Os santos da Igreja Católica “sabiam que, se chegassem a perder a luz divina, poderiam cometer culpas horrendas”.
“Vai-te embora, eu sou um diabo, e não um santo!”
[1] — Era com palavras fortes assim que o grande São Filipe Néri,
fundador dos Oratorianos — um homem que levitava, literalmente, enquanto
rezava e cuja santidade ninguém ousaria pôr em dúvida —, reagia quando o
honravam; era assim que ele se humilhava quando o exaltavam.
Muito antes dele, foi da mesma forma que agiu São Pedro, príncipe dos
Apóstolos, primeiro Papa, o homem a quem Cristo confiou o governo de
sua Igreja e as chaves do Reino dos céus, quando Cornélio saiu-lhe ao
encontro, “caiu a seus pés e se prostrou diante dele”: “Levanta-te”, ordenou Pedro. “Eu também sou apenas um homem” (At 10, 26).
Então quer dizer que os santos não queriam que nós lhes prestássemos culto? Os protestantes estão certos, afinal de contas?
Devagar com o andor porque — literalmente, neste caso — o santo é de
barro. Para entender essas atitudes de São Filipe Néri e São Pedro, é
necessário lembrar que o tesouro da graça, nesta vida, nós todos o trazemos “em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” (2Cor 4, 7).
Os santos, enquanto estavam neste mundo, mandavam levantar os que se prostravam diante deles não porque fossem iconoclastas
— eles mesmos, sendo católicos, veneravam os santos que os precederam e
pediam-lhes a intercessão —, mas porque não queriam ser glorificados
antes do tempo; não queriam receber a glória dos homens antes de receber
a glória definitiva de Deus, no Céu. Além disso, eles tinham
consciência de que a santificação é uma obra da graça divina, não um mérito nosso.
Poderíamos dizer, simplesmente, que São Filipe Néri e São Pedro eram humildes, mas, sendo mais claro e direto, os santos não queriam culto para si próprios porque tinham uma noção da realidade.
“Qual o motivo que fazia os santos implorar incessantemente a luz
divina”, perguntava-se Santo Afonso de Ligório, “temendo converter-se
nos pecadores mais abomináveis do mundo?” E responde: “É porque sabiam que, se chegassem a perder a luz divina, poderiam cometer culpas horrendas.” [2]
Sim, os santos da Igreja Católica… afastados de Deus… “poderiam cometer culpas horrendas”.
E ninguém se espante com isso. Porque está tudo nos próprios
Evangelhos. São Pedro, que morreu professando as verdades da fé, foi o
mesmíssimo Apóstolo que, querendo seguir a Cristo de longe, querendo ser cristão “do seu jeito”, negou três vezes a Jesus: mentiu e disse que não O conhecia (cf. Mt 26, 69-75; Mc 14, 66-72; Lc 22, 54-62; Jo 18, 25-27). Ao repreender o Senhor quando Ele predisse sua Paixão, esse mesmo apóstolo que hoje nós veneramos como santo foi chamado por Cristo de diabo: “Vai para longe de mim, Satanás!” (Mt 16, 23)
Por isso, São Filipe Néri chamando a si mesmo “diabo” não é exagero retórico nem humildade empostada. É simplesmente a condição do homem, quando afastado da graça de Deus.
Santa Teresa d’Ávila revela ter visto, em sua autobiografia, “o lugar
que os demônios tinham preparado” para ela, e por isso ela dizia: “Que
Sua Majestade nunca tire a sua mão para que eu não volte a cair, pois já
vi onde iria parar” [3]. Às suas monjas ela escrevia, noutro lugar, o
seguinte:
Um homem espiritual disse-me certa vez que não se espantava com o que faz aquele que está em pecado mortal, mas com o que não faz. Que Deus, em sua misericórdia, nos livre de tão grande mal, pois só há uma coisa, enquanto vivemos, que de fato merece esse nome, já que acarreta males eternos e sem fim: o pecado. Isso, filhas, é o que deve nos atemorizar e o que havemos de pedir a Deus em nossas orações. Se Ele não guardar a cidade, trabalharemos em vão, pois somos a própria vaidade. [4]
Prestemos atenção às palavra deste santo Doutor da Igreja: “só há uma coisa, enquanto vivemos”, que merece o nome de “mal”, por acarretar “males eternos e sem fim”, e esta coisa é o pecado.
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Ensinamento semelhante é o que encontramos no livro “Apologia pro vita sua”,
do bem-aventurado John Henry Newman, católico convertido do
protestantismo, oratoriano e cardeal da Igreja Católica — uma das mais
belas linhas já escritas a esse respeito:
A Igreja Católica assegura que é preferível ver o sol e a lua caírem do céu, a terra desaparecer, os milhões de seres humanos que a povoam morrerem de fome na pior das agonias, até onde possa chegar a aflição temporal, a admitir que uma só alma, não digo, se perca, mas cometa um único pecado venial, diga voluntariamente uma pequena mentira ou roube sem escusa alguns miseráveis centavos. [5]
A pergunta que nos precisamos fazer, antes mesmo de qualquer exame de consciência, é se nós ainda cremos
nisso — se é que alguma vez já acreditamos. Temos consciência da
gravidade do pecado, ou para nós tanto faz? Acreditamos que o pecado
acarreta, de fato, “males eternos e sem fim”, ou estamos anestesiados pelo espírito do mundo? A nossa fé é a fé da Igreja ou estamos rendidos às ilusões e mentiras que os homens contam?
Cremos no que Cristo revelou e ensinou a seus Apóstolos ou, ao
contrário, nós temos um evangelho moldado à nossa própria medida, um céu
rebaixado à nossa própria mesquinharia, um “inferno vazio” em que possamos nos fiar para viver do modo como quisermos?
Para ilustrar melhor aonde queremos chegar, deixemos falar, de novo, o Cardeal Newman:
Eu sei que os homens fazem declarações solenes, gabando-se de serem cristãos e falando do cristianismo como uma religião do coração. Mas, quando pomos de lado palavras e declarações, e tentamos descobrir qual é a sua religião, acabamos por descobrir, eu receio, que a grande massa dos homens, de fato, se livra de toda religião que seja interior; que eles não dão importância alguma nem a atos de fé, esperança e caridade, nem à pureza de intenção, nem à mortificação dos próprios pensamentos; que eles desconhecem palavras como contrição, penitência e perdão; e acham e argumentam que, no final das contas, se um homem cumprir seu dever neste mundo, de acordo com sua vocação, é impossível que ele não vá para o Céu, não obstante o quão pouco ele faça além disso ou, até pior, não obstante o quanto ele faça, em outras matérias, de inegavelmente ilícito. [6]
Trocando em miúdos, o Cardeal Newman está falando… de nós!, de pessoas que se dizem cristãs, mas que acreditam no que lhes dá na telha:
- Jesus ensina que é preciso termos fé para nos salvarmos (cf. Jo 3, 18); nós achamos que basta “ser bom” (seja lá o que isso quer dizer) e ninguém se perderá.
- A Igreja nos manda “confessarmo-nos ao menos uma vez ao ano” (e qualquer pessoa com o mínimo de fé sabe que… é o mínimo!), mas nós achamos que não precisa, porque “o que importa é o coração”, “o padre é tão pecador quanto eu” e “Deus já sabe os meus pecados” (se é que alguma vez acreditamos na existência do pecado).
- O Evangelho nos fala, bem claramente, para fazermos “todo esforço possível para entrar pela porta estreita”, porque “muitos tentarão entrar e não conseguirão” (Lc 13, 24); nós, porém — eis a que ponto chega a petulância humana —, discordamos de Deus! Se alguém cumpre seus deveres mundanos nesta vida, dizemos e pensamos, “é impossível que não vá para o Céu”, não importa o quão pouco se esforce, não importa o quanto apronte (“não roubando e não matando…”, é claro, porque aí já seria demais).
Em resumo, nós deixamos de crer como católicos. Temos fé em nós mesmos, nos gurus que nós mesmos criamos ou até em algumas coisas que a Bíblia diz… mas não “em tudo o que crê e ensina a Santa Igreja Católica”.
— É difícil acreditar em tudo — alguém dirá. É difícil, sim, de fato. Mas “dez mil dificuldades não fazem uma dúvida”
[7]. A doutrina da Igreja nos foi deixada por Deus para ser crida, não
para ser conveniente ou para afagar nossas próprias misérias. A palavra
da Igreja para nós deve ser uma palavra de desafio, e não de consolação meramente humana.
Por mais difícil que seja viver de acordo com essa doutrina, por mais
doloroso que seja abandonar nossa mentalidade mundana, nossos hábitos
destrutivos, nossos “pecados de estimação”… Ou nós temos na fé na palavra de Cristo, antes de qualquer coisa, ou sequer seremos capazes de nos arrepender dos nossos pecados. Ou nós cremos que o pecado nos leva ao inferno e que só a graça de Deus pode nos salvar… ou seremos diabos, até o fim.
Curioso que tenha sido justamente este o pecado dos anjos: querer ser igual a Deus sem a graça; querer ser igual a Deus prescindindo dEle. Não seja este, também, o nosso destino. Queiramos Deus — e queiramo-lo enquanto Ele quer ser achado por nós. Não aconteça de, voltando o Filho do Homem, não encontrar fé sobre a terra (cf. Lc 18, 8); não nos aconteça de, voltando para nós o Filho do Homem, não encontrar fé sobre a terra… do nosso coração.
Referências
- Card. John Henry Newman, The Religion of the Pharisee, the Religion of Mankind. In: Sermons preached in various occasions (c. 2), London: Longmans, Green and Co., 1908, p. 17.
- Santo Afonso de Ligório, Preparação para a morte (c. XXII).
- Santa Teresa de Jesus, Livro da Vida, c. 32, n. 7.
- Santa Teresa de Jesus, Primeiras Moradas, c. 2, n. 5.
- Card. John Henry Newman, Apologia pro vita sua (c. 7). London: Oxford University Press, 1913, p. 339.
- Card. John Henry Newman, The Religion of the Pharisee, the Religion of Mankind. In: Sermons preached in various occasions (c. 2), London: Longmans, Green and Co., 1908, p. 24.
- Card. John Henry Newman, Apologia pro vita sua (c. 7). London: Oxford University Press, 1913, p. 332.
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