"Deus
resgatou minha alma doente e entorpecida de um destino literalmente
pior que a morte. Sem a sombria epifania que eu experimentei naquele
bar, e aquilo a que ela me levou, só Deus sabe onde eu estaria agora."
Por Dr. John Morrissey [1]
Olhando
retrospectivamente para os meus 29 anos de médico, acho que o ano em
que passei no hospital do câncer foi o mais difícil de todos. Toda
quarta-feira e fim de semana, sem falta, eu cobria a unidade de terapia
intensiva por 24 horas, como médico residente intermediário. Durante
todo o tempo em que passei ali, não vi um único paciente sobreviver,
embora não fosse por falta de tentativa. Nenhum sequer.
Todos
tinham em comum o fato de a sua médula óssea ter sido suprimida pelas
sessões de quimioterapia, o que tinha como consequência infecções
generalizadas inevitavelmente fatais. UTI, ressuscitação completa com
tubos, ventilação, terapia intravenosa, estimulantes cardíacos: era tudo
em vão. Eles morrem porque, sem a médula óssea funcionando, perdem a
resposta imune do seu organismo. Nenhuma quantidade de antibióticos
consegue impedir que seus corpos sejam infestados por microorganismos.
Obviamente,
eu atendia apenas os mais doentes de todos. A maior parte dos pacientes
de quimioterapia não sofre complicações tão severas. Com a médula
recuperada, o seu câncer regride ou é até mesmo curado.
Eu tinha
me tornado médico para curar quando desse, dar alívio na maioria das
vezes e confortar sempre, mas aquela contínua experiência de fracasso
foi começando pouco a pouco a me deixar para baixo.
Comecei a
ficar apavorado com o trabalho no hospital do câncer, com medo de aquele
bipe tocar. Mesmo tendo me afastado da prática da fé depois da
universidade, comecei a rezar, pedindo que os meus pacientes se
recuperassem ou que, pelo menos, eu não estivesse de plantão quando eles
fossem admitidos. Minhas orações não foram atendidas. As mortes
continuaram acontecendo, implacáveis, e um grande sentimento de vazio e
de desespero encheu o meu coração.
O fato de eu estar solteiro,
sem amigos, morando sozinho e afogando minhas mágoas, toda noite livre,
em um bar ao lado do hospital, só piorava a situação. Nunca me faltavam
companheiros – da equipe do hospital, principalmente – com quem beber,
rir e me divertir na hora do rush, antes de voltar para jantar, TV e cama.
Meu coração batia, mas eu não estava vivo.
Espiritualmente,
eu era um alegre pagão, um Baco vestido com um imundo jaleco branco e
uma falsa auréola na cabeça. Mesmo tendo vivido uma profunda experiência
religiosa dois anos antes, minha vida moral continuava pintada com
vários tons de preto e minha cabeça estava cheia de ideias sem sentido
de sincretismo e "nova era".
Um dia, escrevendo o relatório de um
jovem paciente que tinha acabado de falecer, fiquei paralisado ante a
espreita do "cachorro negro" da depressão, pronto para me devorar. Eu
estava encarando o vazio e meu rosto deve ter feito soar o alarme,
porque um dos parentes da vítima veio me perguntar, preocupado: "Está
tudo bem, doutor?" Emocionado com a sua gentileza, eu me desculpei:
"Perdão, estou lutando para ver algo de bom aqui. Tem morte demais nesse
lugar."
Constrangido com minha própria franqueza e morbidez,
corri para a sala de plantão, desorientado à procura de uma introspecção
e de alguma conversa com Deus. Nada disso me ajudou, na verdade. As
enfermeiras devem ter pensado que eu era um desses senhores velhos e
desajeitados.
Outra coisa me incomodava em relação à ética do
hospital. Havia uma forte ênfase de pesquisa nos efeitos das terapias:
tratamento A versus tratamento B. Tudo medido pelo número total de dias
de sobrevivência, incluindo os pacientes da seção de terapia intensiva.
Meu único papel parecia ser o de prover, a qualquer preço, aquelas
últimas desesperadoras horas de vida, estendidas apenas por intervenções
médicas extremas e inúteis. Eu não passava de um mero acessório para a
confecção isolada de estatísticas. Parecia haver algo de errado naquilo
tudo.
Tive um sonho estranho certa noite. Encapuzado, como um
ativista pelos direitos dos animais, eu corria dentro do hospital,
rasgando prontuários e dizendo a todos os pacientes que eles pelo menos
estavam livres. No mínimo, bizarro.
Outra noite, fiquei até mais
tarde no bar, bebendo sozinho depois que meus amigos haviam saído. Eu
estava meio bêbado e não havia por que ir para casa, quando, de repente,
me sobreveio de não sei que lugar um forte sentimento de paranoia,
literalmente assustador. Por um momento, aquele aconchegante bar no qual
eu tomava alguns driques se tinha transformado em um antro de horrores.
Era como se eu estivesse vendo pela primeira vez aquele lugar como ele
realmente era: uma caverna suja repleta de alcoólatras caloteiros e
derrotados, e ali estava eu, um membro completo do clube. Os que ali
bebiam com frequência eram desconhecidos para mim, mas eu comecei a
suspeitar más intenções de cada olhadela deles em minha direção.
Senti-me tão sozinho. Comecei a ficar gelado e a suar, à procura de uma
rota de fuga.
Um terrível sentimento de morte iminente invadiu a
minha cabeça. Eu tinha certeza de que estava para conhecer o meu fim, ou
por violência, ou por alguma doença repentina. Minha mente saltava de
um lugar para outro considerando todas as possibilidades e, então, com
grande claridade e certeza, eu sabia que tinha que confessar os meus pecados a um padre sem demora, ou estaria condenado eternamente. Como
um jovem "na ativa" em uma grande cidade, o pecado não me era estranho,
como se pode ver, mas, até aquele momento, eu nunca havia percebido os
seus efeitos de morte sobre a minha alma.
Saí do bar como que
perseguido por uma horda de demônios e fiz o caminho até a entrada do
hospital, onde havia uma cabine telefônica. Eram cerca de 9 da noite e
ainda estava claro. Eu não pertencia a nenhuma paróquia, para quem
ligar? As páginas amarelas listavam as igrejas da cidade e um nome
saltou diante dos meus olhos. Era uma igreja jesuíta. Lembrei-me de
ouvir sobre o seu carisma missionário enquanto estudante de colégio
católico. Com certeza eles poderiam me ajudar.
Disquei rapidamente
e, em pânico, expliquei minha situação à atenciosa voz do outro lado da
linha. Eu sabia que devia estar parecendo um completo desvairado. A voz
me disse calmamente para eu ir ao seu encontro.
Pulei para dentro
de um táxi e cheguei lá em dois tempos. Da rua principal, avistei a
porta da frente e toquei a campainha. A tranquilidade e as sombras do
lugar não ajudavam a minha ansiedade. Sentia-me naquela famosa cena de
"O Exorcista".
A porta se abriu e a claridade do lado de dentro
instantaneamente dissipou a estranha penumbra que me cobria enquanto eu
esperava. Fui recebido por um dos irmãos, o mesmo que tinha me atendido
ao telefone. Eu devia estar parecendo um monstro alcoolizado, com os
meus olhos arregalados, o rosto pálido e um terrível bafo de cerveja.
Enquanto
eu esperava na entrada, a porta da frente se abriu de novo e dela saiu
um velho sacerdote baixinho, com óculos redondos, uma boina e um longo
casaco preto. Ele juntou-se a nós e, "Boa noite, irmão!", disseram
alegremente um ao outro, como fazem os irmãos.
Fui apresentado a
um quarto de hóspedes fora do hall de entrada. Alguns minutos depois,
apareceu um padre de meia idade, com os olhos pesados, vestido em uma
roupa clerical já meio desgastada. Obviamente, eu tinha tirado o pobre
homem da cama. Ríspido, ele deixou claro que tudo aquilo era muito fora
do comum, mas eu implorei tanto que ele escutasse a minha confissão que,
vendo o quão perturbado eu me encontrava, ele misericordiosamente
assentiu.
Eu estava bem fora de prática. Eram, afinal, dez anos
sem me confessar. O padre me ajudou e, com lágrimas, consegui acusar os
meus pecados. Recordei o Ato de Contrição da minha infância e, com as
palavras finais da absolvição e de olhos fechados, todo meu pavor foi
embora, completamente. Nunca tinha ficado tão agradecido como naquele
momento. Pedi desculpas pela invasão e deixei aquela casa em paz.
Um
coração consideravelmente mais iluminado observava a velha cidade
escura, enquanto eu pulava as poças de água para pegar o ônibus para
casa. Nada à minha volta tinha mudado, mas eu sim, eu estava reconciliado.
Percebi que apenas os meus próprios pecados podiam realmente me fazer
mal. Se eu pudesse cortar todas as amarras que me prendiam a eles,
perderia também o meu medo da morte, para sempre e de uma vez por todas.
Eu estava finalmente de volta ao aprisco e, agora, deveria dar o meu
melhor para ficar aqui. Esse empenho continua até o dia de hoje, nesse
tortuoso caminho familiar a todos os pecadores arrependidos. Minha
paranoia levou-me a uma metanoia, a uma completa mudança de mentalidade e de vida.
Tive
ainda que encontrar uma paróquia para ser minha casa espiritual e
reestabelecer o hábito de ir à Missa regularmente. Levaria alguns anos
até que eu novamente me sentisse parte de uma comunidade paroquial, como
a que eu tinha em minha juventude. O casamento e os filhos ajudaram a
acelerar esse processo.
Voltei à rotina do hospital. Aqueles
pobres pacientes continuavam a morrer, mas, agora, eu rezava por suas
almas, pedindo que recebessem o presente que eu tinha recebido, que a
luz perpétua os iluminasse.
O moderno tratamento médico pode
alterar apenas a hora, o lugar e o modo da morte corporal, mas não a sua
ocorrência inevitável. Infelizmente, muitos pacientes e familiares não
conseguem ver essa limitação ou sequer chegam a considerar a sua vida
espiritual. Ninguém deveria "entrar gentilmente naquela boa noite" ("go gentle in that good night") sem alguma preparação para o caminho e uma "luz generosa" ("Kindly Light") para o guiar [2].
Pacientes
de câncer estão bem conscientes de que foram invadidos por uma força
hostil que intenta a sua aniquilação. Católicos veem os pecados mortais
sob essa mesma luz: eles são um tumor letal, uma sentença de morte para a
alma, separando-a para sempre de Deus, que é seu único verdadeiro
repouso e morada. Todo o Evangelho não trata senão da morte dessa
"sentença de morte", alcançada pelo único sacrifício de Cristo por todos
na Cruz.
O pior câncer imaginável pode em teoria ser curado por
uma dose totalmente ablativa de radiação, enviada a todo o corpo. Isso
mata não apenas as células cancerígenas – para onde quer que elas se
tenham espalhado –, mas também a médula óssea, fonte vital de imunidade.
Sem um transplante de medula, o paciente irá morrer rapidamente mesmo
com a mais inofensiva infecção, como uma gripe comum. A médula doada
deve ser totalmente compatível, ou há um risco de que ela comece a
atacar os próprios tecidos do paciente.
O transplante que Jesus
nos dá na Eucaristia é perfeitamente compatível e revivificador para a
alma humana, já que Cristo é o doador universal. Mas esse transplante só
"funciona" com segurança na alma que foi perdoada do pecado
grave pelas terapias ablativas e purificadoras do Batismo e da
Reconciliação, que iluminam a alma com a graça santificante.
A
dor, a doença, a tristeza a e morte geralmente não nos são tiradas por
Jesus. Ao contrário, Ele nos mostra como usá-las santamente, em ordem a
unirmos os nossos sofrimentos aos d'Ele. Mesmo sendo um ótimo remédio, a
medicina não substitui uma união cada vez mais íntima com Jesus, e a
Sua imitação nas coisas mais pequenas, até o sacríficio final – para
tanto, serão suficientes, pelo menos a princípio, os sofrimentos
ordinários que todos nós temos no dia a dia.
As flechas do nosso
desejo de união com Deus, que nós lançamos contra a nuvem do
desconhecido (que esconde Deus de nós), retornam para nós, no bom tempo
de Deus, como dardos apontados para os nossos corações e envolvidos com o
óleo da caritas transformadora. O misterioso é que nossas
flechas estão geralmente sendo lançadas para cima sem a nossa plena
consciência, enquanto as nossas almas trabalham, balindo no
subconsciente por ajuda.
Quanto mais distante as ovelhas, mais
aguçados os ouvidos do Bom Pastor. Se algumas vezes parece que as nossas
orações não estão sendo atendidas, deve ser porque nosso Senhor está
ocupado lidando com aquelas em maior perigo. A paciência é sempre vital
para nós, que somos Seus pacientes.
É quando somos levados por
nossas escolhas ou pelas circunstâncias ao nosso ponto mais baixo e nos
encontramos desamparados, que a graça de Deus pode intervir ao máximo.
Quando somos fracos, Ele é o mais forte. Deus é gentil e educado e nunca
faz violência contra nós – até mesmo o divino médico exige o nosso
consentimento. Mas Ele nunca fracassa em salvar-nos de nossa aflição, se
permitirmos que Ele aja.
Mais de 20 anos depois, agora eu posso
ver como Deus resgatou minha alma doente e entorpecida de um destino
literalmente pior que a morte. Sem a sombria epifania que eu
experimentei naquele bar, e aquilo a que ela me levou, só Deus sabe onde
eu estaria agora.
Fonte: Catholic Herald | Tradução e adaptação: Equipe CNP
Notas
- O autor do texto é especialista no cuidado com pessoas em estado terminal. John Morrissey é apenas o seu pseudônimo.
- Os dois trechos entre aspas fazem referência a dois poemas de língua inglesa. O primeiro é Do not go gentle into that good night, do escritor Dylan Thomas (1914-1953). O segundo é a canção The Pillar of the Cloud, de autoria do bem-aventurado John Henry Newman (1801-1890).
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