A liturgia do 30° domingo do tempo comum fala-nos da preocupação de Deus
em que o homem alcance a vida verdadeira e aponta o caminho que é preciso
seguir para atingir essa meta. De acordo com a Palavra de Deus que nos é
proposta, o homem chega à vida plena, aderindo a Jesus e acolhendo a proposta
de salvação que Ele nos veio apresentar.
A primeira leitura afirma que, mesmo nos momentos mais dramáticos da
caminhada histórica de Israel, quando o Povo parecia privado definitivamente de
luz e de liberdade, Deus estava lá, preocupando-se em libertar o seu Povo e em
conduzi-lo pela mão, com amor de pai, ao encontro da liberdade e da vida plena.
A segunda leitura apresenta Jesus como o sumo-sacerdote que o Pai chamou
e enviou ao mundo a fim de conduzir os homens à comunhão com Deus. Com esta
apresentação, o autor deste texto sugere, antes de mais, o amor de Deus pelo
seu Povo; e, em segundo lugar, pede aos crentes que "acreditem" em
Jesus - isto é, que escutem atentamente as propostas que Ele veio fazer, que as
acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.
No Evangelho, o catequista Marcos propõe-nos o caminho de Deus para
libertar o homem das trevas e para o fazer nascer para a luz. Como Bartimeu, o
cego, os crentes são convidados a acolher a proposta que Jesus lhes veio
trazer, a deixar decididamente a vida velha e a seguir Jesus no caminho do amor
e do dom da vida. Dessa forma, garante-nos Marcos, poderemos passar da
escravidão à liberdade, da morte à vida.
1ª leitura (Jr. 31,7-9) - Ambiente
Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a
sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém
pelos Babilônios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o
reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de
Josias. Este rei - preocupado em defender a identidade política e religiosa do
Povo de Deus - leva a cabo uma impressionante reforma religiosa, destinada a
banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste
período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Jahwéh e à
aliança.
No entanto, em 609 a.C., Josias é morto, em combate contra os egípcios.
Joaquim sucede-lhe no trono. A segunda fase da atividade profética de Jeremias
abrange o tempo de reinado de Joaquim (609-597 a.C.).
O reinado de Joaquim é um tempo de desgraça e de pecado para o Povo, e
de incompreensão e sofrimento para Jeremias. Nesta fase, o profeta aparece a criticar
as injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) e a infidelidade
religiosa (traduzida, sobretudo, na busca das alianças políticas: procurar a
ajuda dos egípcios significava não confiar em Deus e, em contrapartida, colocar
a esperança do Povo em exércitos estrangeiros). Jeremias está convencido de que
Judá já ultrapassou todas as medidas e que está iminente uma invasão babilônica
que castigará os pecados do Povo de Deus. É, sobretudo, isso que ele diz aos
habitantes de Jerusalém ... As previsões funestas de Jeremias concretizam-se:
em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilônia uma parte da
população de Jerusalém.
No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase
da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este
reinado.
Após alguns anos de calma submissão à Babilônia, Sedecias volta a
experimentar a velha política das alianças com o Egito. Jeremias não está de
acordo que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh ... Mas,
nem o rei, nem os notáveis prestam qualquer atenção à opinião do profeta.
Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um
exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilônios retiram-se. Nesse
momento de euforia nacional, Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e
a destruição de Jerusalém (cf. Jr. 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é
encarcerado (cf. Jr. 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr.
38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor
apossa-se, de fato, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para
a Babilônia (586 a.C.).
É impossível dizer com segurança o contexto em que apareceu essa
mensagem que o texto que nos é hoje proposto apresenta.
Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que poderia situar-se
na primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e
dirigir-se-ia aos israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem de
esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido
a independência e estava sob o domínio assírio.
Para outros, contudo, este texto será da época de Sedecias, algures
entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilônia (597-586
a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspectivas teológicas novas e
começa a refletir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a
catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova
Aliança com Judá.
Mensagem
O texto que nos é proposto começa com um convite à alegria e ao louvor
(v. 7). Porquê? Porque Jahwéh vai reunir o seu Povo (disperso na Assíria? Na
Babilônia?), vai conduzi-lo através do deserto e vai fazê-lo retornar à sua
pátria. Reunir, conduzir e fazer retornar à pátria são os três verbos que,
tradicionalmente, definem a ação de Deus em favor do seu Povo, durante o Êxodo.
Depois da afirmação geral, o profeta apresenta alguns pormenores deste
Novo Êxodo. Da comitiva farão parte "o cego e o coxo, a mulher grávida e a
que deu à luz" (v. 8b). O cego e o coxo são figuras tradicionais ligadas
ao tema do Êxodo (cf. Is. 35,5), onde relembram a situação de necessidade e de
carência em que os exilados jazem e, ao mesmo tempo, evocam a ação
extraordinária de Deus no sentido de libertar o seu Povo dessa carência e dessa
necessidade. Na imagem da mulher grávida e na da mulher que deu à luz, o profeta
representa a dor e o sofrimento, mas também a fecundidade, a alegria, a
esperança num futuro novo e cheio de vida.
No último versículo do nosso texto (v. 9), Jahwéh apresenta-Se como um
pai cheio de amor pelo seu filho/Povo. Esse amor irá traduzir-se no final do
Exílio e no regresso dos exilados à sua terra "entre grande
consolação", por "caminhos direitos" e fáceis. No final desse
Êxodo triunfal, Jahwéh vai oferecer ao seu Povo vida abundante e fecunda
("conduzi-Ios-ei às torrentes de água").
O texto dá conta da preocupação de Deus com a vida, a felicidade e a
realização plena do seu Povo. Mesmo nos momentos mais dramáticos da caminhada
histórica de Israel, quando o Povo parecia privado definitivamente de luz e de
liberdade (o "cego" e o "coxo"), Deus estava lá,
preocupando-se em libertar o seu Povo e em conduzi-lo pela mão, com amor de
pai, ao encontro da liberdade e da vida plena.
Atualização
O que este texto nos diz, antes de mais, é que o Deus em quem
acreditamos não é um Deus insensível e alheado das dores e dificuldades dos
homens; mas é um Deus sensível e atento, que cuida dos seus filhos com cuidados
de pai. Ao longo do percurso que vamos percorrendo pela história, também nós
fazemos, como os antigos israelitas, a experiência da escravidão, da dependência,
do medo, do desespero, da decepção ... A Palavra de Deus que hoje nos é servida
garante-nos: não estamos sozinhos frente aos nossos dramas e sofrimentos; Deus
vai ao nosso lado e, com amor de pai, cuida de nós, dá-nos a mão, conduz-nos ao
encontro da vida eterna e verdadeira. A nós resta-nos reconhecer a sua presença
(às vezes tão discreta que nem a notamos) e, com humildade e simplicidade,
aceitar o seu amor.
• Na perspectiva do profeta, a ação salvadora e libertadora de Deus
estender-se-á a todos, inclusive aos "cegos" e aos "coxos".
Os "coxos" e os "cegos representam, aqui, aqueles que estão numa
situação de fragilidade, de debilidade, de dependência e que são incapazes, por
si sós, de deixar essa condição. Também com esses - ou especialmente com esses
- Deus quer caminhar. Na verdade, Deus não marginaliza ninguém, nem coloca
ninguém à margem da sua proposta de salvação ... Os fracos, os débeis, os
limitados, os marginalizados ocupam um lugar especial no coração de Deus e são
objeto privilegiado do seu amor e da sua misericórdia. Na nossa sociedade, os
pequenos, os pobres, os doentes, os velhos, os estrangeiros sem papéis são,
frequentemente, marginalizados e ultrapassados pelo comboio da história. A
sociedade edifica-se sem eles ou, pelo menos, sem ter em conta as suas
necessidades e carências... Nós, os crentes, formados na escola de Deus,
precisamos olhar para eles com o mesmo olhar de Deus, descobrir que também eles
são filhos queridos e amados de Deus, denunciar as estruturas que os marginalizam,
criar mecanismos de inclusão e de integração. É preciso ver em cada homem ou
mulher - no "coxo", no "cego", no velho, no doente, no
marginal - um irmão que Deus ama e a quem quer oferecer, por nosso intermédio,
a vida plena, a salvação definitiva.
Em todo o capítulo 31 do profeta Jeremias (de onde é retirado o texto
que nos é proposto), há um impressionante apelo à esperança, à confiança em
Deus. Por vezes, somos tentados a olhar para a nossa vida e para a história do
nosso mundo, com os óculos do pessimismo, do medo e do desespero ... O
terrorismo, os crimes ambientais, as dificuldades econômicas, as doenças
incuráveis, a fome, a miséria, os valores efêmeros, parecem pintar de negro o
nosso futuro e o futuro do nosso planeta ... Contudo, a Palavra de Deus que
hoje nos é proposta garante-nos: não tenhais medo, pois Deus caminha convosco
pela história e, como um pai cheio de bondade que ensina o filho a caminhar,
há-de conduzir-vos pela mão ao encontro da vida verdadeira. Há, certamente, um
futuro para nós, pois Deus ama-nos e caminha conosco.
2ª leitura (Hb. 5,1-6) - Ambiente
Continuamos, neste 30° domingo do tempo comum, a ler a carta aos Hebreus
- uma reflexão destinada a comunidades cristãs em situação difícil, expostas a
perigos vários e que, por isso mesmo, estão numa situação de fragilidade, de
cansaço e de desalento. O objetivo do autor da carta é ajudar esses cristãos a
redescobrir o seu entusiasmo inicial, a revitalizar o seu compromisso com
Cristo e a empenhar-se numa fé mais coerente e mais comprometida.
Nesse sentido, o autor desta reflexão convida os crentes a apreciar o
mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, que o Pai enviou ao mundo com a
missão de convidar todos os homens a integrar a comunidade do povo sacerdotal.
Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes - membros desse povo sacerdotal -
devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor.
Ao lembrar aos crentes o seu compromisso com Cristo e com a comunidade do Povo
sacerdotal, o autor oferece aos cristãos a base para revitalizarem a sua
experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação,
pela monotonia.
O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da carta aos
Hebreus (cf. Hb. 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e
misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e
para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que "acreditem" em
Jesus - isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que
as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.
Mensagem
No universo religioso judaico, o sumo-sacerdote ocupava o lugar cimeiro
na hierarquia do clero do Templo e, de alguma forma, presidia à instituição
sacerdotal. Era ele o único a entrar, uma vez no ano, no lugar mais sagrado do
Templo ("Debir" ou "Santo dos Santos"), no solene "Dia
das Expiações" ("Yom Kippurim"), com o sangue de um animal
imolado, para aspergir o "propiciatório" ("kapporet") e
conseguir o perdão de Deus para os pecados do Povo. Dessa forma, o
sumo-sacerdote tornava-se o intermediário por excelência da relação entre os
homens e Deus.
Para a mentalidade judaica, há três elementos fundamentais ligados à
figura do sumo-sacerdote. Em primeiro lugar, ele é um escolhido de Deus: o
sumo-sacerdote não é alguém que, por sua iniciativa pessoal, se propõe para o
cargo; mas é alguém a quem Deus chama e a quem confia esta missão (foi Deus
que, por sua iniciativa, chamou Aarão e toda a sua descendência). Em segundo
lugar, o sumo-sacerdote é um homem tomado de entre os homens: a sua humanidade
não o torna inapto para uma missão tão sublime; pelo contrário, a fragilidade e
debilidade que resultam da sua humanidade tornam-no apto para compreender os
erros e os pecados dos outros homens por quem intercede. Em terceiro lugar, o
sumo-sacerdote tem uma função mediadora: a sua missão é "oferecer dons e
sacrifícios pelos pecados", apresentando diante de Deus o arrependimento
dos homens e trazendo aos homens o perdão de Deus; dessa forma, ele refaz a
relação dos homens com Deus.
Na perspectiva do autor da carta aos Hebreus, Jesus é o sumo-sacerdote
por excelência. Em primeiro lugar, porque Ele foi chamado e destinado por Deus
a esta missão (apesar de não ser da linhagem do sacerdote Aarão); o fato de ser
Filho de Deus dá ao seu sacerdócio uma categoria, uma dignidade e uma qualidade
suprema, uma vez que o coloca em contacto pessoal e íntimo com o Pai, dando
dessa forma uma expressão mais completa a essa mediação que Ele é chamado a realizar
entre Deus e os homens.
Em segundo lugar, porque Ele foi homem, também. Ao assumir a nossa
humanidade, Ele experimentou a nossa debilidade e fragilidade e tornou-Se capaz
de entender as nossas fraquezas e os nossos pecados e de Se tornar o nosso
mediador e intercessor junto do Pai.
A sua proximidade e intimidade com o Pai, por um lado, e a sua
humanidade, por outro tornam-n'O, finalmente, o perfeito mediador e
intercessor, capaz de restabelecer definitivamente a comunhão entre Deus e os
homens. De fato, Ele veio ao nosso encontro, mostrou-nos o amor do Pai,
convidou-nos a eliminar o egoísmo e o pecado que nos afastavam da comunhão com
Deus, chamou-nos a integrar a família de Deus e ensinou-nos o que fazer para
sermos filhos de Deus.
Atualização
Ao apresentar Jesus como o sumo-sacerdote, chamado pelo Pai e enviado ao
mundo para libertar os homens do egoísmo e do pecado e para os conduzir à
comunhão com Deus, o autor da Carta aos Hebreus convida-nos (todos os textos
que a liturgia deste domingo nos propõe apontam no mesmo sentido) a contemplar
a grandeza do amor que Deus nos dedica. A contemplação da encarnação de Jesus e
de tudo o que Ele realizou enquanto percorreu os caminhos e aldeias da
Palestina fala-nos de um amor sem limites, expresso em gestos concretos e que
culmina na entrega total, na cruz. A nós resta-nos olhar para Jesus,
escutá-I'O, aceitar a sua proposta, banir da nossa vida o egoísmo e o pecado,
segui-l'O nesse caminho do dom e da entrega que irá levar-nos a integrar a
família de Deus e a possuir a vida verdadeira.
Para o autor do nosso texto, ao assumir a nossa humanidade, Jesus
experimentou a nossa fragilidade, a nossa debilidade, a nossa dependência;
tornou-Se, portanto, capaz de compreender os nossos erros e falhas e de olhar
para as nossas insuficiências com bondade e misericórdia. Para a nossa vida
concreta, há duas consequências que resultam daqui... A primeira leva-nos à
confiança e à esperança: junto de Deus nosso Pai, temos um intercessor que
entende as nossas dificuldades e que, apesar das nossas falhas, continua
apostado em integrar-nos na família de Deus. A segunda leva-nos ao compromisso
com os irmãos: a solidariedade de Cristo conosco convida-nos à solidariedade
com os pequenos, com os últimos, com os pobres, com aqueles que o mundo rejeita
e marginaliza; convida-nos a identificarmo-nos com os sofrimentos e angústias,
com as alegrias e esperanças de cada homem ou mulher; convida-nos a fazer o que
estiver ao nosso alcance para promover aqueles que são humilhados, explorados,
incompreendidos, colocados à margem da vida ...
Os planos de Deus para salvar e libertar os homens concretizaram-se
porque Cristo, o Filho, assumiu os projetos do Pai e viveu sempre na obediência
incondicional às propostas de Deus. Hoje, os projetos de salvação e de
libertação que Deus tem para os homens continuam a concretizar-se através
daqueles que aderiram a Jesus e querem, como Ele, viver na estrita obediência
aos planos de Deus. Sinto-me, como Jesus, testemunha da salvação de Deus diante
dos meus irmãos? Meu egoísmo e a minha acomodação alguma vez me desviaram do
cumprimento dos projetos de Deus? Aqueles que eu encontro, a cada passo, nos
caminhos do mundo, têm encontrado em mim uma proposta credível de vida e de
libertação?
Evangelho: Mc. 10,46-52 - Ambiente
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos.
Naquele tempo, 10 46 Jesus e seus discípulos chegaram a Jericó. Ao sair dali Jesus, seus discípulos e numerosa multidão, estava sentado à beira do caminho, mendigando, Bartimeu, que era cego, filho de Timeu.
47 Sabendo que era Jesus de Nazaré, começou a gritar: "Jesus, filho de Davi, em compaixão de mim!"
48 Muitos o repreendiam, para que se calasse, mas ele gritava ainda mais alto: "Filho de Davi, tem compaixão de mim!"
49 Jesus parou e disse: "Chamai-o" Chamaram o cego, dizendo-lhe: "Coragem! Levanta-te, ele te chama."
50 Lançando fora a capa, o cego ergueu-se dum salto e foi ter com ele.
51 Jesus, tomando a palavra, perguntou-lhe: "Que queres que te faça?” “Rabôni”, respondeu-lhe o cego, “que eu veja!”
52 Jesus disse-lhe: “Vai, a tua fé te salvou." No mesmo instante, ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho.
Palavra da Salvação.
Naquele tempo, 10 46 Jesus e seus discípulos chegaram a Jericó. Ao sair dali Jesus, seus discípulos e numerosa multidão, estava sentado à beira do caminho, mendigando, Bartimeu, que era cego, filho de Timeu.
47 Sabendo que era Jesus de Nazaré, começou a gritar: "Jesus, filho de Davi, em compaixão de mim!"
48 Muitos o repreendiam, para que se calasse, mas ele gritava ainda mais alto: "Filho de Davi, tem compaixão de mim!"
49 Jesus parou e disse: "Chamai-o" Chamaram o cego, dizendo-lhe: "Coragem! Levanta-te, ele te chama."
50 Lançando fora a capa, o cego ergueu-se dum salto e foi ter com ele.
51 Jesus, tomando a palavra, perguntou-lhe: "Que queres que te faça?” “Rabôni”, respondeu-lhe o cego, “que eu veja!”
52 Jesus disse-lhe: “Vai, a tua fé te salvou." No mesmo instante, ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho.
Palavra da Salvação.
O Evangelho deste domingo propõe-nos a última etapa desse caminho
(geográfico, mas também espiritual) que Jesus iniciou com os discípulos na
Galileia e que irá leva-lo a Jerusalém, ao encontro da paixão, morte e
ressurreição. É a última cena de um percurso que não tem sido fácil e no qual
os discípulos, como cegos, se aferram às suas idéias e projetos próprios,
recusando-se a entender e a aceitar que o caminho do Reino deva passar pela
cruz e pelo dom da vida.
O episódio que hoje nos é proposto situa-nos à saída da cidade de
Jericó. Jericó, a "cidade das Palmeiras", é um oásis situado na
margem do rio Jordão, a norte do mar Morto, e que dista cerca de 30 quilômetros
de Jerusalém. Na época de Jesus, era uma cidade relativamente importante, onde
Herodes, o Grande, tinha edificado um luxuoso palácio de inverno.
Além de Jesus, Marcos coloca no centro da cena um mendigo cego com o
nome de Bartimeu ("filho de Timeu"). Este nome, meio aramaico
("bar") e meio grego ("timaios"), é um nome perfeitamente
inusual no ambiente hebraico-palestinense onde a história é situada (nunca
aparece entre os cerca de 2.000 nomes próprios que ocorrem no Antigo
Testamento); aos leitores romanos de Marcos, contudo, o nome devia evocar o
"Timeo", um dos mais conhecidos "diálogos" de Platão.
Alguns autores pensam que, mais do que um personagem histórico, o cego Bartimeu
seria uma figura simbólica.
Os "cegos" faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade
palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas - pela teologia
oficial - como resultado do pecado. Segundo a concepção da época, Deus
castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o
resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de
estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua
condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas
no tribunal e de participar nas cerimônias religiosas no Templo.
Mensagem
É natural que Jesus tenha encontrado, quando saía de Jericó, um cego que
mendigava junto da estrada... No entanto, parece claro que, à volta desse
acontecimento fundamental, Marcos construiu uma catequese para os seus
leitores. Quem é, na catequese de Marcos, este "cego" que Jesus
encontra ao longo do caminho, quando se dirige para Jerusalém? Ele representa
todos esses a quem a teologia oficial considerava pecadores, malditos, impuros,
marginais, longe de Deus e da sua proposta de salvação.
O cego da nossa história está sentado à beira do caminho, provavelmente
a pedir esmola. O estar sentado significa acomodação, instalação, conformismo.
Ele está privado da luz e da liberdade e está conformado com a sua triste
situação, sabendo que, por si só, é incapaz de sair dela. O pedir esmola (o
texto refere explicitamente a sua condição de mendigo - v. 46) indica a
situação de escravidão e de dependência em que o homem se encontra.
Contudo, a passagem de Jesus de Nazaré dá ao cego a consciência da sua
situação de miséria, de dependência, de escravidão. Então, Bartimeu percebe o
sem sentido da sua situação e sente a vontade de apostar numa outra
experiência. A passagem de Jesus na vida de alguém é sempre um momento de
tomada de consciência, de questionamento, de desafio, que leva a pôr em causa a
vida velha e a sentir o imperativo de ir mais além ... No entanto, Bartimeu
está consciente da sua debilidade e sente que, sem a ajuda de Jesus, continuará
envolvido pelas trevas da dependência, da escravidão, da instalação ... Por
isso, pede: "Jesus, filho de David, tem misericórdia de mim" (v. 47).
O título "filho de David" é um título messiânico. Portanto, Bartimeu
vê em Jesus esse Messias libertador que, segundo a mentalidade judaica, havia
de vir não só para salvar Israel dos opressores, mas também para dar vida em
plenitude a cada membro do Povo de Deus.
Antes de referir a intervenção de Jesus, Marcos dá conta da reação dos
que estão à volta de Jesus: repreendiam o cego e queriam fazê-lo calar (v. 48).
Quando alguém encontra Jesus e resolve deixar a vida antiga para aderir ao
Reino que Jesus veio propor, encontra sempre resistências (que vêm, por vezes,
dos familiares, dos amigos, dos colegas). Estes que repreendem e mandam calar o
cego representam, portanto, todos aqueles que colocam obstáculos a quem quer
deixar a sua situação de miséria e de escravidão para aderir à proposta
libertadora que Cristo faz. No entanto, a oposição não só não desarma o cego,
como o leva a gritar ainda mais forte: "filho de David, tem misericórdia
de mim".
A incompreensão ou a oposição dos homens nunca fazem desistir aquele que
viu Jesus passar e que viu n'Ele uma proposta de vida e de liberdade.
Jesus parou e mandou chamar o cego. A cena recorda-nos os relatos do
chamamento dos discípulos (cf. Mc. 1,16-20; 2,14; 3,13). Os mediadores que
transmitem ao cego as palavras de Jesus dizem-lhe: "coragem, levanta-te
que Ele chama-te" (v. 49). Ou seja: deixa a tua situação de miséria, de
escravidão e de dependência, porque Jesus chama-te. O chamamento é sempre,
nestes casos, a tornar-se discípulo, a seguir Jesus no caminho do amor e do dom
da vida.
Em resposta, o cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus
(v. 50). A capa podia estar colocada debaixo do cego, como almofada, ou nos
seus joelhos, para recolher as moedas que lhe atiravam; em qualquer caso, a
capa é tudo o que um mendigo possui, a única coisa de que ele pode separar-se
(outros deixaram o barco, as redes ou a banca onde recolhiam impostos). O
deitar fora a capa significa, portanto, o deixar tudo o que se possui para ir
ao encontro de Jesus. É um corte radical com o passado, com a vida velha, com a
anterior situação, com tudo aquilo em que se apostou anteriormente, a fim de
começar uma vida nova ao lado de Jesus.
Jesus perguntou ao cego: "que queres que te faça?". É a mesma
pergunta que, pouco antes, Jesus fizera a João e Tiago (cf. Mc. 10,36). A
identidade da pergunta acentua, contudo, a diferença da resposta... Os dois
irmãos queriam sentar-se ao lado de Jesus e ver concretizados os seus sonhos de
grandeza e de poder; o cego Bartimeu, ao contrário, cansado de estar sentado
numa vida de escravidão e de cegueira, quer encontrar a luz para seguir Jesus
(v. 51).
Jesus responde a Bartimeu: "vai, a tua fé te salvou" (v. 52).
A fé não é a simples adesão a determinadas verdades abstratas, que o crente
aceita acriticamente; mas, no contexto neo-testamentário, a fé é a adesão a
Jesus e à sua proposta de salvação. Por isso, Marcos termina a sua história
dizendo que o cego recuperou a vista e seguiu Jesus - isto é, fez-se discípulo
de Jesus. Ao aderir a Jesus e à sua proposta de salvação, ao aceitar seguir
Jesus no caminho do amor e do dom da vida (Jesus prepara-Se para entrar em
Jerusalém, onde vai fazer dom da sua vida em favor dos homens), Bartimeu
encontrou a salvação: deixou a vida da escuridão, da escravidão, da dependência
em que estava e nasceu para essa vida verdadeira e eterna que, através de
Jesus, Deus oferece aos homens.
O cego Bartimeu que encontráramos a mendigar, sentado à beira do
caminho, à saída de Jericó representava, inicialmente, os pecadores que viviam
longe de Deus e à margem da salvação. Depois de encontrar Jesus, Bartimeu
transforma-se e torna-se o protótipo do verdadeiro discípulo... Destinatário
privilegiado da proposta de salvação que Jesus traz, ele proclama sem
hesitações a sua fé, invoca a ajuda e a misericórdia de Jesus, acolhe sem
hesitações o chamamento que lhe é feito, liberta-se da vida velha e, com
alegria, decisão e entusiasmo, aceita, sem condições, seguir Jesus no caminho
do amor e do dom da vida. É com Bartimeu que os discípulos de Jesus são
convidados a identificar-se.
Atualização
A situação inicial do cego Bartimeu (que jaz na escuridão, dependente,
acomodado, conformado) evoca uma realidade que conhecemos bem... Evoca a
condição do homem escravo, prisioneiro do egoísmo, do orgulho, dos bens
materiais, da preguiça, da vaidade, do êxito; evoca a condição daquele que está
acomodado na sua situação de miséria, instalado nos seus preconceitos e
projetos pessoais, conformado com uma vida de horizontes limitados; evoca a
condição daquele que se sente refém dos seus vícios, hábitos e paixões e que
sente a sua incapacidade em romper, por si só, as cadeias que o impedem de ser
livre... Esta situação será uma situação insuperável, a que o homem está
condenado de forma permanente?
A Palavra de Deus que nos é proposta garante-nos que a situação do homem
cego, prisioneiro da escuridão, não é uma situação incontornável, obrigatória,
sem remédio... Jesus veio ao mundo, enviado pelo Pai, com uma proposta de
libertação destinada a todos aqueles que procuram a luz e a vida verdadeira.
Esse Jesus de Nazaré que Se cruzou com o cego à saída de Jericó continua a
cruzar-Se hoje, de forma continuada, com cada homem e com cada mulher nos
caminhos da vida e oferece-lhes, sem cessar, a proposta libertadora de Deus...
É preciso, no entanto, que não nos fechemos no nosso egoísmo e na nossa
auto-suficiência, surdos e cegos aos apelos de Deus; é preciso que as nossas
preocupações com os valores efêmeros não nos distraiam do essencial; é preciso
que aprendamos a reconhecer os desafios de Deus nesses acontecimentos banais
com que, tantas vezes, Deus nos interpela e questiona...
O que é que implica aceitar a proposta que Jesus faz? Fundamentalmente
implica - como aconteceu com Bartimeu - tornar-se discípulo... Ser discípulo de
Jesus é aderir à sua pessoa, acolher os seus valores, viver na obediência aos
projetos do Pai, fazer da vida um dom de amor aos irmãos; é solidarizar-se com
os pequenos, com os pobres, com os perseguidos, com os marginalizados e lutar
por um mundo onde todos sejam acolhidos como filhos de Deus, iguais em direitos
e em dignidade; é lutar contra as estruturas que geram injustiça, opressão e
morte; é ser testemunha, com palavras e com gestos, da verdade, da justiça, da
paz, da reconciliação. Quem aceita seguir o caminho do discípulo escolhe viver
na luz e está a contribuir para a construção de um mundo novo.
Quando reconhecemos o "chamamento" de Deus, qual deve ser a
nossa resposta?
Bartimeu, logo que ouviu dizer que Jesus o chamava, atirou fora a sua
capa e correu ao encontro de Jesus. O gesto de Bartimeu representa, aqui, a
renúncia imediata à vida antiga, ao egoísmo, ao comodismo, à escravidão, aos
comportamentos incompatíveis com a adesão a Cristo e a esse caminho novo que
Jesus o convida a percorrer. É isso, também, que é pedido a todos aqueles a
quem Jesus chama à vida nova...
Na história do encontro de Bartimeu com Cristo, aparecem outros
personagens, com papéis vários. Uns constituem obstáculos à adesão de Bartimeu
a Cristo; outros apresentam-se como intermediários entre Cristo e Bartimeu e
transmitem ao cego as palavras de Jesus... Este fato serve para nos tornar
conscientes do papel daqueles que nos rodeiam no nosso caminho da fé... Ao
longo da nossa caminhada, encontraremos sempre pessoas que nos ajudam a ir ao
encontro de Cristo e pessoas que (muitas vezes com ótimas intenções) tentam
impedir-nos de encontrar Cristo. Precisamos de aprender a discernir entre as
várias opiniões que nos são propostas e a dar a devida importância a quem nos
ajuda a descobrir o caminho para a verdadeira vida.
Quem encontra Cristo e aceita o desafio para viver como discípulo tem, a
partir daí, um caminho fácil? De forma nenhuma. Tem de abandonar a vida cômoda
e instalada em que vivia e enfrentar uma nova realidade, num desafio
permanente, num questionamento constante; tem de aprender a enfrentar as
críticas, as incompreensões, os confrontos com aqueles que não compreendem a
sua opção; tem de percorrer, dia a dia, o difícil caminho do amor, do serviço,
da entrega, do dom da vida... É preciso, no entanto, que o discípulo esteja
consciente de que o caminho de Jesus não é um caminho que leva à morte, mas é
um caminho que leva à ressurreição, à vida verdadeira e eterna.
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