Jahwéh,
torna-se o instrumento através do qual Deus relança uma Aliança ameaçada de
ruptura, devido à infidelidade do Povo.
Há, no entanto, uma diferença significativa…
A Moisés, Deus revelou-Se no meio de fenômenos naturais aterrorizadores
(“trovões e relâmpagos”, uma “pesada nuvem”, o “fumo” que envolvia toda a
montanha, o “fogo”, o terremoto que fazia a montanha tremer – Ex. 19,16-17). A
Elias, Deus não Se revelou nos elementos típicos das manifestações teofânicas
(o vento forte que “fendia as montanhas e quebrava os rochedos”, o terremoto, o
fogo); mas revelou-Se na “brisa ligeira”. Diante da manifestação de Deus, Elias
cumpriu o ritual adequado: “cobriu o rosto com o manto”, já que o homem não
pode contemplar face a face o mistério de Deus.
A intenção dos autores deuteronomistas
não parece ser polemizar contra a catequese tradicional das manifestações de
Deus… Parece ser, antes, distanciar Jahwéh de Baal, considerado na mitologia
cananéia o deus do trovão e da tempestade, que fazia a terra tremer com a sua
voz poderosa. A intenção fundamental do autor seria mostrar que Jahwéh não Se
manifesta em fenômenos assombrosos e espetaculares, mas sim na intimidade, na
tranqüilidade, no silêncio que ecoa no coração de quem procura a comunhão com
Deus.
O encontro com esse Deus que Se
manifesta no silêncio, na intimidade, na simplicidade, na humildade, na
interioridade do coração do homem leva à ação (num desenvolvimento que o texto
que nos é hoje proposto pela liturgia não apresenta, Jahwéh confia a Elias uma
missão profética – cf. 1Re. 19,15-18): o encontro com Deus conduz sempre o
homem a um empenho concreto e a um compromisso com o mundo.
Com Elias, Israel é convidado a voltar
aos inícios, a redescobrir as suas raízes de Povo de Deus, a reencontrar o
rosto de Jahwéh (que é muito diferente dos rostos desses deuses que, todos os
dias, seduzem o Povo e o afastam dos seus compromissos), a renovar a sua
Aliança com Ele, a escutar a voz de Deus que ecoa no coração de cada membro da
comunidade, a aceitar dar testemunho de Deus e dos seus projetos no meio do
mundo.
ATUALIZAÇÃO
• Quem é Deus? Como é Deus? É possível
provar, sem margem para dúvidas, a existência de Deus? Estas e outras perguntas
já as fizemos, certamente, a nós próprios ou a alguém. Todos nós somos pessoas
a quem Deus inquieta: há um “qualquer coisa” no coração do homem que o projeta
para o transcendente, que o leva a interrogar-se sobre Deus e a tentar descobrir
o seu rosto… No entanto, Deus não é evidente. Se confiarmos apenas nos nossos
sentidos, Deus não existe: não conseguimos vê-l’O com os nossos olhos, sentir o
seu cheiro ou tocá-l’O com as nossas mãos. Mais ainda: nenhum instrumento
científico, nenhum microscópio eletrônico, nenhum radar espacial detectou
jamais qualquer sinal sensível de Deus. Talvez por isso o soviético Yuri
Gagarin, o primeiro homem do espaço, mal pôs os pés na terra apressou-se a
afirmar que não tinha encontrado na estratosfera qualquer marca de Deus… O
texto que nos é proposto convida todos aqueles que estão interessados em Deus,
a descobri-l’O no silêncio, na simplicidade, na intimidade… É preciso calar o
ruído excessivo, moderar a atividade desenfreada, encontrar tempo e disponibilidade
para consultar o coração, para interrogar a Palavra de Deus, para perceber a
sua presença e as suas indicações nos sinais (quase sempre discretos) que Ele
deixa na nossa história e na vida do mundo… Tenho consciência de que preciso
encontrar tempo para “buscar Deus”? De acordo com a minha experiência de
procura, onde é que eu O encontro mais facilmente: na agitação e nos gestos
espetaculares, ou no silêncio, na humildade e na simplicidade?
• Hoje como ontem, há outros deuses,
outras propostas de felicidade, que nos procuram seduzir e atrair… Há deuses
que gritam alto (em todos os canais de televisão?) a sua capacidade de nos
oferecer uma felicidade imediata; há deuses que, como um terremoto, fazem
tremer as nossas convicções e lançam por terra os valores que consideramos mais
sagrados; há deuses que, com a força da tempestade, nos arrastam para atitudes
de egoísmo, de prepotência, de injustiça, de comodismo, de ódio… O nosso texto
convida-nos a uma peregrinação ao encontro das nossas raízes, dos nossos compromissos
batismais… Temos, permanentemente, de partir ao encontro do Deus que fez
conosco uma Aliança e que nos chama todos os dias à comunhão com Ele… Aceito
percorrer este caminho de conversão? Encontro tempo para redescobrir o Deus da
Aliança com quem me comprometi no dia do meu batismo? Quais são os falsos
deuses que, às vezes, me afastam da comunhão com o verdadeiro Deus?
• Na história de Elias (e na história
de qualquer profeta), a descoberta de Deus leva ao compromisso, à ação, ao
testemunho… Depois de encontrar o Deus da Aliança, aceito comprometer-me com
Ele? Estou disposto a cumprir a missão que Ele me confia no mundo? Estou
disponível para O testemunhar no meio dos meus irmãos?
2ª Leitura – Rm.
9,1-5 - AMBIENTE
Depois de apresentar, nos primeiros
oito capítulos da carta aos Romanos, uma catequese sobre a salvação (apesar do
pecado que submerge todos os homens e desfia o mundo Deus, na sua bondade,
oferece gratuitamente a todos os homens, através de Jesus Cristo, a salvação),
Paulo vai referir-se, agora, a um problema particular, mas que o preocupa a ele
e a todos os cristãos: que acontecerá a Israel que, apesar de ser o Povo eleito
de Deus e o Povo da Promessa, recusou essa salvação que Cristo veio oferecer?
Israel ficará, devido a essa recusa, definitivamente à margem da salvação? Na
verdade, Deus jurou ao seu Povo, em vários momentos da história, libertá-lo e
salvá-lo; ora, se Israel ficar excluído da salvação, podemos dizer que Deus
falhou? Podemos continuar a confiar na sua Palavra? É a estas questões que,
genericamente, Paulo procura responder nos capítulos 9-11 da carta aos Romanos.
O texto que nos é proposto como segunda
leitura deste domingo é a introdução a esta questão.
MENSAGEM
Pelo texto perpassa a grande tristeza e
dor que a questão levanta no coração de Paulo. O problema da salvação de Israel
incomoda-o tanto que ele até aceitaria tornar-se “anátema” (no Antigo
Testamento, o que era “anátema” devia ser totalmente destruído; no Novo
Testamento, “anátema” equivale a “maldito” e implicava, quer a exclusão da
comunidade do Povo de Deus, quer a maldição divina) e ser separado de Cristo,
se isso servisse para que o Povo judeu aceitasse a salvação que Deus lhe
oferece. Trata-se de expressões que são para levar a sério? Digamos, apenas,
que são afirmações excessivas, mas que dão bem a idéia do sofrimento de Paulo e
da sua preocupação com a sorte do seu Povo.
Na verdade, Israel foi adotado por
Deus, é o Povo da Aliança, da Lei, do culto, das Promessas, dos antepassados
que escutaram Deus e viveram em comunhão com Ele… Israel é, até, o Povo do qual
nasceu Cristo; ora, esse Cristo que “está acima de todas as coisas” deixará o
seu Povo “segundo a carne” entregue à morte?
A leitura que nos é hoje proposta não
vai mais além; mas, no conjunto da sua reflexão sobre esta questão (cf. Rm.
9,1-11,36), Paulo mostrará que Deus é eternamente fiel às suas promessas e que
nunca falha… Ele tem os seus planos; e a desobediência atual de Israel deverá
fazer parte dos planos de Deus. Paulo acabará, no final da secção, por
manifestar a sua convicção de que a misericórdia de Deus se derramará também
sobre Israel.
ATUALIZAÇÃO
• Uma das coisas que impressiona, neste
texto, é a forma como Paulo sente a infelicidade do seu Povo. A obstinação de
Israel em recusar a salvação fá-lo sentir “uma grande tristeza e uma dor
contínua” no coração. Todos nós conhecemos irmãos – mesmo batizadas – que
recusam a salvação que Deus oferece ou que, pelo menos, vivem numa absoluta indiferença
face à vida plena que Deus lhes quer dar. Como nos sentimos diante deles?
Ficamos indiferentes e achamos que não é nada conosco? Deixamo-nos contaminar
por essa indiferença e escolhemos, como eles, caminhos de egoísmo e de
auto-suficiência? Ou sentimos que é nossa responsabilidade continuar a
testemunhar diante deles os valores em que acreditamos e que conduzem à vida
plena e verdadeira?
• Este texto propõe-nos também uma
reflexão sobre as oportunidades perdidas… Israel, apesar de todas as manifestações
da bondade e do amor de Deus que conheceu ao longo da sua caminhada pela
história, acabou por se instalar numa auto-suficiência que não lhe permitiu
acompanhar o ritmo de Deus, nem descobrir os novos desafios que o projeto da
salvação de Deus faz, em cada fase, aos homens. O exemplo de Israel faz-nos
pensar no nosso compromisso com Deus… Em primeiro lugar, mostra-nos a
importância de não nos instalarmos num esquema de vivência medíocre da fé e
sugere que o “sim” a Deus do dia do nosso batismo precisa de ser renovado em
cada dia da nossa vida… Em segundo lugar, sugere que o cristão não pode
instalar-se nas suas certezas e auto-suficiências, mas tem de estar atento aos
desafios, sempre renovados, de Deus… Em terceiro lugar, sugere que o ter o nome
inscrito no livro de registros da nossa paróquia não é um certificado de
garantia de salvação (a salvação passa sempre pela adesão sempre renovada aos
dons de Deus).
Evangelho – Mt.
14,22-33 - AMBIENTE
— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.
Depois da multiplicação dos pães, 22Jesus
mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente,
para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões. 23Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho.
24A barca, porém, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário.
25Pelas três horas da manhã, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar.
26Quando os discípulos o avistaram, andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: “É um fantasma”. E gritaram de medo.
27Jesus, porém, logo lhes disse: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!”
28Então Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água”.
29E Jesus respondeu: “Vem!” Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus.
30Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!”
31Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?”
32Assim que subiram no barco, o vento se acalmou.
33Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”
No passado domingo, Jesus foi-nos
apresentado como o novo Moisés, que conduz “ao deserto” um povo de coração
escravo. Aí, liberta-o da opressão do egoísmo, ao mostrar-lhe que os bens são
um dom de Deus, destinados a ser partilhados com todos os homens. Nasce, assim,
a comunidade do Reino – isto é, essa comunidade fraterna de amor e de partilha,
que se senta à mesa de Deus e que d’Ele recebe vida em abundância (cf. Mt
14,13-21).
O texto do Evangelho que hoje nos é
proposto vem na seqüência desse episódio. Mateus começa por observar que,
depois desses sucessos, Jesus “obrigou os discípulos a subir para o barco e a
esperá-l’O na outra margem, enquanto Ele despedia a multidão” (Mt. 14,22). Esta
nota pode indicar que Jesus quis arrefecer o entusiasmo excessivo dos
discípulos (o autor do quarto Evangelho, a propósito do mesmo episódio, refere
que Jesus Se retirou sozinho para o monte, pois sabia que “viriam arrebatá-l’O
para O fazerem rei” – Jo 6,15).
O episódio situa-nos na área do lago de
Tiberíades ou da Genesaré, esse lago de água doce com 21 quilômetros de
comprimento e 12 de largura situado na Galileia e que é o grande reservatório
de água doce da Palestina.
Para os judeus, o mar – e o lago de
Tiberíades ou de Genesaré é considerado, para todos os efeitos, um “mar” – era
o lugar onde habitavam os monstros, os demônios e todas as forças que se
opunham à vida e à felicidade do homem. Na perspectiva da teologia judaica, no
mar o homem estava à mercê das forças demoníacas; e só o poder de Deus podia
salvá-lo…
Recordemos, ainda, que o nosso texto
está incluído numa secção (cf. Mt. 13,1-17,27) do Evangelho segundo Mateus, a
que poderíamos chamar “instrução sobre o Reino”. Aí, Mateus põe Jesus a
dirigir-Se sobretudo aos discípulos e a instruí-los sobre os valores e os
mistérios do Reino. É neste contexto de catequese sobre o Reino que devemos
situar o episódio que hoje nos é proposto.
Lembremos, finalmente, que o Evangelho
segundo Mateus – escrito durante a década de 80 – se destina a uma comunidade
cristã que já esqueceu o seu entusiasmo inicial por Jesus e pelo seu Evangelho e
que vive uma fé cômoda, instalada, pouco exigente. Para os crentes,
avizinham-se grandes contrariedades e perseguições… A comunidade só poderá
subsistir se confiar em Jesus, na sua presença, na sua proteção.
MENSAGEM
Depois de despedir a multidão e de obrigar
os discípulos a embarcar para a outra margem, Jesus “subiu a um monte para
orar, a sós”. Mateus só se refere à oração de Jesus por duas vezes: aqui e no
episódio do Getsêmani (cf. Mt. 26,36): em ambos os casos, a oração precede um
momento de prova para os discípulos.
Enquanto Jesus está em diálogo com o
Pai, os discípulos estão sozinhos, em viagem pelo lago. Essa viagem, no
entanto, não é fácil nem serena… É de noite; o barco é açoitado pelas ondas e
navega dificilmente, com vento contrário. Os discípulos estão inquietos e
preocupados, pois Jesus não está com eles…
O quadro refere-se, certamente, à
situação da comunidade a que Mateus destina o seu Evangelho (e que não será
muito diferente da situação de qualquer comunidade cristã, em qualquer tempo e
lugar). A “noite” representa as trevas, a escuridão, a confusão, a insegurança
em que tantas vezes “navegam” através da história os discípulos de Jesus, sem
saberem exatamente que caminhos percorrer nem para onde ir… As “ondas” que
açoitam o barco representam a hostilidade do mundo, que bate continuamente
contra o barco em que viajam os discípulos… Os “ventos contrários” representam
a oposição, a resistência do mundo ao projeto de Jesus – esse projeto que os
discípulos testemunham… Quantas vezes, na sua viagem pela história, os
discípulos de Jesus se sentem perdidos, sozinhos, abandonados, desanimados,
desiludidos, incapazes de enfrentar as tempestades que as forças da morte e da
opressão (o “mar”) lançam contra eles…
É aí, precisamente, que Jesus manifesta
a sua presença. Ele vai ao encontro dos discípulos “caminhando sobre o mar” (v.
26). No contexto da catequese judaica, só Deus “caminha sobre o mar” (Job.
9,8b; 38,16; Sl. 77,20); só Ele faz “tremer as águas e agitarem-se os abismos”
(Sl. 77,17); só Ele acalma as ondas e as tempestades (cf. Sl. 107,25-30). Jesus
é, portanto, o Deus que vela pelo seu Povo e que não deixa que as forças da
morte (o “mar”) o destruam. A expressão “sou Eu” reproduz a fórmula de
identificação com que Deus se apresenta aos homens no Antigo Testamento (cf.
Ex. 3,14; Is. 43,3.10-11); e a exortação “tende confiança, não temais”
transmite aos discípulos a certeza de que nada têm a temer porque Jesus, o Deus
que vence as forças da morte e da opressão acompanha a par e passo a sua caminhada
histórica e dá-lhes a força para vencer a adversidade, a solidão e a
hostilidade do mundo.
Depois, Mateus narra uma cena
exclusiva, que não é apresentada por nenhum outro evangelista: a do diálogo
entre Pedro e Jesus (vs. 28-33). Tudo começa com o pedido de Pedro: “se és Tu,
Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. Pedro sai do barco e vai, de
fato, ao encontro de Jesus; mas, assustando-se com a violência do vento, começa
a afundar-se e pede a Jesus que o salve. Assim acontece, embora Jesus censure a
sua pouca fé e as suas dúvidas.
Pedro é, aqui, o porta-voz e o
representante dessa comunidade dos discípulos que vai no barco (a Igreja). O
episódio reflete a fragilidade da fé dos discípulos, sempre que têm de
enfrentar as forças da opressão, do egoísmo, da injustiça. Jesus comunicou aos
seus o poder de vencerem todos os poderes deste mundo que se opõem à vida, à
libertação, à realização, à felicidade dos homens. No entanto, enquanto
enfrentam as ondas do mundo hostil e os ventos soprados pelas forças da morte,
os discípulos debatem-se entre a confiança em Jesus e o medo. Mateus refere-se,
desta forma, à experiência de muitos discípulos (da sua comunidade e das
comunidades cristãs de todos os tempos e lugares) que seguem a Jesus de forma
decidida, mas que se deixam abalar quando chegam as perseguições, os
sofrimentos, as dificuldades… Então, começam a afundar-se e a ser submergidos
pelo “mar” da morte, da frustração, do desânimo, da desilusão… No entanto,
Jesus lá está para lhes estender a mão e para os sustentar.
Finalmente, a desconfiança dos
discípulos transforma-se em fé firme: “Tu és verdadeiramente o Filho de Deus”
(v. 33). É para aqui que converge todo o relato. Esta confissão reflete a fé
dos verdadeiros discípulos, que vêem em Jesus o Deus que vence o “mar”, o
Senhor da vida e da história que acompanha a caminhada dos seus, que lhes dá a
força para vencer as forças da opressão e da morte, que lhes estende a mão
quando eles estão desanimados e com medo e que não os deixa afundar.
Quando é que os discípulos fizeram a
descoberta de que Jesus era o Deus vencedor do pecado e da morte? Naturalmente,
após a Páscoa, quando perceberam plenamente o mistério de Jesus (perceberam que
Ele não era “um fantasma”), sentiram a sua presença no meio da comunidade reunida,
experimentaram a sua ajuda nos momentos difíceis da caminhada, sentiram que Ele
lhes transmitia a força de enfrentar as adversidades e a hostilidade do mundo,
sentiram que Ele estava lá, estendendo-lhes a mão, nos momentos de fraqueza, de
dificuldade, de falta de fé. É esta mesma experiência que Mateus nos convida
também a fazer.
ATUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo é, antes de
mais, uma catequese sobre a caminhada histórica da comunidade de Jesus, enviada
à “outra margem”, a convidar todos os homens para o banquete do Reino e a
oferecer-lhes o alimento com que Deus mata a fome de vida e de felicidade dos
seus filhos. Estamos dispostos a embarcar na aventura de propor a todos os
homens o banquete do Reino? Temos consciência de que nos foi confiada a missão
de saciar a fome do mundo? Aqueles que são deixados à margem dessa mesa onde se
jogam os interesses e os destinos do mundo, que têm fome e sede de vida, de
amor, de esperança, encontram em nós uma proposta credível e coerente que
aponta no sentido de uma realidade de plenitude, de realização, de vida plena?
• A caminhada histórica dos discípulos
e o seu testemunho do banquete do Reino não é um caminho fácil, feito no meio
de aclamações das multidões e dos aplausos unânimes dos homens. A comunidade (o
“barco”) dos discípulos tem de abrir caminho através de um mar de dificuldades,
continuamente batido pela hostilidade dos adversários do Reino e pela recusa do
mundo em acolher os projetos de Jesus. Todos os dias o mundo nos mostra – com
um sorriso irônico – que os valores em que acreditamos e que procuramos
testemunhar estão ultrapassados. Todos os dias o mundo insiste em provar-nos –
às vezes com agressividade, outras vezes com comiseração – que só seremos
competitivos e vencedores quando usarmos as armas da arrogância, do poder, do
orgulho, da prepotência, da ganância… Como nos colocamos face a isto? É
possível desempenharmos o nosso papel no mundo, com rigor e competência, sem
perdermos as nossas referências cristãs e sem trairmos o Reino?
• Para que seja possível viver de forma
coerente e corajosa na dinâmica do Reino, os discípulos têm de estar
conscientes da presença de Jesus, o Senhor da vida e da história, que as forças
do mal nunca conseguirão vencer nem domesticar. Ele diz aos discípulos, tantas
vezes desanimados e assustados face às dificuldades e às perseguições: “tende
confiança. Sou Eu. Não temais”. Os discípulos sabem, assim, que não há qualquer
razão para se deixarem afundar no desespero e na desilusão. Mesmo quando a sua
fé vacila, eles sabem que a mão de Jesus está lá, estendida, para que eles não
sejam submergidos pelas forças do egoísmo, da injustiça, da morte. Nada nem
ninguém poderá roubar a vida àqueles que lutam para instaurar o Reino. Jesus,
vivo e ressuscitado, não deixa nunca que sejamos vencidos.
• A oração de Jesus (que em Mateus
antecede os momentos de prova) convida-nos a manter um diálogo íntimo com o
Pai. É nesse diálogo que os discípulos colherão o discernimento para perceberem
os caminhos de Deus, a força para seguir Jesus, a coragem para enfrentar a
hostilidade do mundo.
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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