Da
Santíssima Trindade à fé na Igreja, da divindade de Cristo ao juízo
final, o espiritismo renuncia a praticamente todo o credo cristão. Em
que consiste, pois, seu anunciado “cristianismo”?
Por Frei Boaventura Kloppenburg — No Brasil, o
movimento criado por Allan Kardec (AK) é mantido e divulgado pela
Federação Espírita Brasileira, fundada em 1884, que a propõe
sistematicamente não apenas como "a religião", mas também como
"espiritismo cristão" [...].
Embora o próprio AK jamais tenha usado esta expressão, tomada de J. B.
Roustaing (1865), ofereceu-lhe, no entanto, um bom fundamento para isso
quando proclamou que o espiritismo é a realização das promessas de Jesus
Cristo acerca do Consolador e a apresentou como "a Terceira Revelação"
[...]. Em
O Evangelho segundo o espiritismo (cito agora a 90.ª ed., p. 59) escreve AK: "Assim
como o Cristo disse: 'Não vim destruir a lei, porém cumpri-la', também o
espiritismo diz: não venho destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução.
Nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo".
Semelhantes afirmações são comuns entre os espíritas e pode ser que
sejam sinceras, mas mostram um desconhecimento profundo da doutrina do
Evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e João e segundo o ensinamento
apostólico contido em suas cartas. O
Reformador, órgão oficial do nosso kardecismo, de março de
1981, num artigo sobre a missão do Consolador (que seria o Espírito
Santo segundo o Evangelho de São João), conclui: "É missão, pois, do
espiritismo devolver ao cristianismo a sua pureza original, libertando-o
dos dogmas e das idéias humanas nele introduzidas" (p. 85).
Veremos agora como se fez esta fundamental operação libertadora:
1) A revelação divina. — Para a generalidade dos
cristãos de todos os tempos, sejam eles católicos, ortodoxos ou
protestantes, os livros da Sagrada Escritura são divinamente inspirados.
É um princípio inconcusso ("dogma") dos cristãos. No credo espírita de
AK não entra este ponto fundamental. Jamais o afirma em nenhuma de suas
obras. Mas com freqüência se compraz em mostrar o que ele considera
absurdos e contradições da Bíblia. No órgão oficial da Federação
Espírita Brasileira,
Reformador, janeiro de 1953, p. 23, encontramos a posição bem
definida dos nossos espíritas perante a Bíblia: "Do Velho Testamento já
nos é recomendado somente o Decálogo e do Novo Testamento apenas a moral
de Jesus; já consideramos de valor secundário, ou revogado e sem valor algum, mais de 90% do texto da Bíblia.
Só vemos na Bíblia toda um livro respeitável pelo seu valor cultural,
pela força que teve na formação cultural dos povos do Ocidente". [...]
Falando de escritos apostólicos do Novo Testamento, escreve AK: "Todos
os escritos posteriores (aos Evangelhos), sem exclusão dos de S. Paulo,
são apenas, e não podem deixar de ser, simples comentários ou
apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias
que, em caso algum, podem ter a autoridade da narrativa dos que
receberam diretamente do Mestre as instruções" (
Obras póstumas, 10.ª ed., p. 110). Esta posição negativa
reaparece com freqüência na literatura espírita brasileira. Assim, por
exemplo, Carlos Imbassahy, em À Margem do Espiritismo (2.ª
ed.), esclarece que, "em matéria de escritura, os espíritas, no a que se
referem, é tão unicamente aos Evangelhos. Não os apresentam, porém,
como prova, senão como fonte de luz subsidiária, elemento de reforço"
(p. 126). Pois "nem a Bíblia prova coisa nenhuma, nem temos a Bíblia
como probante. O espiritismo não é um ramo do cristianismo como
as demais seitas cristãs. Não assenta os seus princípios nas escrituras.
Não rodopia junto à Bíblia. A nossa base é o ensino dos espíritos, daí o nome — espiritismo" (p. 219).
2) A doutrina sobre Deus. — Os conceitos de AK sobre a
existência de Deus e seus atributos coincidem de fato com a doutrina
cristã. Duas vezes, em seus escritos, AK se refere expressamente ao
panteísmo, para rejeitá-lo (
O livro dos espíritos, 22.ª ed., p. 53; Obras póstumas,
10.ª ed., p. 179). E contra os panteístas chega a afirmar positivamente
uma nítida distinção entre Deus e o Universo, acusando o panteísmo de
"confundir o Criador com a criatura"; e, por isso, declara
inequivocamente: "As obras de Deus não são o próprio Deus" (O livro dos espíritos,
p. 54). Não obstante, por vezes tem expressões com sabor panteísta.
Assim quando diz que "ignoramos" se a inteligência é uma "emanação da
Divindade" (O livro dos espíritos, p. 56); ou quando o "fluido
universal" toma qualidades panteístas; ou quando esclarece que os
espíritos "se acham mergulhados no fluido divino" (cf. A gênese).
Já Leão Denis, outro patriarca do espiritismo, então membro da equipe
de codificação da doutrina espírita, resvalou para um evidente monismo
panteísta. Segundo seu modo de falar, "Deus é a grande alma universal,
de que toda alma humana é uma centelha, uma irradiação. Cada um de nós
possui, em estado latente, forças emanadas do divino foco" (assim em
Cristianismo e Espiritismo, 5.ª ed., p. 246). Fala com
freqüência de Deus como "divino foco", "supremo foco do bem e do belo",
"o grande foco divino" etc. Também em outra obra sua, Depois da Morte,
6.ª ed., voltam expressões panteístas: "Deus é infinito e não pode ser
individualizado; isto é, separado do mundo, nem subsistir à parte" (p.
114); ou: "o Ser supremo não existe fora do mundo, porque este é a sua
parte integrante e essencial" (p. 124). Em vez do "Deus fantástico da
Bíblia", ele quer o "Deus imanente, sempre presente no seio das coisas"
(p. 213): "O universo não é mais essa criação, essa obra tirada do nada
de que falam as religiões. É um organismo imenso animado de vida eterna"
(p. 123); e em seguida explica que Deus está para o universo como a
alma para o corpo: "O eu do universo é Deus" (p. 349).
3) A Santíssima Trindade. — Todos os cristãos,
católicos, ortodoxos e protestantes, professam sua fé na Santíssima
Trindade. É o mistério central da fé e mensagem cristã, desde os
primórdios do cristianismo. Mas o credo espírita proposto por AK desconhece totalmente a Santíssima Trindade.
A posição de AK, no conjunto de suas obras, é de absoluto e sistemático
silêncio com relação a esta doutrina cristã. Seu silêncio era apenas
oportunista. Na realidade, em seu sistema de pensamento não cabia este
mistério cristão, não só porque para ele "absolutamente não há
mistérios" (
Obras póstumas, p. 201), mas porque não há lugar para uma
intensa vida divina intratrinitária, dado que, segundo AK, o Deus que
não cria incessantemente, desde toda a eternidade, seria um Deus
solitário e ocioso (cf. O livro dos espíritos, p. 56).
Mas se AK julgou mais oportuno não negar abertamente o mistério
trinitário, seus seguidores não compartilham este ponto de vista. Já
Leão Denis, em
Cristianismo e Espiritismo, p. 74, abre sua crítica dos nossos
principais dogmas com estas palavras: "Começa com a estranha concepção
do Ser divino, que se resolve no mistério da Trindade". Depois explica:
"A noção da Trindade, colhida numa lenda hindu que era a expressão de um
símbolo, veio obscurecer e desnaturar essa alta idéia de Deus [...].
Essa concepção trinitária, tão incompreensível, oferecia, entretanto,
grande vantagem às pretensões da Igreja. Permitia-lhe fazer de Jesus
Cristo um Deus" (p. 75).
No Brasil, o espiritismo em peso ou desconhece ou nega a Santíssima Trindade.
4) A doutrina sobre Jesus. — Professam os cristãos que Jesus é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. A afirmação da divindade de Jesus é fundamental para a fé cristã. Mas este Jesus não entra no credo espírita formulado por AK. Ele nos deixou entre suas
Obras Póstumas um "Estudo sobre a natureza de Cristo", de 41
páginas, todo ele tendenciosamente orientado para provar que Jesus não
era Deus. Com este objetivo nega, sucessivamente, o valor dos milagres,
das palavras de Jesus, da opinião dos Apóstolos e das profecias
messiânicas.
Mas nos dias de AK surgiu um advogado de Bordéus chamado João Batista
Roustaing, que teve seu primeiro contato com o espiritismo em 1861 e em
1865 publicou sua obra:
Espiritismo Cristão ou Revelação da Revelação, em três volumes. Sua
tese central: o corpo de Jesus não era real, de carne e osso, mas
aparente e meramente fluídico. Repetia o docetismo do primeiro século
cristão. Sua tese não foi aceita por AK. Mas no Brasil a
Federação Espírita, desde sua fundação, propaga a obra de Roustaing.
Bittencourt Sampaio, Sayão, Bezerra de Menezes, Guillon Ribeiro e outros
conhecidos dirigentes da Federação Espírita são rusteinistas professos.
Guillon Ribeiro, que foi presidente da Federação em 1920-1921 e de 1930
a 1943 e tradutor das obras de AK, compendiou a cristologia espírita no
título que deu ao livro: Jesus, nem Deus nem homem, reeditado e divulgado pela Federação Espírita.
5) A doutrina sobre a redenção. — "É pelo sangue de
Jesus Cristo que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a
riqueza de sua graça que ele derramou profusamente sobre nós", explicava
São Paulo (
Ef 1, 7). Nossa redenção pela paixão, morte e ressurreição de
Jesus é outra verdade fundamental da fé cristã. Nisso consiste
propriamente a "boa nova" ou o "evangelho". Mas nem esta verdade tão
central entra no credo espírita de AK. Segundo ele cada um deve ser seu próprio redentor através do sistema das reencarnações.
Por isso no espiritismo a soteriologia (ou doutrina sobre a redenção ou
salvação do homem) é deslocada da cristologia para a antropologia. Leão
Denis (
foto acima) o enuncia cruamente quando escreve: "Não, a
missão de Cristo não era resgatar com o seu sangue os crimes da
humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, não seria capaz de resgatar
ninguém. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo, resgatar-se da
ignorância e do mal. É o que os espíritos, aos milhares, afirmam em
todos os pontos do mundo" (
Cristianismo e Espiritismo, p. 88). E o Reformador,
órgão máximo da propaganda reencarnacionista no Brasil, ensina em seu
número de outubro de 1955 (p. 236): "A salvação não se obtém por graça
nem pelo sangue derramado por Jesus no madeiro", mas "a salvação é ponto
de esforço individual que cada um emprega, na medida de suas forças".
Daí esta doutrina de AK: "Toda falta cometida, todo mal realizado é uma
dívida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência,
sê-lo-á na seguinte ou seguintes" (
O céu e o inferno, 16.ª ed., p. 88). Ele reconhece a
necessidade e o valor do arrependimento; mas este arrependimento não
basta ao pecador para obter o perdão divino. Segundo ele, a contrição é
apenas o início da expiação e tem como conseqüência o desejo de "uma
nova encarnação para se purificar" (O livro dos espíritos, p. 446). "O arrependimento concorre para a melhoria do espírito, mas ele tem que expiar o seu passado" (ibid., p. 448); "o arrependimento lhe apressa a reabilitação, mas não o absolve" (ibid.,
p. 450); "o arrependimento suaviza os travos da expiação, abrindo pela
esperança o caminho da reabilitação; só a reparação, contudo, pode
anular o efeito, destruindo-lhe a causa. Do contrário, o perdão seria
uma graça, não uma anulação" (O céu e o inferno, p. 90); e a graça é coisa que não existe porque "seria uma injustiça" (O evangelho segundo o espiritismo, 39.ª ed., p. 76).
No livro
Roma e o Evangelho (5.ª ed.), o espírito de "Maria" dita estas
palavras: "Jesus Cristo não podia, nem quis assumir todas as
responsabilidades individuais, contraídas ou por contrair, emanadas dos
pecados dos homens, e muito menos podia, pelo sacrifício da sua vida,
remir a humanidade da pena de desterro a que fora condenada [...]. A
redenção da humanidade não se firma, pois, nos méritos e sacrifícios de
Jesus, e, sim, nas boas obras dos homens [...]. Que cegueira! Quanta
aberração! Supor e afirmar que os sofrimentos e a morte do Justo foram
ordenados do alto, em expiação dos pecados de todos, é a mais orgulhosa
das blasfêmias contra a justiça do Eterno".
6) A doutrina sobre a Igreja. — "Creio na Igreja, una,
santa, católica e apostólica." É a profissão cristã. Nem esta profissão
entra no credo espírita. Com a negação da doutrina cristã sobre a
redenção e santificação dos homens, contestam-se conseqüentemente também todos os meios instituídos por Jesus Cristo para a salvação e santificação.
- A começar pelo Batismo. Jesus mandou aos Apóstolos ir pelo mundo inteiro, ensinar a todos tudo quanto ele lhes ordenara, batizando a todos "em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28, 19-20), esclarecendo: "Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado" (Mc 16, 16). No Brasil, os espíritas, fiéis à doutrina codificada por AK, já não batizam nem fazem batizar seus filhos. Nem teria sentido. Pois é pelas reencarnações que os homens devem alcançar a perfeição.
- Na última ceia Jesus instituiu a Eucaristia e ordenou aos Apóstolos: "Fazei isto em minha memória" (Lc 22, 19). Mas os espíritas não o fazem. Nem teria sentido. Pois, segundo eles, o mistério pascal não tem valor de sacrifício pelos pecados dos homens.
- Jesus disse aos apóstolos: "Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados" (Jo 20, 23). Mas os espíritas não procuram receber o perdão divino que lhes é generosamente oferecido. Nem teria sentido. Pois somente mediante as reencarnações se alcança o perdão.
- Jesus disse a Pedro: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus e o que ligares na terra será ligado nos céus e o que desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16, 18-19). Mas os espíritas não dão nenhuma importância nem a Pedro e seus sucessores, nem à Igreja que Jesus dizia "sua", nem ao poder das chaves que o Senhor Jesus entregou ao chefe do colégio apostólico.
- Jesus declarou aos Apóstolos: "Quem vos ouve a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza, e quem me despreza, despreza aquele que me enviou" (Lc 10, 16). Para os espíritas tudo isso já está superado. Pois eles vão receber as orientações dos espíritos que baixam em seus centros.
Proclamando a nulidade dos sacramentos, quer AK que o espiritismo não tenha "nem culto, nem rito, nem templos" (
Obras póstumas, p. 235). E o Conselho Federativo Nacional dos
espíritas, em sua reunião de 5 de julho de 1952, declarou, "por
unanimidade, que o espiritismo é religião sem ritos, sem liturgia e sem
sacramentos". Proclama-se assim a total inutilidade da Igreja, que será
substituída pelo espiritismo. No livro Depois da Morte (p. 80),
profetiza Leão Denis: "Chegará a ocasião em que o catolicismo, seus
dogmas e práticas não serão mais do que vagas reminiscências quase
apagadas da memória dos homens, como o são para nós os paganismos
romanos e escandinavos".
Não seria difícil continuar a lista de negações. Assim, para dar apenas mais alguns exemplos, o espiritismo:
- nega a criação da alma humana;
- recusa a união substancial entre corpo e alma;
- afirma que não há anjos e demônios;
- repudia os privilégios de Maria Santíssima;
- não admite o pecado original;
- contesta a graça divina;
- abandona toda a doutrina do sobrenatural;
- rejeita a unicidade da vida humana terrestre;
- ignora o juízo particular depois da morte;
- não concede a existência do purgatório; ridiculariza o inferno; reprova a ressurreição da carne;
- e desdenha o juízo final.
Em uma palavra: renuncia a todo o credo cristão.
Em que consiste, pois, seu anunciado "cristianismo"? Tudo é
simplesmente reduzido à aceitação de alguns princípios morais do
Evangelho, tal como AK aprendera em sua juventude, no Instituto de Pestalozzi, em Yverdun, na Suíça. Seu manual "cristão" é unicamente
O Evangelho segundo o Espiritismo, "com a explicação das
máximas morais do Cristo em concordância com o espiritismo e suas
aplicações às diversas circunstâncias da vida", que AK publicou em 1864.
Transcrito e levemente adaptado de
Espiritismo, orientação para os católicos,
do Frei Boaventura Kloppenburg,
9.ª ed., São Paulo: Loyola, 2014, pp. 26-32.
do Frei Boaventura Kloppenburg,
9.ª ed., São Paulo: Loyola, 2014, pp. 26-32.
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