A liturgia do 28º domingo do tempo comum
convida-nos a refletir sobre as escolhas que fazemos; recorda-nos que nem sempre
o que reluz é ouro e que é preciso, por vezes, renunciar a certos valores
perecíveis, a fim de adquirir os valores da vida verdadeira e eterna.
Na primeira leitura, um “sábio” de Israel
apresenta-nos um “hino à sabedoria”. O texto convida-nos a adquirir a
verdadeira “sabedoria” (que é um dom de Deus) e a prescindir dos valores
efêmeros que não realizam o homem. O verdadeiro “sábio” é aquele que escolheu
escutar as propostas de Deus, aceitar os seus desafios, seguir os caminhos que
Ele indica.
O Evangelho apresenta-nos um homem que quer
conhecer o caminho para alcançar a vida eterna. Jesus convida-o renunciar às
suas riquezas e a escolher “caminho do Reino” – caminho de partilha, de
solidariedade, de doação, de amor. É nesse caminho – garante Jesus aos seus
discípulos – que o homem se realiza plenamente e que encontra a vida eterna.
A segunda leitura convida-nos a escutar e a acolher
a Palavra de Deus proposta por Jesus. Ela é viva, eficaz, atuante. Uma vez
acolhida no coração do homem, transforma-o, renova-o, ajuda-o a discernir o bem
e o mal e a fazer as opções corretas, indica-lhe o caminho certo para chegar à
vida plena e definitiva.
1ª leitura: Sb. 7,7-11 - Ambiente
O “livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os
livros do Antigo Testamento (aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um
judeu de língua grega, provavelmente nascido e educado na Diáspora
(Alexandria?) – exprimindo-se em termos e concepções do mundo helênico, faz o
elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e
o “ímpio” no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo)
as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a
Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egito), num meio fortemente
helenizado. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e
hostilizadas. A enorme colônia judaica residente na cidade conhece mesmo,
sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu
Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helênicos procuram
demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a
incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os judeus são encorajados
a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da
cultura helênica.
É neste ambiente que o sábio autor do Livro da
Sabedoria decide defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu
objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no
paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos
pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o
absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus… Para uns e
para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Jahwéh
garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.
O texto que nos é proposto integra a segunda parte
do livro (cf. Sb. 6,1-9,18). Aí, o autor apresenta o “elogio da sabedoria”.
Este “elogio da sabedoria” pode dividir-se em três pontos… No primeiro (cf. Sb.
6,1-21), há uma exortação aos reis no sentido de adquirirem a “sabedoria”; no
segundo (cf. Sb. 6,22-8,21), há uma descrição da natureza e das propriedades da
“sabedoria”, aqui apresentada como o valor mais importante entre todos os
valores que o homem pode adquirir; no terceiro (cf. Sb. 9,1-18), aparece uma
longa oração do autor, implorando de Jahwéh a “sabedoria”.
O que é esta “sabedoria” de que aqui se fala? É,
fundamentalmente, a capacidade de fazer as escolhas corretas, de tomar as
decisões certas, de escolher os valores verdadeiros que conduzem o homem ao
êxito, à realização, à felicidade. Na perspectiva dos “sábios” de Israel, esta
“sabedoria” vem de Deus e é um dom que Deus oferece a todos os homens que
tiverem o coração disponível para o acolher. É preciso, portanto, ter os
ouvidos atentos para escutar e o coração disponível para acolher a “sabedoria”
que Deus quer oferecer a todos os homens.
O autor deste “elogio da sabedoria” apresenta-se a
si próprio como o rei Salomão (embora o nome do rei nunca seja referido
explicitamente). Na realidade, o “Livro da Sabedoria” não vem de Salomão (já
vimos que é um texto escrito no séc. I a.C., por um judeu da Diáspora,
possivelmente de Alexandria); mas Salomão, o protótipo do rei sábio era, para
os israelitas, a pessoa indicada para apresentar a “sabedoria” e para a
recomendar a todos os homens. Usando uma ficção literária, o autor coloca,
pois, na boca de Salomão este discurso sapiencial.
Mensagem
Salomão pediu a Deus a “sabedoria” e ela foi-lhe
concedida (v. 7). Há aqui uma alusão discreta ao episódio narrado em 1 Re
3,5-15, que conta como Salomão, ainda um jovem rei inexperiente, se dirigiu a
um santuário em Guibeon e pediu a Deus “um coração cheio de entendimento para
governar o povo, para discernir entre o bem e o mal” (1Re. 3,9); e Deus,
correspondendo a este pedido, deu-lhe “um coração sábio e perspicaz” (1Re.
3,12).
Para o rei, a “sabedoria” tornou-se o valor mais
apreciado, superior ao poder, à riqueza, à saúde, à beleza, a todos os bens
terrenos (vs. 8-10a). Ela é a “luz” que indica caminhos e que permite discernir
as opções corretas a tomar. Ao contrário dos bens terrenos, ela não se extingue
nem perde o brilho (v. 10b): é um valor duradouro, que vem de Deus e que conduz
o homem ao encontro da vida verdadeira, da felicidade perene.
Contudo, a “sabedoria” não afastou este rei dos
outros bens… Pelo contrário, a opção pela “sabedoria” fê-lo encontrar “todos os
bens” e “riquezas inumeráveis” (v. 11), pois a “sabedoria” está na base de
todos eles. É ela que lhe permite gozar os bens terrenos com maturidade e
equilíbrio, sem obsessão e sem cobiça, colocando-os no seu devido lugar e não
deixando que sejam eles a conduzir a sua vida e a ditar as suas opções.
Atualização
A “sabedoria” é um dom de Deus que o homem deve
acolher com humildade e disponibilidade. Ela não chega a quem se situa diante
de Deus numa atitude de orgulho e de auto-suficiência; ela não atinge quem se
fecha em si próprio e constrói uma vida à margem de Deus; ela não encontra
lugar no coração e na vida de quem ignora Deus, os seus desafios, as suas
propostas. O “sábio” é aquele que, reconhecendo a sua finitude e debilidade, se
coloca nas mãos de Deus, escuta as suas propostas, aceita os seus desafios,
segue os caminhos que Ele indica. Talvez um dos grandes dramas do homem do
século XXI seja o prescindir de Deus e de passar com total indiferença ao lado
das propostas de Deus. Dessa forma, construímos com frequência esquemas de
egoísmo, de violência, de exploração, de ódio, que desfeiam o mundo e magoam
aqueles que caminham ao nosso lado. Em que é que eu aposto: na minha
“sabedoria” (que tantas vezes me conduz por caminhos de injustiça, de divisão,
de sofrimento, de infelicidade) ou na “sabedoria” de Deus (que sempre me conduz
ao encontro da vida plena e da felicidade sem fim)?
Todos nós temos determinados valores que dirigem e
condicionam as nossas opções, as nossas atitudes, os nossos comportamentos. A
uns damos mais importância; a outros damos menos significado… O nosso texto
convida-nos a ter cuidado com a forma como hierarquizamos os valores sobre os
quais construímos a nossa vida… Há valores efêmeros e passageiros (o dinheiro,
o poder, o êxito, a moda, o reconhecimento social…) que não podem ser
absolutizados. Eles não são maus, por si próprios; não podemos é deixar que eles
tomem conta da nossa vida, condicionem todas as nossas opções, nos escravizem
de tal modo que nos levem a esquecer outros valores mais importantes e mais
duradouros. Os valores efêmeros não servem para encher completamente a nossa
vida de significado e não nos garantem a vida verdadeira. Têm o seu lugar na
nossa existência; mas não podem crescer de tal forma que açambarquem todo o
espaço livre no nosso coração e na nossa vida.
O “sábio” autor do nosso texto garante-nos que
escolher a “sabedoria” não significa prescindir de outros valores mais
materiais e efêmeros. Por vezes, existe a idéia de que acolher as propostas de
Deus e seguir os seus caminhos significa renunciar a tudo aquilo que nos pode
tornar felizes e realizados… Não é verdade. Há valores, mesmo efêmeros, que são
perfeitamente compatíveis com a nossa opção pelos valores de Deus e do Reino.
Não se trata de nos fecharmos ao mundo, de renunciarmos definitivamente às
coisas belas que o mundo nos pode oferecer e que nos dão segurança e
estabilidade; trata-se de darmos prioridade àquilo que é realmente importante e
que nos asseguram, não momentos efêmeros, mas momentos eternos de felicidade e
de vida plena.
2ª leitura: Hb. 4,12-13 - Ambiente
Já vimos, no passado domingo, que a Carta aos
Hebreus é um sermão destinado a comunidades cristãs instaladas na monotonia e
na mediocridade, que se deixaram contaminar pelo desânimo e começaram a ceder à
sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos
apóstolos… O objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do
compromisso cristão e levar os crentes a viver uma fé mais coerente e
empenhada. Nesse sentido, o autor apresenta o mistério de Cristo, o sacerdote
por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los
nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com
Cristo, os crentes devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de
entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento
e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé,
enfraquecida pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo
inicial. O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos
Hebreus (cf. Hb. 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e
misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e
para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto
é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham
no coração e que as transformem em gestos concretos de vida. O texto que nos é
proposto é uma espécie de hino a essa Palavra de Deus que Jesus Cristo veio
trazer aos homens. O objetivo do autor, com esta reflexão, é levar os crentes a
escutar atentamente a Palavra proposta por Jesus.
Mensagem
A Palavra de Deus transmitida aos homens por Jesus
não é um conjunto de frases ocas, vagas, estéreis, que se derramam sobre os
homens mas que “entram por um ouvido e saem por outro”, e que não têm impacto
na vida daqueles que as escutam; mas é uma Palavra viva, atuante,
transformadora e eficaz, que uma vez escutada, entra no coração do homem como
uma espada afiada e transforma os seus sentimentos, os seus pensamentos, os
seus valores, as suas opções, as suas atitudes. Ao entrar nos corações, a
Palavra de Deus torna-se também o juiz das ações do homem. Aí, no centro onde
se formam os sentimentos, onde nascem os pensamentos, onde se definem os
valores, onde são feitas as opções (de acordo com a antropologia judaica, é no
coração que tudo isto acontece), a Palavra de Deus confronta-se com os desejos
secretos do homem, com as suas verdadeiras intenções, com os valores a que o
homem dá prioridade, com a sinceridade das posições que o homem assume na sua relação
com Deus, com o mundo e com os outros homens… E a Palavra de Deus aprecia,
discerne, pesa e pronuncia o seu julgamento sobre o homem. A Palavra de Deus,
mesmo que pareça frágil e débil, é uma força decisiva que enche a história e
que traz ao homem a vida e a salvação.
Atualização
O autor do nosso texto pretende levar os seus
interlocutores a escutar e a valorizar a Palavra de Deus que chega aos homens
através de Jesus, pois só essa Palavra é salvadora e libertadora; só ela indica
ao homem o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva. Qual o lugar e
o papel que a Palavra de Deus assume na minha vida? Sou capaz de encontrar
tempo para escutar a Palavra de Deus, disponibilidade para a discutir e
partilhar, vontade de confrontar a minha vida com as suas exigências?
A Palavra de Deus é viva, atuante, eficaz e
renovadora – diz o nosso texto. Ela deveria ter um impacto positivo e
transformador nas nossas vidas, nas nossas famílias, nas nossas comunidades, na
sociedade à nossa volta… No entanto, a Palavra de Deus é proclamada diariamente
nas nossas liturgias e continuamos a escolher valores errados, a erguer
barreiras de separação entre pessoas, a marcar a nossa relação comunitária pela
inveja, pelo ciúme, pela discórdia, a perpetuar mecanismos de injustiça, de
violência, de exploração, de ódio… Será que a Palavra de Deus, depois de dois
mil anos, perdeu a sua eficácia e a sua força transformadora? Não. O que
acontece é que escutamos, acolhemos e apreendemos outras “palavras” e passamos
com indiferença ao lado da Palavra de Deus. É preciso voltarmos a “escutar” a
Palavra de Deus – isto é, a ouvi-la com os nossos ouvidos, a acolhê-la no nosso
coração, a deixarmos que ela nos transforme e se expresse em gestos concretos
de vida nova. Sem o nosso “sim”, a Palavra de Deus não encontra lugar no nosso
coração e na nossa vida.
A Palavra de Deus ajuda-nos a discernir o bem e o
mal e a fazer as opções corretas. Ela ecoa no nosso coração, confronta-nos com
as nossas infidelidades, critica os nossos falsos valores, denuncia os nossos
esquemas de egoísmo e de comodismo, mostra-nos o sem sentido das nossas opções
erradas, grita-nos que é preciso corrigir a nossa rota, desperta a nossa
consciência, indica-nos o caminho para Deus. Para que esta Palavra seja eficaz
é preciso, contudo, que não nos fechemos nessa atitude de auto-suficiência que
nos torna surdos àquilo que põe em causa os nossos esquemas pessoais; mas é
preciso que, com humildade e simplicidade, aceitemos questionar-nos,
transformarmo-nos, convertermo-nos.
•A nossa vivência de fé desenrola-se, muitas vezes,
à volta de fórmulas de oração repetitivas, de práticas devocionais, de ritos
fixos e imutáveis, de tradições cheias de pó, de grandes manifestações que, no
entanto, têm pouca profundidade… E a Palavra de Deus é relegada, na experiência
de fé de tantos crentes, para um papel muito secundário. É preciso que a
Palavra de Deus esteja no centro da nossa experiência de fé e da nossa
caminhada existencial. É ela que nos questiona, que nos transforma, que nos
indica caminhos, que nos permite discernir a vontade de Deus a nosso respeito.
Evangelho: Mc. 10,17-30 - Ambiente
Aleluia, aleluia, aleluia.
Felizes os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos.
10 17 Tendo Jesus saído para se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante dele, suplicou-lhe: "Bom Mestre, que farei para alcançara vida eterna?"
18 Jesus disse-lhe: "Por que me chamas bom? Só Deus é bom.
19 Conheces os mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe."
20 Ele respondeu-lhe: "Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade."
21 Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: "Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me.
22 Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens.
23 E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: "Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!"
24 Os discípulos ficaram assombrados com suas palavras. Mas Jesus replicou: "Filhinhos, quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas!
25 É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus."
26 Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: "Quem pode então salvar-se?"
27 Olhando Jesus para eles, disse: "Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível.
28 Pedro começou a dizer-lhe: "Eis que deixamos tudo e te seguimos."
29 Respondeu-lhe Jesus. "Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho
30 que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna.
Palavra da Salvação.
Felizes os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos.
10 17 Tendo Jesus saído para se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante dele, suplicou-lhe: "Bom Mestre, que farei para alcançara vida eterna?"
18 Jesus disse-lhe: "Por que me chamas bom? Só Deus é bom.
19 Conheces os mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe."
20 Ele respondeu-lhe: "Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade."
21 Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: "Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me.
22 Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens.
23 E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: "Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!"
24 Os discípulos ficaram assombrados com suas palavras. Mas Jesus replicou: "Filhinhos, quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas!
25 É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus."
26 Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: "Quem pode então salvar-se?"
27 Olhando Jesus para eles, disse: "Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível.
28 Pedro começou a dizer-lhe: "Eis que deixamos tudo e te seguimos."
29 Respondeu-lhe Jesus. "Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho
30 que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna.
Palavra da Salvação.
Depois de deixar “a casa” (cf. Mc. 10,10), Jesus
continua o seu caminho através da Judéia e da Transjordânia, em direção a
Jericó (cf. Mc. 10,46), percorrendo um percurso geográfico que constitui a
penúltima etapa da sua viagem para Jerusalém. Contudo, o caminho que Jesus faz
com os discípulos é também um caminho espiritual, durante o qual Jesus vai
completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as
condições para integrar a comunidade messiânica. Desta vez, a questão posta por
um homem rico acerca das condições para alcançar a vida eterna dá a Jesus a
oportunidade para avisar os discípulos acerca da incompatibilidade entre o Reino
e o apego às riquezas. Na perspectiva dos teólogos de Israel, as riquezas são
uma bênção de Deus (cf. Dt. 28,3-8); mas a catequese tradicional também está
consciente de que colocar a confiança e a esperança nos bens materiais envenena
o coração do homem, torna-o orgulhoso e auto-suficiente e afasta-o de Deus e
das suas propostas (cf. Sal 49,7-8; 62,11). Jesus vai retomar a catequese
tradicional, mas desta vez na perspectiva do Reino.
Mensagem
A primeira parte do nosso texto (vs. 17-27) é uma
catequese sobre as exigências do Reino e do seguimento de Jesus. Um homem
ajoelha-se diante de Jesus e pergunta-Lhe o que tem de fazer para “alcançar a
vida eterna” (v. 17). Não se trata, desta vez, de alguém que vem questionar
Jesus para O experimentar: a postura do homem, a sua atitude de respeito,
denunciam-no como alguém sincero e bem-intencionado, realmente preocupado com
essa questão vital que é a vida eterna. No Antigo Testamento, a idéia de vida
eterna aparece, pela primeira vez, em Dn. 12,2 e é retomada noutros textos
tardios… Para alguns teólogos da época do judaísmo helenístico, os justos que
se mantiverem fiéis a Deus e à Lei não serão condenados ao sheol (onde os
espíritos dos mortos levam uma existência obscura, no reino das sombras), mas
ressuscitarão para uma vida nova, de alegria e de felicidade sem fim, com Deus
(cf. 2Mc. 7,9.14.36). A vida eterna de que falam os teólogos desta época parece
já incluir a idéia de imortalidade (cf. Sb. 3,4; 15,3). É provavelmente isto
que inquieta o tal homem que se encontra com Jesus: o que é necessário fazer
para ter acesso a essa vida imortal que Deus reserva aos justos?
A primeira resposta de Jesus não traz nada de novo
e remete o homem para os mandamentos da Torah: “não mates; não cometas
adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes;
honra pai e mãe” (v. 19). De acordo com a catequese feita pelos mestres de
Israel, quem vivesse de acordo com os mandamentos da Lei, receberia de Deus a
vida eterna. O viver de acordo com as propostas de Deus é, também na
perspectiva de Jesus, um primeiro patamar para chegar à vida eterna.
O homem explica, porém, que desde sempre a sua vida
foi vivida em consonância com os mandamentos da Lei (v. 20). É uma afirmação
segura e serena, que o próprio Jesus não contesta. O homem não é um hipócrita,
mas um crente religiosamente empenhado e sincero. Não há aqui, por parte deste
homem, qualquer sinal de orgulho e de auto-suficiência; mas a sua atitude e as
questões que ele põe mostram a sua inquietação, a sua procura, a sua busca da
definição do verdadeiro caminho para a vida eterna. Jesus reconhece a
sinceridade, a honestidade, a verdade da busca deste homem; por isso, olha para
ele “com simpatia” (v. 21) e resolve convidá-lo a subir a um outro patamar
nesse caminho para a vida eterna: convida-o a integrar a comunidade do Reino.
Ora, esse novo patamar tem um outro grau de
exigência… Jesus aponta três requisitos fundamentais que devem ser assumidos
por quem quiser integrar a comunidade do Reino: não centrar a própria vida nos
bens passageiros deste mundo, assumir a partilha e a solidariedade para com os
irmãos mais pobres, seguir o próprio Jesus no seu caminho de amor e de entrega
(v. 21). Apesar de toda a sua boa vontade, o homem não está preparado para a
exigência deste caminho e afasta-se triste. Marcos explica que ele estava
demasiado preso às suas riquezas e não estava disposto a renunciar a elas (v.
22). O homem de que se fala nesta cena é um piedoso observante da Lei; mas não
tem coragem para renunciar às suas seguranças humanas, aos seus esquemas
feitos, aos bens terrenos que lhe escravizam o coração. A sua incapacidade para
assumir a lógica do dom, da partilha, do amor, da entrega, tornam-no inapto
para o Reino. O Reino é incompatível com o egoísmo, com o fechamento em si
próprio, com a lógica do “ter”, com a obsessão pelos bens deste mundo.
A história do homem rico que não está disposto a
integrar a comunidade do Reino, pois não está preparado para viver no amor, na
partilha, na entrega da própria vida aos irmãos, serve a Jesus para oferecer
aos discípulos mais uma catequese sobre o Reino e as suas exigências. O
“caminho do Reino” é um caminho de despojamento de si próprio, que tem de ser
percorrido no dom da vida, na partilha com os irmãos, na entrega por amor. Ora,
quem não é capaz de renunciar aos bens passageiros deste mundo – ao dinheiro,
ao sucesso, ao prestígio, às honras, aos privilégios, a tudo isso que prende o
homem e o impede de dar-se aos irmãos – não pode integrar a comunidade do
Reino. Não se trata apenas de uma dificuldade, mas de uma verdadeira
impossibilidade (“é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do
que um rico entrar no Reino de Deus” – v. 25): os bens do mundo impõem ao homem
uma lógica de egoísmo, de fechamento, de escravidão que são incompatíveis com a
adesão plena ao Reino e aos seus valores. O discípulo que quer integrar a
comunidade do Reino deve estar sempre numa atitude radical de partilha, de
solidariedade, de doação.
Marcos propõe-nos, depois, a reação alarmada,
ansiosa, desorientada, dos discípulos face a esta exigência de radicalidade:
“quem pode, então, salvar-se?” (v. 26). Em resposta, Jesus pronuncia palavras
de conforto, apresentando o poder de Deus como incomparavelmente maior do que a
debilidade humana (“aos homens é impossível, mas não a Deus; porque a Deus tudo
é possível” – v. 27). A ação de Deus – gratuita e misericordiosa – pode mudar o
coração do homem e fazê-lo acolher as exigências do Reino. É preciso, no
entanto, que o homem esteja disponível para escutar Deus e para se deixar
desafiar por Ele.
Na segunda parte do nosso texto (vs. 28-30) os
discípulos, pela voz de Pedro, recordam a Jesus que deixaram tudo para o
seguir. A renúncia dos discípulos não é, contudo, uma renúncia que se justifica
por si mesma e que tem valor em si mesma… Os discípulos de Jesus não escolhem a
pobreza porque a pobreza, em si, é uma coisa boa; nem deixam as pessoas que
amam pelo gosto de deixá-las… Quando os discípulos de Jesus renunciam a
determinados valores (muitas vezes valores legítimos e importantes), é em vista
de um bem maior – o seguimento de Jesus e o anúncio do Evangelho. Jesus
confirma a validade desta opção e assegura aos discípulos que o caminho
escolhido por eles não é um caminho de perda, de solidão, de morte, mas é um
caminho de ganho, de comunhão, de vida.
Esta opção dos discípulos será sempre
incompreendida e recusada pelo mundo. Por isso, os discípulos conhecerão também
a perseguição e o sofrimento. As tribulações não são um drama imprevisto e sem
sentido: os discípulos devem estar preparados para as enfrentar, pois sabem que
terão sempre de viver com a oposição do mundo, enquanto se mantiverem fiéis a
Jesus e ao Evangelho.
Aconteça o que acontecer, os discípulos devem estar
conscientes de que a opção pelo Reino e pelos seus valores lhes garantirá uma
vida cheia e feliz nesta terra e, no mundo futuro, a vida eterna.
Atualização
O que é preciso fazer para alcançar a vida eterna?
Trata-se de uma questão que inquieta todos os crentes e que certamente já
pusemos a nós próprios, com estas ou com outras palavras semelhantes. Jesus
responde: é preciso, antes de mais, viver de acordo com as propostas de Deus
(mandamentos); e é preciso também assumir os valores do Reino e seguir Jesus no
caminho do amor a Deus e da entrega aos irmãos. Isto não significa, contudo,
que a vida eterna seja algo que o homem conquista, com o seu esforço, ou que
resulte dos méritos que o homem adquire ao percorrer um caminho religiosamente
correto. A vida eterna é sempre um dom gratuito de Deus, fruto da sua bondade,
da sua misericórdia, do seu amor pelo homem; no entanto, é um dom que o homem
aceita, acolhe e com o qual se compromete. Quando o homem vive de acordo com os
mandamentos de Deus e segue Jesus, não está a conquistar a vida eterna; está,
sim, respondendo positivamente à oferta de vida que Deus lhe faz e a reconhecer
que o caminho que Deus lhe indica é um caminho de vida e de felicidade.
Quando falamos em vida eterna, não estamos falando
apenas na vida que nos espera no céu; mas estamos a falar de uma vida plena de
qualidade, de uma vida que leva o homem à sua plena realização, de uma vida de
paz e de felicidade. Deus oferece-nos essa vida já neste mundo e convida-nos a
acolhê-la e a escolhê-la em cada dia da nossa caminhada nesta terra; no
entanto, sabemos que só atingiremos a plenitude da vida quando nos libertarmos
da nossa finitude, da nossa debilidade, das limitações que a nossa humanidade
nos impõem. A vida eterna é uma realidade que deve marcar cada passo da nossa
existência terrena e que atingirá a plenitude na outra vida, no céu.
Na perspectiva de Jesus, a vida eterna passa pela
adesão a esse Reino que Ele veio anunciar. Jesus, com a sua vida, com as suas
propostas, com os seus valores, veio propor aos homens o caminho da vida
eterna. Quem quiser “alcançar a vida eterna” tem de olhar para Jesus, aprender
com Ele, segui-l’O, fazer da própria vida – como Jesus fez da sua vida – uma
escuta atenta das propostas de Deus e um dom de amor aos irmãos. Toda a nossa
caminhada, todos os nossos esforços, toda a nossa busca visam alcançar a vida
eterna. Muitas vezes, a lógica do mundo sugere que a vida eterna está na
acumulação de dinheiro, na concretização dos nossos sonhos de “ter” mais
coisas, na conquista de poder, no reconhecimento social, nos privilégios que
conquistamos, nos cinco minutos de exposição mediática que a televisão
proporciona… Nós, crentes, sabemos, contudo, que os bens deste mundo, embora
nos proporcionem bem estar e segurança, não nos oferecem a vida eterna; essa
vida eterna que buscamos ansiosamente está nesse caminho de amor, de serviço,
de dom da vida que Cristo nos ensinou a percorrer.
A história do homem rico, que buscava a vida eterna
mas não estava disposto a prescindir da sua riqueza, alerta-nos para a
impossibilidade de conjugar a vida eterna com o amor aos bens deste mundo. A
riqueza escraviza o coração do homem, absorve todas as suas energias,
desenvolve o egoísmo e a cobiça, leva o homem à injustiça, à exploração, à desonestidade,
ao abuso dos irmãos… É, portanto, incompatível com o “caminho do Reino”, que é
um caminho que deve ser percorrido no amor, na solidariedade, no serviço, na
partilha, na verdade, no dom da vida aos irmãos. Podemos levar vidas
religiosamente corretas, frequentar a Igreja, dar o nosso contributo na
comunidade, ocupar lugares significativos na estrutura paroquial; mas, se o
nosso coração vive obcecado com os bens deste mundo e fechado ao amor, à
partilha, à solidariedade, não podemos fazer parte da comunidade do Reino.
Jesus confirma, no final do texto que nos é
proposto, a validade desse caminho de renúncia e de desprendimento que os
discípulos aceitaram percorrer. Mais: Jesus garante que não se trata de um
caminho de fracasso e de perda, mas de um caminho que realiza plenamente os
sonhos e as necessidades dos homens que O escolheram. Seguir o “caminho do
Reino” não é, portanto, aceitar viver infeliz e sacrificado nesta terra, com a
esperança de uma recompensa no mundo que há-de vir; mas é, livre e conscientemente,
escolher um caminho de vida plena, de realização, de alegria, de felicidade. O
cristão não é um pobre coitado condenado a passar ao lado da vida e da
felicidade; mas é uma pessoa que renunciou a certas propostas falíveis e
parciais de felicidade, pois sabe que a vida plena está em viver de acordo com
os valores eternos propostos por Jesus.
Jesus avisa aos discípulos que o “caminho do Reino”
é um caminho contra a corrente, que gerará inevitavelmente o ódio do mundo e
que se traduzirá em perseguições e incompreensões. É uma realidade que
conhecemos bem… Quantas vezes as nossas opções cristãs são criticadas,
incompreendidas, apresentadas como realidades incompreensíveis e ultrapassadas
por aqueles que representam a ideologia dominante, que fazem a opinião pública,
que definem o socialmente correto… Precisamos, todavia, de estar conscientes de
que a perseguição e a incompreensão são realidades inevitáveis, que não podem
desviar-nos das opções que fizemos. Para nós, seguidores de Jesus, o que é realmente
importante é a certeza de que o “caminho do Reino” é um caminho de vida eterna.
Nenhum comentário:
Postar um comentário