A
liturgia do 29º domingo do tempo comum lembra-nos, mais uma vez, que a lógica
de Deus é diferente da lógica do mundo. Convida-nos a prescindir dos nossos
projetos pessoais de poder e de grandeza e a fazer da nossa vida um serviço aos
irmãos. É no amor e na entrega de quem serve humildemente os irmãos que Deus
oferece aos homens a vida eterna e verdadeira.
A
primeira leitura apresenta-nos a figura de um “Servo de Deus”, insignificante e
desprezado pelos homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de
Deus. Lembra-nos que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no
sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida
maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada,
que trará libertação e esperança ao mundo e aos homens.
No
Evangelho, Jesus convida os discípulos a não se deixarem manipular por sonhos
pessoais de ambição, de grandeza, de poder e de domínio, mas a fazerem da sua
vida um dom de amor e de serviço. Chamados a seguir o Filho do Homem “que não
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida”, os discípulos devem dar
testemunho de uma nova ordem e propor, com o seu exemplo, um mundo livre do
poder que escraviza.
Na
segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que ama o
homem com um amor sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a
fragilidade dos homens, a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele
não Se esconde atrás do seu poder e da sua onipotência, mas aceita descer ao
encontro homens para lhes oferecer o seu amor.
1º leitura: Is. 53,10-11 - Ambiente
O nosso
texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is. 40-55).
“Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um
profeta anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na
Babilônia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550
e 539 a.C.
A missão
do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por
anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilônia ao
antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is.
40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra
reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim
(cf. Is. 49-55).
No meio
desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is. 42,1-9;
49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos
que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam
como o “Servo de Jahwéh”: ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a
quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a
sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o
sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele
resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo”
e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
Quem é
este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da
Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no
ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva,
que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar
testemunho de Deus no meio das outras nações? É uma figura representativa, que
une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas)
com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade?
Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma
outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto
que nos é proposto é parte do quarto cântico do “servo de Jahwéh”. Nele, porém,
o “Servo” não fala; quem proclama este “cântico” parece ser um coro, que
percebeu, no aparente sem sentido da vida do “Servo”, um profundo significado à
luz da lógica de Deus.
Mensagem
A
primeira parte do nosso texto (vs. 2-3) apresenta-nos o “Servo de Jahwéh”. Não
se diz quem é ele, quais são os seus pais, qual é a sua terra. É uma figura
anônima, sem história, obscura, ignorada, insignificante à luz dos critérios
humanos. Recorrendo à imagem vegetal, o profeta compara-o a uma raiz crescida
no deserto, marcada pela aridez do ambiente circundante, sem beleza e sem
características que atraiam o olhar ou a atenção dos homens (v. 2). Mais: é uma
figura desprezada e abandonada pelos homens, que vêem o seu sofrimento como um
castigo de Deus e que tapam o rosto diante dele para não se contaminarem (vers.
3). Numa época em que o sofrimento é sempre visto como castigo pelo pecado, o
notório sofrimento desse “Servo” devia aparecer, aos olhos dos seus
concidadãos, como o castigo de Deus para faltas particularmente graves…
À luz dos
critérios de avaliação usados pelos homens, o “Servo” é um fracassado, um
vencido, um ser trágico, abandonado por Deus e desprezado pelos homens.
Seguramente, ele nunca será contado entre os grandes, os vencedores, aqueles
que têm um papel preponderante na construção do mundo e da história.
À luz da
lógica de Deus, porém, a existência do “Servo” não é uma existência
insignificante, perdida, sem sentido… O sofrimento que o atingiu ao longo de
toda a existência não é num castigo de Deus por causa dos seus pecados
pessoais, mas um sacrifício de reparação que justificará os pecados de muitos.
A palavra “reparação” aqui utilizada pelo Deutero-Isaías é um termo cúltico por
excelência. Refere-se a um ritual sacrificial através do qual o crente
vétero-testamentário oferecia um animal em sacrifício e, por essa oferta,
alcançava de Deus o perdão para os seus pecados. Ao dizer que o sofrimento do
“Servo” é um sacrifício de reparação, o profeta está a dizer que esse
sofrimento não é, nem um castigo, nem uma inutilidade; mas é um sofrimento que
servirá para eliminar o pecado e para gerar vida nova para toda a comunidade do
Povo de Deus (os muitos de que fala o texto). Ao abençoar o seu “Servo”, ao
dar-lhe “uma posteridade duradoura”, uma “vida longa” (v. 10) e a possibilidade
de “ver a luz” (v. 11), Deus garante a verdade e a autenticidade da vida do
“Servo”.
Dito por
outras palavras: o autor deste texto está convencido de que uma vida vivida na
simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não
é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida
fecunda e plenamente realizada, que trará libertação, verdade, esperança e amor
ao mundo e aos homens.
Os
primeiros cristãos, impressionados pela beleza e pela profundidade deste texto,
utilizaram-no frequentemente para procurar compreender a figura de Jesus, que
“morreu pela salvação do povo”. Em Jesus, esta enigmática figura do “Servo de
Jahwéh” alcançou o seu pleno significado.
Atualização
•O nosso
texto mostra, uma vez mais, como os valores de Deus e os valores dos homens são
diferentes. Na lógica dos homens, os vencedores são aqueles que tomam o mundo
de assalto com o seu poder, com o seu dinheiro, com a sua ânsia de triunfo e de
domínio, com a sua capacidade de impor as suas idéias ou a sua visão do mundo;
são aqueles impressionam pela forma como vestem, pela sua beleza, pela sua
inteligência, pelas suas brilhantes qualidades humanas… Na lógica de Deus, os
vencedores são aqueles que, embora vivendo no esquecimento, na humildade, na
simplicidade, sabem fazer da própria vida um dom de amor aos irmãos; são
aqueles que, com as suas atitudes de serviço e de entrega, trazem ao mundo uma
mais valia de vida, de libertação e de esperança. Qual destes dois modelos faz
mais sentido para mim? Quando, no dia a dia, tenho de estabelecer as minhas
prioridades e de fazer as minhas escolhas, deixo-me conduzir pela lógica de
Deus ou pela lógica dos homens? Quem são as pessoas que eu admiro, que eu tenho
como modelos, que me impressionam?
• Onde
está Deus? Onde podemos encontrar o seu rosto, as suas propostas, os seus
apelos e desafios? Apresentando-nos a figura desse “Servo” insignificante e
desprezado pelos homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de
Deus, o nosso texto lembra-nos que Deus, seguindo a sua lógica muito própria
vem, tantas vezes, ao nosso encontro na pobreza, na pequenez, na simplicidade,
na fragilidade, na debilidade… Conscientes desta realidade, poderemos perceber
a presença de Deus a nosso lado nos pequenos gestos que todos os dias
testemunhamos e que nos dão esperança, nas coisas simples e banais que nos
enchem o coração de paz, nas pessoas humildes que o mundo despreza e marginaliza,
mas que são capazes de gestos impressionantes de serviço, de partilha, de
doação, de entrega… Não nos deixemos enganar: Deus não está naquilo que é
brilhante, sedutor, majestoso, espampanante; Deus está na simplicidade do amor
que se faz dom, serviço, entrega humilde aos irmãos.
• Qual o
sentido do sofrimento? Porque é que há tantas pessoas boas, honestas, justas,
generosas, que atravessam a vida mergulhadas na dor e no sofrimento? Trata-se
de uma pergunta que fazemos frequentemente e que o autor do quarto cântico do
“Servo” também punha a si próprio. A resposta que ele encontra é a seguinte: o
sofrimento do justo não se perde; através dele, os pecados da comunidade são
expiados e Deus dará vida e salvação ao seu Povo. Trata-se, sem dúvida, de uma
resposta incompleta, parcial, não totalmente satisfatória; mas encontra-se já
nesta resposta a convicção de que, nos misteriosos caminhos de Deus, o
sofrimento pode ser uma dinâmica geradora de vida nova. Jesus Cristo
demonstrará, com a sua paixão, morte e ressurreição, a verdade desta afirmação.
2º leitura: Hb. 4,14-16 - Ambiente
Já vimos,
nos domingos precedentes, que a Carta aos Hebreus se destina a comunidades
cristãs em situação difícil, expostas a tribulações várias e que, por isso
mesmo, estão fragilizadas, cansadas e desalentadas. Os crentes que compõem
essas comunidades necessitam urgentemente de redescobrir o seu entusiasmo
inicial, de revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais
coerente e mais empenhada.
Nesse
sentido, o autor da “carta” apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote
por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los
nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com
Cristo, os crentes devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de
entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento
e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé,
enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia e
pelo arrefecimento do entusiasmo inicial.
O texto
que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf.
Heb. 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e
misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e
para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto
é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham
no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.
Mensagem
Jesus é,
para todos os crentes, o grande sumo-sacerdote que “atravessou os céus” para
alcançar misericórdia para todos os crentes (v. 14). A expressão “atravessou os
céus” refere-se, naturalmente, à realidade da encarnação: Jesus, o Filho de
Deus, veio ao encontro dos homens como sumo-sacerdote, a fim de eliminar o
pecado que impedia a comunhão entre os homens e Deus e levar os homens ao
encontro de Deus. Aqui evoca-se o esforço de Deus, através do seu Filho, no
sentido de refazer uma comunidade de vida com os homens e de os reconduzir ao
encontro da vida eterna e verdadeira.
Diante
dessa ação incrível de Deus, fruto do seu amor pelo homem, os crentes devem
responder com a fé – isto é, com a aceitação incondicional da proposta de Jesus
(“conservemos firme a fé que professamos”). Aderir à proposta de Jesus é
reentrar na comunhão com Deus, assumir-se como família de Deus, receber de Deus
vida em abundância.
Apesar de
ser Filho de Deus, Jesus, o sumo-sacerdote, não é, no entanto, um ser celestial
estranho, incapaz de perceber os crentes na sua dramática luta de todos os
dias, na sua fragilidade face à perseguição, na sua dificuldade em vencer o
confronto com o egoísmo, a acomodação, a preguiça, a monotonia… Ele próprio foi
submetido à mesma prova, conheceu a mordedura das mesmas tentações,
experimentou as mesmas dificuldades. No entanto, Ele soube sempre manter-Se
fiel a Deus e aos seus projetos, mostrando-nos que também nós podemos viver na
fidelidade a Deus e às suas propostas (vers. 15).
Nós, os
seguidores de Jesus, não estamos numa situação desesperada, apesar das nossas
falhas e incoerências. Podemos e devemos aceitar a proposta de Jesus e
dirigir-nos a Deus, na certeza de que seremos acolhidos por Ele como filhos
muito amados. Graças a Jesus, o sumo-sacerdote que veio ao nosso encontro, que
experimentou e entendeu a nossa fragilidade, que restabeleceu a comunhão entre
nós e Deus, que nos leva ao encontro de Deus e que nos garante a sua misericórdia,
estamos agora numa nova situação de graça e de liberdade. Podemos, com
tranquilidade e confiança, sem qualquer medo, aproximar-nos desse “trono da
graça” de onde brota a vida eterna e verdadeira. Esta certeza deve ajudar-nos e
dar-nos esperança nos momentos mais dramáticos da nossa caminhada pela história
(vers. 16).
Atualização
• Em
total consonância com as outras leituras deste domingo, o autor da Carta aos
Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem com um amor sem limites e que, por
isso, está disposto a assumir a fragilidade dos homens, a descer ao seu nível,
a partilhar a sua condição. Ele não se esconde atrás do seu poder, da sua
autoridade, da sua importância, da sua onipotência; Ele não tem medo de perder
a sua dignidade ou as suas prerrogativas divinas quando assume a pobreza, a
fragilidade, a debilidade dos homens… Na lógica de Deus, o que é mais
importante não é aquele que protege a sua autoridade e a sua importância
através de barreiras intransponíveis, mas é aquele que é capaz de descer ao
encontro dos últimos, dos desclassificados, dos marginalizados, dos sofredores,
para lhes oferecer o seu amor. É esta a lógica de Deus – lógica que somos
chamados a compreender, a assumir e a testemunhar.
• Os
seguidores de Cristo são, naturalmente, convidados, a assumir o seu exemplo…
Assim como Cristo, por amor, vestiu a nossa fragilidade e veio ao nosso
encontro, também nós devemos – despindo-nos do nosso egoísmo, da nossa
acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença – ir ao encontro dos nossos
irmãos, vestir as suas dores e fragilidades, fazer-nos solidários com eles,
partilhar os seus dramas, lágrimas, sofrimentos, alegrias e esperanças. Não
podemos, do alto da nossa situação cômoda, limpa, arrumada, decidir que não
temos nada a ver com o sofrimento do mundo ou com a carência que aflige a vida
de um nosso irmão. Somos sempre responsáveis pelos irmãos que conosco partilham
os caminhos deste mundo, mesmo quando não os conhecemos pessoalmente ou mesmo
que deles estejamos separados por fronteiras geográficas, históricas, étnicas
ou outras.
• Ao
assegurar-nos que nada temos a temer pois Deus ama-nos, quer integrar-nos na
sua família e oferecer-nos vida em abundância, o nosso texto convida-nos a
encarar a vida e os seus caminhos com serenidade e confiança. Os cristãos são
pessoas serenas e com o coração em paz. Estão conscientes de que as suas
fragilidades e debilidades não os afastam, nunca, de Deus e do seu amor.
Evangelho: Mc. 10,35-45 - Ambiente
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos.
10 35 Aproximaram-se de
Jesus Tiago e João, filhos de Zebedeu, e disseram-lhe: "Mestre, queremos
que nos concedas tudo o que te pedirmos."
36 Ele perguntou: "Que quereis que vos faça?"
37 Eles responderam: "Concede-nos que nos sentemos na tua glória, um à tua direita e outro à tua esquerda."
38 "Não sabeis o que pedis”, retorquiu Jesus.
“Podeis vós beber o cálice que eu vou beber, ou ser batizados no batismo
em que eu vou ser batizado?"
39 "Podemos", asseguraram eles. Jesus prosseguiu:
"Vós bebereis o cálice que eu devo beber e sereis batizados no batismo
em que eu devo ser batizado.
40 Mas, quanto ao assentardes à minha direita ou à
minha esquerda, isto não depende de mim: o lugar compete àqueles a quem
está destinado."
41 Ouvindo isto, os outros dez começaram a indignar-se contra Tiago e João.
42 Jesus chamou-os e deu-lhes esta lição: "Sabeis
que os que são considerados chefes das nações dominam sobre elas e os
seus intendentes exercem poder sobre elas.
43 Entre vós, porém, não será assim: todo o que quiser tornar-se grande entre vós, seja o vosso servo;
44 e todo o que entre vós quiser ser o primeiro, seja escravo de todos.
45 Porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em redenção por muitos."
Palavra da Salvação.
Palavra da Salvação.
Continuamos
a percorrer, com Jesus e com os discípulos, o caminho para Jerusalém. Marcos
observa que, nesta fase, Jesus vai à frente e os discípulos seguem-n’O “cheios
de temor” (cf. Mc. 10,32). Haverá aqui alguma má vontade dos discípulos, por
causa das últimas polemicas e das exigências radicais de Jesus? Este “temor”
resultará do fato de Jesus se aproximar do seu destino final, em Jerusalém,
destino que o grupo não aprova? Seja como for, Jesus continua a sua catequese
e, mais uma vez (é a terceira, no curto espaço de poucos dias), lembra aos
discípulos que, em Jerusalém, vai ser entregue nas mãos dos líderes judaicos e
vai cumprir o seu destino de cruz (cf. Mc. 10,33-34). Desta vez, não há
qualquer reação dos discípulos.
Já
observamos, no passado domingo, que o caminho percorrido por Jesus e pelos discípulos
é, além de um caminho geográfico, também um caminho espiritual. Durante esse
caminho, Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as
exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. A
resposta dos discípulos às propostas que Jesus lhes vai fazendo nunca é
demasiado entusiasta.
O texto
que nos é proposto desta vez demonstra que os discípulos continuam sem perceber
– ou sem querer perceber – a lógica do Reino. Eles ainda continuam a raciocinar
em termos de poder, de autoridade, de grandeza e vêem na proposta do Reino
apenas uma oportunidade de realizar os seus sonhos humanos.
Mensagem
Na
primeira parte do nosso texto (vs. 35-40), apresenta-se a pretensão de Tiago e
de João, os filhos de Zebedeu, no sentido de se sentarem, no Reino que vai ser
instaurado, “um à direita e outro à esquerda” de Jesus. A questão nem sequer é
apresentada como um pedido respeitoso; mas parece mais uma reivindicação de
quem se sente com direito inquestionável a um privilégio. Certamente Tiago e
João imaginam o Reino que Jesus veio propor de acordo com Dn. 7,13-14 e querem
assegurar nesse Reino poderoso e glorioso, desde logo, lugares de honra ao lado
de Jesus. O fato mostra como Tiago e João, mesmo depois de toda a catequese que
receberam durante o caminho para Jerusalém, ainda não entenderam nada da lógica
do Reino e ainda continuam a refletir e a sentir de acordo com a lógica do
mundo. Para eles, o que é importante é a realização dos seus sonhos pessoais de
autoridade, de poder e de grandeza.
Uma vez
mais Jesus vê-se obrigado a esclarecer as coisas. Em primeiro lugar, Jesus
avisa os discípulos de que, para se sentarem à mesa do Reino, devem estar
dispostos a “beber o cálice” que Ele vai beber e a “receber o batismo” que Ele
vai receber. O “cálice” indica, no contexto bíblico, o destino de uma pessoa;
ora, “beber o mesmo cálice” de Jesus significa partilhar esse destino de
entrega e de dom da vida que Jesus vai cumprir. O “receber o mesmo batismo”
evoca a participação e imersão na paixão e morte de Jesus (cf. Rm. 6,3-4; Cl.
2,12). Para fazer parte da comunidade do Reino é preciso, portanto, que os
discípulos estejam dispostos a percorrer, com Jesus, o caminho do sofrimento,
da entrega, do dom da vida até à morte. Apesar de Tiago e João manifestarem,
com toda a sinceridade, a sua disponibilidade para percorrer o caminho do dom
da vida, Jesus não lhes garante uma resposta positiva à sua pretensão… Jesus
evita associar o cumprimento da missão e a recompensa, pois o discípulo não
pode seguir determinado caminho ou embarcar em determinado projeto por cálculo
ou por interesse; de acordo com a lógica do Reino, o discípulo é chamado a
seguir Jesus com total gratuidade, sem esperar nada em troca, acolhendo sempre
como graças não merecidas os dons de Deus.
Na
segunda parte do nosso texto (vs. 41-45), temos a reação dos discípulos à
pretensão dos dois irmãos e uma catequese de Jesus sobre o serviço.
A reação
indignada dos outros discípulos ao pedido de Tiago e de João indica que todos
eles tinham as mesmas pretensões. O pedido de Tiago e de João a Jesus
aparece-lhes, portanto, como uma “jogada de antecipação” que ameaça as secretas
ambições que todos eles guardavam no coração.
Jesus
aproveita a circunstância para reiterar o seu ensinamento e para reafirmar a
lógica do Reino. Começa por recordar-lhes o modelo dos “governantes das nações”
e dos grandes do mundo (v. 42): eles afirmam a sua autoridade absoluta, dominam
os povos pela força e submetem-nos, exigem honras, privilégios e títulos,
promovem-se à custa da comunidade, exercem o poder de uma forma arbitrária…
Ora, este esquema não pode servir de modelo para a comunidade do Reino. A
comunidade do Reino assenta sobre a lei do amor e do serviço. Os seus membros
devem sentir-se “servos” dos irmãos, apostados em servir com humildade e
simplicidade, sem qualquer pretensão de mandar ou de dominar. Mesmo aqueles que
são designados para presidir à comunidade devem exercer a sua autoridade num
verdadeiro espírito de serviço, sentindo-se servos de todos. Excluindo do seu
universo qualquer ambição de poder e de domínio, os membros da comunidade do
Reino darão testemunho de um mundo novo, regido por novos valores; e ensinarão
os homens que com eles se cruzarem nos caminhos da vida a serem verdadeiramente
livres e felizes.
Como
modelo desta nova atitude, Jesus propõe-Se a Si próprio: Ele apresenta-Se como
“o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida
em resgate por todos” (v. 45). De fato, toda a vida de Jesus pode ser entendida
em chave de amor e serviço. Desde o primeiro instante da encarnação, até ao
último momento da sua caminhada nesta terra, Ele pôs-se ao serviço do projeto
do Pai e fez da sua vida um dom de amor aos homens. Ele nunca Se deixou seduzir
por projetos pessoais de ambição, de poder, de domínio; mas apenas quis
entregar toda a sua vida ao serviço dos homens, a fim de que os homens pudessem
encontrar a vida plena e verdadeira.
O fruto
da entrega de Jesus é o “resgate” (“lytron”) da humanidade. A palavra aqui
usada indica o “preço” pago para resgatar um escravo ou um prisioneiro.
Atendendo ao contexto, devemos pensar que o resgate diz respeito à situação de
escravidão e de opressão a que a humanidade está submetida. Ao dar a sua vida
(até à última gota de sangue) para propor um mundo livre da ambição, do
egoísmo, do poder que escraviza, Jesus pagou o “preço” da nossa libertação. Com
Ele e por Ele nasce, portanto, uma comunidade de “servos”, que são testemunhas
no mundo de uma ordem nova – a ordem do Reino.
Atualização
• No
centro deste episódio está Jesus e o modelo que Ele propõe, com o exemplo da
sua vida. A frase “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir
e dar a vida em resgate por todos” (Mc. 10,45) resume admiravelmente a
existência humana de Jesus… Desde o primeiro instante, Ele recusou as tentações
da ambição, do poder, da grandeza, dos aplausos das multidões; desde o primeiro
instante, Ele fez da sua vida um serviço aos pobres, aos desclassificados, aos
pecadores, aos marginalizados, aos últimos. O ponto culminante dessa vida de
doação e de serviço foi a morte na cruz – expressão máxima e total do seu amor
aos homens. É preciso que tenhamos a consciência de que este valor do serviço
não é um elemento acidental ou acessório, mas um elemento essencial na vida e
na proposta de Jesus… Ele veio ao mundo para servir e colocou o serviço simples
e humilde no centro da sua vida e do seu projeto. Trata-se de algo que não pode
ser ignorado e que tem de estar no centro da experiência cristã. Nós, seguidores
de Jesus, devemos estar plenamente conscientes desta realidade.
• O
episódio que nos é hoje proposto como Evangelho mostra, contudo, a dificuldade
que os discípulos têm em entender e acolher a proposta de Jesus. Para Tiago,
para João e para os outros discípulos, o que parece contar é a satisfação dos
próprios sonhos pessoais de grandeza, de ambição, de poder, de domínio. Não os
preocupa fazer da vida um serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos;
preocupa-os ocupar os primeiros lugares, os lugares de honra… Jesus, de forma
simples e direta, avisa-os de que a comunidade do Reino não pode funcionar
segundo os modelos do mundo. Aqui não há meio-termo: quem não for capaz de
renunciar aos esquemas de egoísmo, de ambição, de domínio, para fazer da
própria vida um serviço e um dom de amor, não pode ser discípulo desse Jesus
que veio para servir e para dar a vida.
• Ao
apresentar as coisas desta forma, o nosso texto convida-nos a repensar a nossa
forma de nos situarmos, quer na família, quer na escola, quer no trabalho, quer
na sociedade. A instrução de Jesus aos discípulos que o Evangelho deste domingo
nos apresenta é uma denúncia dos jogos de poder, das tentativas de domínio
sobre aqueles que vivem e caminham a nosso lado, dos sonhos de grandeza, das
manobras patéticas para conquistar honras e privilégios, da ânsia de
protagonismo, da busca desenfreada de títulos, da caça às posições de
prestígio… O cristão tem, absolutamente, de dar testemunho de uma ordem nova no
seu espaço familiar, colocando-se numa atitude de serviço e não numa atitude de
imposição e de exigência; o cristão tem de dar testemunho de uma nova ordem no
seu espaço laboral, evitando qualquer atitude de injustiça ou de prepotência
sobre aqueles que dirige e coordena; o cristão tem sempre de encarar a
autoridade que lhe é confiada como um serviço, cumprido na busca atenta e
coerente do bem comum…
• Na
comunidade cristã encontramos também, com muita frequência, a tentação de nos
organizarmos de acordo com princípios de poder, de autoridade, de predomínio, à
boa maneira do mundo. Sabemos, pela história, que sempre que a Igreja tentou
esses caminhos, afastou-se da sua missão, deu um testemunho pouco credível e
tornou-se escândalo para tantos homens e mulheres bem intencionados… Por outro
lado, testemunhamos todos os dias, nas nossas comunidades cristãs, como os
comportamentos prepotentes criam divisões, rancores, invejas, afastamentos… Que
não restem dúvidas: a autoridade que não é amor e serviço é incompatível com a
dinâmica do Reino. Nós, os seguidores de Jesus, não podemos, de forma alguma,
pactuar com a lógica do mundo; e uma Igreja que se organiza e estrutura tendo
em conta os esquemas do mundo não é a Igreja de Jesus.
• Na
nossa sociedade, os primeiros são os que têm dinheiro, os que têm poder, os que
frequentam as festas badaladas nas revistas da sociedade, os que vestem segundo
as exigências da moda, os que têm sucesso profissional, os que sabem colar-se
aos valores politicamente corretos… E na comunidade cristã? Quem são os
primeiros? As palavras de Jesus não deixam qualquer dúvida: “quem quiser ser o
primeiro, será o último de todos e o servo de todos”. Na comunidade cristã, a
única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da
própria vida um serviço aos irmãos. Na comunidade cristã não há donos, nem
grupos privilegiados, nem pessoas mais importantes do que as outras, nem
distinções baseadas no dinheiro, na beleza, na cultura, na posição social… Na
comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a comunidade confia serviços diversos
em vista do bem de todos. Aquilo que nos deve mover é a vontade de servir, de
partilhar com os irmãos os dons que Deus nos concedeu.
• A
atitude de serviço que Jesus pede aos seus discípulos deve manifestar-se, de
forma especial, no acolhimento dos pobres, dos débeis, dos humildes, dos
marginalizados, dos sem direitos, daqueles que não nos trazem o reconhecimento
público, daqueles que não podem retribuir-nos… Seremos capazes de acolher e de
amar os que levam uma vida pouco exemplar, os marginalizados, os estrangeiros,
os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis, os que ninguém quer e ninguém
ama?
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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