A Palavra que a liturgia de hoje nos apresenta convida-nos a manter com
Deus uma relação estreita, uma comunhão íntima, um diálogo insistente: só
dessa forma será possível ao crente aceitar os projetos de Deus, compreender os
seus silêncios, respeitar os seus ritmos, acreditar no seu amor.
O Evangelho sugere que Deus não está ausente nem fica insensível diante
do sofrimento do seu Povo… Os crentes devem descobrir que Deus os ama e que
tem um projeto de salvação para todos os homens; e essa descoberta só se pode
fazer através da oração, de um diálogo contínuo e perseverante com Deus.
A primeira leitura dá a entender que Deus intervém no mundo e salva o
seu Povo servindo-Se, muitas vezes, da ação do homem; mas, para que o homem
possa ganhar as duras batalhas da existência, ele tem que contar com a ajuda e
a força de Deus… Ora, essa ajuda e essa força brotam da oração, do diálogo com
Deus.
A segunda leitura, sem se referir diretamente ao tema da relação do
crente com Deus, apresenta uma outra fonte privilegiada de encontro entre Deus
e o homem: a Escritura Sagrada… Sendo a Palavra com que Deus indica aos
homens o caminho da vida plena, ela deve assumir um lugar preponderante na
experiência cristã.
LEITURA I – Ex 17,8-13a
A primeira leitura de hoje
situa-nos no contexto da caminhada dos hebreus pelo deserto (antes da entrada
na Terra Prometida) e no quadro de um confronto violento entre os hebreus e um
grupo de habitantes do deserto.
Os inimigos que, neste episódio,
os hebreus tiveram de enfrentar são designados como “Amalek”. As listas de Gn
36,12.16 ligam-nos à descendência de Esaú, o que os torna etnicamente
aparentados com os hebreus… Seja como for, trata-se de tribos nômades,
violentas e agressivas (Dt 25,17-19 faz referência a uma emboscada montada
pelos amalecitas aos hebreus em marcha pelo deserto e ao assassínio de alguns
membros da comunidade do Povo de Deus que, sedentos e esgotados, caminhavam na
retaguarda da coluna), que habitavam o Negev (cf. Nm 13,29; Jz 1,16) e que se
opuseram, desde o início, à penetração israelita na Terra Prometida. Mais
tarde, estes mesmos amalecitas aparecerão como adversários de Saúl (cf. 1 Sm
15) e de David (cf. 1 Sm 30). Para os hebreus, são os inimigos por excelência.
Segundo a Melkhita sobre o Êxodo, rabi Eliézer dizia: “Deus jurou pelo trono da
sua glória que, se qualquer uma das nações viesse para se fazer prosélita,
seria recebida; mas Amalek nunca seria recebida na sua casa”.
Para entendermos cabalmente o
texto que aqui nos é proposto, convém ainda recordar que as tradições sobre a
libertação (Ex 1-18) têm como objetivo primordial fazer uma catequese sobre o
Deus libertador, que salvou o seu Povo da opressão e da morte, que o fez
atravessar a pé enxuto o mar Vermelho e o encaminhou através do deserto… Não
interessa aqui a reportagem jornalística do acontecimento; importa a catequese
sobre esse Deus a quem Israel é convidado – pela história fora – a agradecer a
sua vida e a sua liberdade.
A nossa história narra, pois, um
confronto entre os hebreus em marcha pelo deserto e os amalecitas; enquanto o
Povo chefiado por Josué combatia contra os inimigos, Moisés, no cimo de um
monte, rezava e implorava a ajuda de Deus… De acordo com os catequistas de
Israel, enquanto Moisés mantinha as mãos levantadas, os hebreus levavam
vantagem sobre os inimigos; mas logo que Moisés, vencido pelo cansaço, deixava
cair as mãos, eram os amalecitas que dominavam. A solução foi colocar Aarão e
Hur ao lado de Moisés, amparando-lhe as mãos: assim, os hebreus levaram de
vencida os inimigos.
Não interessa, aqui, perguntar se
a história se passou exatamente assim, ou se Deus estava mesmo do lado dos
hebreus, ajudando-os a massacrar os amalecitas… Temos de entender este texto
como uma página de catequese, através da qual os teólogos de Israel pretendem
educar o seu Povo; e aquilo que esta catequese pretende ensinar é que a
libertação se deve, mais do que aos esforços do Povo, à ação de Deus.
Por outro lado, a catequese que o
texto nos propõe sublinha a importância da oração. Os teólogos de Israel sabem
(e pretendem deixar essa mensagem) que é preciso invocar o Deus libertador com
perseverança e insistência. Para vencer as duras batalhas que a vida nos
apresenta, é preciso ter a ajuda e a força de Deus; e essa ajuda e essa força
brotam de um diálogo contínuo, nunca interrompido e nunca acabado, do crente
com Deus.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se a partir
das seguintes coordenadas:
• O que nós temos no Livro do
Êxodo não é o retrato de um Deus injusto e parcial, que ajuda um Povo a
derrotar e a chacinar outros povos; mas é uma catequese em que um Povo, olhando
para a sua história numa perspectiva de fé, constata a presença e a ação de
Deus nesse processo de libertação que os trouxe da escravidão para a liberdade.
Os teólogos de Israel quiseram ensinar – embora servindo-se de formas de
expressão típicas da sua época – que Deus não ficou de braços cruzados diante
do sofrimento do seu Povo e que, por isso, veio ao seu encontro, conduziu-o,
deu-lhe forças e permitiu-lhe ser senhor do seu destino… Portanto, é a Deus que
Israel deve agradecer a sua salvação. Hoje, somos convidados a percorrer um
caminho semelhante e a descobrir o Deus libertador vivo e atuante na nossa
história, agindo no coração e na vida de todos aqueles que lutam por um mundo
mais justo, mais livre e mais humano. Israel descobriu que, no plano de Deus,
aquilo que oprime e destrói os homens não tem lugar; e que, sempre que alguém
luta para ser livre, Deus está com essa pessoa e age nela.
• É exatamente por a ajuda de
Deus ser decisiva na luta por um mundo mais livre e mais humano que os
catequistas de Israel sublinham o papel da oração… Quem sonha com um mundo
melhor e luta por ele, tem de viver num diálogo contínuo, profundo, com Deus: é
nesse diálogo que se percebe o projeto de Deus para o mundo e se recebe d’Ele a
força para vencer tudo o que oprime e escraviza o homem. A oração que dá
sentido e conteúdo à intervenção no mundo faz parte da minha vida?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 120 (121)
Refrão: O nosso auxílio vem do
Senhor,
que fez o céu e a terra.
Levanto os meus olhos para os
montes:
donde me virá o auxílio?
O meu auxílio vem do Senhor,
que fez o céu e a terra.
Não permitirá que vacilem os teus
passos,
não dormirá Aquele que te guarda.
Não há-de dormir nem adormecer
aquele que guarda Israel.
O Senhor é quem te guarda,
o Senhor está a teu lado, Ele é o
teu abrigo.
O sol não te fará mal durante o
dia,
nem a luz durante a noite.
O Senhor te defende de todo o
mal,
o Senhor vela pela tua vida.
Ele te protege quando vais e
quando vens,
agora e para sempre.
LEITURA II – 2 Tim 3,14-4,2
A segunda leitura oferece-nos,
mais uma vez, um trecho da Segunda Carta a Timóteo. Recordamos (outra vez) que
a redação desta carta deve ser colocada nos finais do séc. I ou princípios do
séc. II, numa altura em que as comunidades cristãs se debatiam com as
perseguições organizadas, a falta de entusiasmo dos crentes e as falsas
doutrinas… O autor desta carta pretende convidar os crentes em geral (e os
animadores das comunidades, em particular) a redescobrirem o entusiasmo pelo
Evangelho e a defenderem-se de tudo aquilo que punha em causa a verdade
recebida de Jesus, através dos apóstolos.
No geral, o trecho que nos é
proposto é uma exortação a Timóteo, no sentido de permanecer fiel à verdadeira
doutrina aprendida da Tradição e da Escritura. Insinuam-se já, aqui, os
critérios de discernimento adotados no séc. II para distinguir a verdadeira da
falsa doutrina: a posse da verdade está garantida quando aquele que ensina é um
sucessor legítimo dos apóstolos (deles recebeu a autoridade para animar e pastorear
a Igreja) e quando ele transmite fielmente a verdade recebida dos apóstolos, em
conformidade com a Escritura.
A Palavra transmitida na
Escritura é “inspirada por Deus” (o termo grego “théopneustos”, aqui utilizado,
tem sentido passivo e sugere que, na composição dos livros que formam a
Escritura, interveio, além do autor humano, o próprio Deus); por isso, nela
está “a sabedoria que leva à salvação” (3,15). A utilidade da Escritura é
descrita através de quatro verbos fortes: “ensinar”, “persuadir”, “corrigir” e
“formar”. Fica assim claro que a Escritura é a fonte para toda a formação e
educação cristã, para fazer aparecer o “homem perfeito” (3,17).
Nos últimos versículos do nosso
texto (4,1-2), continua a exortação a Timóteo no sentido de que cumpra a sua
tarefa de animador da comunidade cristã de forma adequada e entusiasta. Em tom
solene e patético, o autor desta carta convida Timóteo a proclamar a Palavra “a
propósito e fora de propósito” (a expressão utilizada indica que a Palavra deve
ser proclamada mesmo quando a ocasião não parece muito propícia, sem medo, sem
respeitos humanos, sem falsos pudores), “com toda a paciência e doutrina” (isto
é, com uma adequada pedagogia pastoral).
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e partilha podem
fazer-se de acordo com as seguintes linhas:
• Dizer que a Escritura é
inspirada por Deus significa que ela contém as palavras que Deus quer
dirigir-nos, a fim de nos indicar o caminho para a vida plena… No dizer de Leão
XIII, a Escritura é “uma carta outorgada pelo Pai celeste ao gênero humano
viandante longe da sua pátria, e que os autores sagrados nos transmitiram”
(Providentissimus Deus, nº 4). A Escritura deve, pois, assumir um lugar
preponderante na nossa vida pessoal e na vida das nossas comunidades cristãs.
Isso acontece? Que lugar ocupa a leitura, a reflexão e a partilha da Palavra de
Deus na minha vida? Que lugar ocupa a Palavra de Deus na vida e na experiência
das nossas comunidades cristãs? O que é que assume um valor mais determinante
na experiência cristã: as práticas rituais, as devoções particulares, as leis e
os códigos, ou a Palavra de Deus?
• Porque a Palavra de Deus
aparece envolta em roupagens e gêneros literários típicos de uma época e de uma
cultura determinada, é preciso estudá-la, aprender a conhecer o mundo e a
cultura bíblica, compreender o enquadramento e o ambiente em que o autor
sagrado escreve… As nossas comunidades cristãs têm o cuidado de organizar
iniciativas no campo da informação e do estudo bíblico, de forma a proporcionar
aos nossos cristãos uma informação adequada para compreender melhor a Palavra
de Deus? E quando há essa informação, os nossos cristãos têm o cuidado de a
aproveitar? Porquê?
• A leitura que nos foi proposta
chama, também, a atenção daqueles que estão ao serviço da Palavra: eles devem
anunciá-la em todas as circunstâncias, sem respeito humano, sem jogos de
conveniências, sem atenuarem a radicalidade da Palavra; e devem, também,
preparar-se convenientemente, a fim de que a Palavra se torne atraente e chegue
ao coração dos que a escutam… É assim que procedem aqueles a quem a Igreja
confia o serviço da Palavra?
ALELUIA – Heb 4,12
Aleluia. Aleluia.
A palavra de Deus é viva e
eficaz,
pode discernir os pensamentos e
intenções do coração.
EVANGELHO – Lc 18,1-8
O Evangelho apresenta-nos mais
uma etapa do “caminho de Jerusalém”. O texto que hoje nos é proposto vem na
sequência do discurso escatológico sobre a vinda gloriosa do Filho do Homem
(cf. Lc 17,20-37). A parábola do juiz e da viúva deve, pois, ser entendida
neste ambiente.
Trata-se de um texto que não tem
paralelo noutro evangelista; no entanto, é similar à parábola do amigo
importuno que vem pedir pão a meio da noite e que é atendido por causa da sua
insistência (cf. Lc 11,5-8).
Não esqueçamos que Lucas escreveu
o terceiro Evangelho durante a década de 80… É uma época em que as comunidades
cristãs sofrem por causa da hostilidade dos judeus e dos pagãos e em que já se
anunciam as grandes perseguições que dizimaram as comunidades cristãs no final
do séc. I. Os cristãos estão inquietos, desanimados e anseiam pela segunda
vinda de Cristo – isto é, pela intervenção definitiva de Deus na história para
derrotar os maus e salvar o seu Povo.
O nosso texto consta de uma
parábola e da sua aplicação teológica.
Os personagens centrais da
parábola (vers 2-5) são uma viúva e um juiz. A viúva, pobre e injustiçada (na
Bíblia, é o protótipo do pobre sem defesa, vítima da prepotência dos ricos e
dos poderosos), passava a vida a queixar-se do seu adversário e a exigir
justiça; mas o juiz, “que não temia Deus nem os homens”, não lhe prestava
qualquer atenção… No entanto, o juiz – apesar da sua dureza e insensibilidade –
acabou por fazer justiça à viúva, a fim de se livrar definitivamente da sua
insistência importuna.
Apresentada a parábola, vem a sua
aplicação teológica (vers. 6-8). Se um juiz prepotente e insensível é capaz de
resolver o problema da viúva por causa da sua insistência, Deus (que não é, nem
de perto nem de longe, um juiz prepotente e sem coração) não iria escutar os
“seus eleitos que por Ele clamam dia e noite e iria fazê-los esperar muito
tempo?”
Naturalmente, estamos diante de
uma pergunta retórica. É evidente que, se até um juiz insensível acaba por
fazer justiça a quem lhe pede com insistência, com muito mais motivo Deus – que
é rico em misericórdia e que defende sempre os débeis – estará atento às
súplicas dos seus filhos.
Dado o contexto em que a parábola
aparece, é certo que Lucas pretende dirigir-se a uma comunidade cristã cercada
pela hostilidade do mundo, que começava a ver no horizonte próximo o espectro
das perseguições e que estava desanimada porque, aparentemente, Deus não
escutava as súplicas dos crentes e não intervinha no mundo para salvar a sua
Igreja. A resposta que Lucas deixa aos seus cristãos é a seguinte: ao contrário
do que parece, Deus não abandonou o seu Povo, nem é insensível aos seus apelos;
Ele tem o seu projeto, o seu plano e o seu tempo próprio para intervir… Aos
crentes resta moderar a sua impaciência e confiar em que Ele não deixará de
intervir para os libertar.
Que é que tudo isto tem a ver com
a oração? Porque é que esta é uma parábola sobre a necessidade de rezar (“Jesus
disse-lhes uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem desanimar” –
vers. 1)? Lucas pede aos cristãos a quem a mensagem se destina que, apesar do
aparente silêncio de Deus, não deixem nunca de dialogar com Ele. É nesse
diálogo que entendemos os projetos e os ritmos de Deus; é nesse diálogo que
Deus transforma os nossos corações; é nesse diálogo que aprendemos a entregar-nos
nas mãos de Deus e a confiar n’Ele. Sobretudo, que nada (nem o desânimo, nem a
desconfiança perante o silêncio de Deus) nos leve a desistir de uma verdadeira
comunhão e de um profundo diálogo com Deus.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, podem ser considerados
os seguintes aspectos:
• Porque é que Deus permite que
tantos milhões de homens sobrevivam em condições tão degradantes? Porque é que
os maus e injustos praticam arbitrariedades sem conta sobre os mais débeis e
nenhum mal lhes acontece? Como é que Deus aceita que 2.800 milhões de pessoas
(cerca de metade da humanidade) vivam com menos de três euros por dia? Como é
que Deus não intervém quando certas doenças incuráveis ameaçam dizimar os
pobres dos países do quarto mundo, perante a indiferença da comunidade
internacional? Onde está Deus quando as ditaduras ou os imperialismos maltratam
povos inteiros? Deus não intervém porque não quer saber dos homens e é
insensível em relação àquilo que lhes acontece? É a isto que o Evangelho de
hoje procura responder… Lucas está convicto de que Deus não é indiferente aos
gritos de sofrimento dos pobres e que não desistiu de intervir no mundo, a fim
de construir o novo céu e a nova terra de justiça, de paz e de felicidade para
todos… Simplesmente, Deus tem projetos e planos que nós, na nossa ânsia e
impaciência, não conseguimos perceber. Deus tem o seu ritmo – um ritmo que
passa por não forçar as coisas, por respeitar a liberdade do homem… A nós
resta-nos respeitar a lógica de Deus, confiar n’Ele, entregarmo-nos nas suas
mãos.
• Para que Deus e os seus projetos
façam sentido ou, pelo menos, para que a aparente falta de lógica dos planos de
Deus não nos lancem no desespero e na revolta, é preciso manter com Ele uma
relação de comunhão, de intimidade, de diálogo. Através da oração, percebemos
quem Deus é, percebemos o seu amor e a sua misericórdia, descobrimos a sua
bondade e a sua justiça… E, dessa forma, constatamos que Ele não é indiferente
à sorte dos pobres e que tem um projeto de salvação para todos os homens. A oração
é o caminho para encontrarmos o amor de Deus.
• O diálogo que mantemos com Deus
não pode ser um diálogo que interrompemos quando deixamos de perceber as coisas
ou quando Deus parece ausente; mas é um diálogo que devemos manter, com
perseverança e insistência. Quem ama de verdade, não corta a relação à primeira
incompreensão ou à primeira ausência. Pelo contrário, a espera e a ausência
provam o amor e intensificam a relação.
• A oração não é uma fórmula
mágica e automática para levar Deus a fazer-nos as “vontadinhas”… Muitas vezes,
Deus terá as suas razões para não dar muita importância àquilo que Lhe pedimos:
às vezes pedimos a Deus coisas que nos compete a nós conseguir (por exemplo,
passar nos exames); outras vezes, pedimos coisas que nos parecem boas, mas que
a médio prazo podem roubar-nos a felicidade; outras vezes, ainda, pedimos
coisas que são boas para nós, mas que implicam sofrimento e injustiça para os
outros… É preciso termos consciência disto; e quando parece que Deus não nos
ouve, perguntemos a nós próprios se os nossos pedidos farão sentido, à luz da
lógica de Deus.
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