Sustentam os reencarnacionistas que a alma ou, como eles preferem
dizer, o espírito, chegado afinal à perfeição, viverá para sempre livre
do corpo material. Coerentes com seus princípios, eles rejeitam decididamente a doutrina da ressurreição da carne: que a alma tornará a vivificar o mesmo corpo para, assim, unida ao corpo, viver eternamente.
De fato, também estas duas doutrinas (vida definitivamente independente do corpo, ou vida definitiva no corpo ressuscitado) excluem-se mutuamente: quem sustenta uma contestará logicamente a outra.
Ora, ainda nesta questão Jesus falou claro: todos, bons e maus, bem-aventurados e condenados, hão de ressuscitar com seus próprios corpos.
“Virá a hora”, ensina Jesus, “em que todos os que jazem nos sepulcros
ouvirão a voz do Filho de Deus, e ressurgirão para a vida os que
praticaram o bem, e ressurgirão para a condenação os que praticaram o
mal” (Jo 5, 28-29). Outra vez Cristo defende a ressurreição contra as objeções ridículas dos saduceus (cf. Mt 22, 23-33).
Também os Apóstolos pregaram abertamente e muitas vezes a ressurreição. São Paulo dedica todo o longo capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios à defesa e à explicação da ressurreição:
Se não há ressurreição dos mortos — argumenta o Apóstolo —, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, vã é também a vossa fé; e nós aqui estamos como falsas testemunhas de Deus, porque contra Deus depusemos que ressuscitou a Cristo. Pois se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou (1Cor 15, 13-16).
E depois o Apóstolo passa a explicar a transformação por que há de passar o corpo ressuscitado:
O que se semeia é (um corpo) corruptível, o que ressuscita é (um corpo) incorruptível; o que se semeia é humilde, o que ressuscita é glorioso; o que se semeia é fraco, o que ressuscita é forte; o que se semeia é um corpo material, o que ressuscita é um corpo espiritual (1Cor 15, 42-44).
Convém adiantar aqui uma rápida explicação sobre uma dificuldade que
os reencarnacionistas não se cansam de repetir. Querendo ridicularizar a
fé e a esperança cristã na ressurreição, lembram que os corpos se
desfazem, se transformam e passam a constituir outros corpos. Este é o
motivo por que o próprio Allan Kardec pensa que “a ciência demonstra a
impossibilidade da ressurreição, segundo a idéia vulgar” [1].
Há, por certo, uma dificuldade na afirmação da identidade do corpo ressuscitado com o atual. Esta identidade é afirmada por Jesus, pelos Apóstolos e pela Igreja.
Mas não é necessário afirmar uma identidade material absoluta, como se
todos os átomos e moléculas que alguma vez fizeram parte de nosso corpo
tivessem de voltar a formar o corpo ressuscitado. As fontes de nossa fé
cristã não nos levam a esta conclusão. 1Cor 15, 37-38 e 42-44 insinuam o contrário.
Hoje conhecemos o fenômeno biológico do metabolismo, segundo o qual o
corpo humano, pela constante assimilação e desassimilação das
substâncias, de tempo em tempo se renova inteiramente, de tal maneira
que os átomos ou as moléculas que anos atrás integraram nosso corpo hoje
já estão totalmente substituídos por outros. E, não obstante, afirmamos
com razão que nosso corpo de hoje é idêntico ao de dez ou vinte anos atrás: é uma identidade material relativa, mas verdadeira.
Por conseguinte, para que possamos conservar uma verdadeira
identidade corporal não é preciso reter sempre os mesmos elementos
materiais. A dispersão da matéria não impossibilita a identidade
material do corpo humano. O demais, com relação ao corpo ressuscitado, o deixamos tranquilamente à onipotência divina.
Ao responder às dificuldades dos saduceus contra a ressurreição,
Jesus lhes disse acertadamente: “Estais enganados, desconhecendo as
Escrituras e o poder de Deus” (Mt 22, 29). O mesmo diria aos reencarnacionistas e a outros modernos negadores da ressurreição.
O Concílio Vaticano II confessa: “Nós ignoramos o tempo da consumação da terra e da humanidade e desconhecemos a maneira de transformação do universo” [2]. O que nos foi revelado e, na verdade, é o mais importante é que haverá ressurreição. O quando e o como são questões secundárias:
Deus nos ensina que nos prepara morada nova e nova terra. Nela habita a justiça e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos de paz que sobem nos corações dos homens. Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorrupção. Permanecerão o amor e sua obra e será libertada da servidão da vaidade toda aquela criação que Deus fez para o homem [3].
Preciso referir-me a mais uma curiosa alegação de Allan Kardec. Vimos
que, segundo ele, os judeus “designavam pelo termo ressurreição o que o
espiritismo, mais judiciosamente, chama reencarnação” [4]. Eis aí uma afirmação simplesmente arbitrária.
Não há seriedade nisso. Nem posso imaginar como pôde Kardec chegar a
semelhante asserção. Não conheço um só elemento que nos permita
estabelecer essa identidade. É evidentíssimo que as ressurreições narradas na Bíblia,
a de Elias ressuscitando o filho da viúva de Sarepta, as de Jesus
ressuscitando o jovem de Naim, a filha de Jairo ou a Lázaro, tudo isso nada tem a ver com o que hoje os espíritas entendem por reencarnação.
Nem os judeus pensavam em reencarnação quando Jesus lhes anunciava
que depois de três dias haveria de ressuscitar, visto que mandaram pôr
guardas no sepulcro. Basta ler o capítulo 15 da Primeira Carta aos
Coríntios, para saber o que os judeus entendiam quando falavam em
ressurreição. Basta ler atentamente as palavras de Jesus em Jo 5, 28-29 e que acabamos de citar.
Enfim, seria suficiente recordar que a reencarnação se faz, como ensina Kardec, em sempre novos corpos “que nada têm de comum com o antigo” [5], enquanto a ressurreição, assim como era entendida pelos judeus, consistia na revivificação deste mesmo corpo abandonado pela alma na hora da morte.
A respeito da outra alegação de Allan Kardec, de que a reencarnação
fazia parte dos dogmas dos judeus, lembro as seguintes observações de
Paulo Siwek [6]:
Os livros sagrados dos judeus mencionam várias vezes a prática da evocação dos espíritos (cf. Lv 20, 6.27; 19, 31; Dt 18, 9-12; 1Rs 28, 3; 4Rs 21, 6). Mas esta não tem relação nenhuma com a reencarnação. Só se excetua a Cabala: os livros desta, Zohar (ou livro dos esplendores), Zohar-Haddach, Tiqqunim expõem a doutrina da reencarnação, que assim faz parte integrante do esoterismo místico da Cabala. Mas é preciso notar que o Zohar só foi acrescentado à Cabala no fim do século XIII e que nela a reencarnação se apresenta como um episódio fragmentário, sem conexão íntima com o resto do sistema filosófico da Cabala; mais ainda, acha-se em contradição flagrante com os dogmas fundamentais da religião judaica, admitidos pela Cabala.
Em outra ocasião Kardec concede que Jesus não falou muito claro a
respeito da reencarnação, pois — diz ele — Cristo “não pôde desenvolver o
seu ensino de maneira completa”, porque “faltavam aos homens (daquele
tempo) conhecimentos que eles só podiam adquirir com o tempo, sem os
quais não o compreenderiam” [7] e, por esse motivo, Jesus não insistiu
muito na pluralidade das existências: “A grande e importante lei da
reencarnação foi um dos pontos capitais que Jesus não pôde desenvolver,
porque os homens do seu tempo não se achavam suficientemente preparados para idéias dessa ordem e para as suas conseqüências” [8].
Ora, se é verdade, como quer Kardec, que a doutrina das vidas
sucessivas era comumente ensinada pelos antigos e era até “ponto de uma
das crenças fundamentais dos judeus” (veja o texto acima), não se compreende absolutamente tanta prudência da parte de Cristo no ensino de uma verdade tão difundida…
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