1º leitura: Dt. 30,10-14 – AMBIENTE
O livro do Deuteronômio é fruto da reflexão e da catequese dos teólogos
do Reino do Norte (Israel), preocupados em lembrar ao Povo os compromissos
assumidos no âmbito da “aliança”; mas apresenta-se, literariamente, como um
conjunto de discursos de Moisés, uma espécie de testamento espiritual que
Moisés teria pronunciado antes da sua morte, na planície de Moab, na altura em
que os hebreus se preparavam para renovar a “aliança”, antes de entrar na
“Terra Prometida”.
O texto que hoje nos é proposto é a parte final do terceiro discurso de
Moisés (cf. Dt. 29-30). Na realidade, trata-se de uma homilia dos teólogos
deuteronomistas, redigida na fase final do exílio da Babilônia, alertando a
comunidade do Povo de Deus para as consequências da fidelidade ou da
infidelidade face aos compromissos assumidos para com Jahwéh.
MENSAGEM
Fundamentalmente, estamos diante de um convite a aderir com todo o
coração e com todo o ser às propostas e aos mandamentos de Deus (v. 10).
No entanto, perguntavam os exilados, como encontrar o caminho e
descobrir o que Deus propõe? Como é que se descobre o que Deus quer de nós, de
forma a que não voltemos, nunca mais, a cair na escravidão?
Os teólogos deuteronomistas estão convencidos de que não é necessário
procurar muito longe: nem no céu (v. 12), nem no mar (v. 13), nem em qualquer
outro lugar inacessível ao homem comum. O caminho que Deus propõe não é um
caminho escondido, misterioso, revelado só aos iniciados ou iluminados; mas é
um caminho que está claramente inscrito no coração e na consciência de cada
homem (v. 14).
A mensagem aqui apresentada pelos catequistas deuteronomistas diz-nos,
portanto, o seguinte: para perceber o projeto de salvação, de liberdade e de
felicidade que Deus tem para os homens, basta olhar para o nosso coração e para
a nossa consciência; é aí que Deus nos fala e é aí que nós escutamos as suas
propostas e as suas indicações. Resta-nos estar disponíveis para escutar e para
perceber – no meio das contra-indicações que as nossas paixões nos apresentam –
as sugestões, os apelos, os desafios de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• O convite a aderir com todo o coração e com todo o ser às propostas de
Deus leva-nos a questionar a qualidade da nossa adesão. Não pode ser uma adesão
a meio-gás ou a tempo parcial – de acordo com os nossos interesses; mas tem de
ser uma adesão total, completa, plenamente empenhada, a “fundo perdido”. É
desta forma radical e total que aderimos aos projetos de Deus, ou a nossa
adesão é “morna”, incompleta, limitada, reticente?
• Encontramos espaço e disponibilidade para interrogar o nosso coração e
para escutar o Deus que fala, que Se revela, que nos desafia e questiona?
• Pode acontecer que os nossos interesses egoístas, as nossas ambições,
as nossas paixões, os nossos esquemas e projetos pessoais abafem a voz de Deus
e nos impeçam de escutar as suas propostas. Quais são, para mim, essas outras
“vozes” que calam a voz de Deus? Que lugar ocupam elas na minha vida? Em que
medida elas contribuem para definir o sentido essencial da minha existência?
2º leitura: Cl. 1,15-20 – AMBIENTE
Colossos era uma cidade da Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de 200
quilômetros a Este de Éfeso. A comunidade cristã dessa cidade não foi fundada
por Paulo mas por Epafras, discípulo de Paulo e colossense de origem (cf. Cl.
4,12).
Paulo escreveu aos Colossenses da prisão (provavelmente, de Roma).
Estaríamos entre os anos 61 e 63. Epafras visitou Paulo e levou ao apóstolo
notícias alarmantes… Alguns “doutores” locais (talvez membros de um movimento
de índole sincretista, que misturava cristianismo com cultos mistéricos em voga
no mundo helenista e com elementos religiosos de várias origens) ensinavam aos
Colossenses que a fé em Cristo devia ser completada por rígidas práticas
ascéticas, por ritos legalistas judaicos, por prescrições sobre os alimentos
(cf. Cl. 2,16.21), pela observância de determinadas festas (cf. Cl. 2,16) e por
especulações acerca dos anjos (cf. Cl. 2,18). Na opinião desses “doutores”,
tudo isto devia comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios e
uma maior perfeição.
Paulo desmonta toda esta confusão doutrinal e afirma que nenhum destes
elementos tem qualquer importância para a salvação: Cristo basta.
O texto que hoje nos é proposto é um hino de duas estrofes, que provavelmente
Paulo tomou da liturgia cristã primitiva, mas que está perfeitamente integrado
no conteúdo geral da carta. Este hino cristão de inspiração sapiencial celebra
a supremacia absoluta de Cristo na criação e na redenção.
MENSAGEM
A primeira estrofe deste hino (vs. 15-17) afirma e celebra a soberania e
o poder de Cristo sobre toda a criação.
A primeira afirmação é a de que Cristo é a “imagem de Deus invisível”.
Dizer que é “imagem” significa aqui que Ele é em tudo igual ao Pai, no ser e no
agir, pois n’Ele reside a plenitude da divindade. Significa que Deus,
espiritual e transcendente, Se revela aos homens e Se faz visível através da
humanidade de Cristo.
A segunda afirmação é que Ele é o “primogênito de toda a criatura”. No
contexto familiar judaico, o “primogênito” era o herdeiro principal, que tinha
a primazia em dignidade e em autoridade sobre os seus irmãos. Aplicado a
Cristo, significa a supremacia e a autoridade de Cristo sobre toda a criação.
A terceira afirmação é a de que “n’Ele, por Ele e para Ele foram criadas
todas as coisas”. Tal significa que todas as coisas têm n’Ele o seu centro
supremo de unidade, de coesão, de harmonia (“n’Ele”); que é Ele que comunica a
vida do Pai (“por Ele”); e que Cristo é o termo e a finalidade de toda a
criação (“para Ele”). Ao mencionar expressamente que os “tronos, dominações,
principados e potestades” estão incluídos na soberania de Cristo, Paulo
desmonta as especulações dos “doutores” Colossenses acerca dos poderes
angélicos, considerados em paralelo com o poder de Cristo.
A segunda estrofe (vs. 18-20) afirma e celebra a soberania e o poder de
Cristo na redenção.
A primeira afirmação é a de que Ele é a “cabeça do corpo que é a
Igreja”. A expressão significa, em primeiro lugar, que Cristo tem a primazia e
a soberania sobre a comunidade cristã; mas significa, também, que é Ele quem
comunica a vida aos membros do corpo e que os une num conjunto vital e
harmônico.
A segunda afirmação é a de que Ele é o “princípio, o primogênito de
entre os mortos”. Significa que Ele, não só foi o primeiro que ressuscitou, mas
também que Ele é a fonte de vida que vai provocar a nossa própria ressurreição.
A terceira afirmação é de que n’Ele reside “toda a plenitude”. Significa
que n’Ele e só n’Ele habita, efetiva e essencialmente, a divindade: tudo o que
Deus nos quer comunicar, a fim de nos inserir na sua família, está em Cristo.
Por isso, o autor deste hino pode dizer que por Cristo foram reconciliadas com
Deus todas as criaturas na terra e nos céus: por Cristo a criação inteira,
marcada pelo pecado, recebeu a oferta da salvação e pôde voltar a inserir-se na
família de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Um dado fundamental da vida cristã é a consciência desta centralidade
de Cristo na nossa experiência e na nossa existência. No entanto, a religião de
tantos dos nossos cristãos centraliza-se, tantas vezes, em coisas secundárias…
Cristo é, efetivamente, a referência fundamental à volta da qual a nossa vida
se articula e se constrói? Ele tem a primazia na nossa vida? É Ele que está no
centro dos interesses e da vida das nossas comunidades cristãs ou religiosas?
Há outros deuses, ou poderes, ou “santos” em quem centramos os nossos
interesses e que nos desviam de Cristo?
• Para muitos dos nossos contemporâneos, Jesus não é uma referência
fundamental. Quando muito, foi um homem bom, que deu a vida por um sonho, um
visionário, um idealista, que a história se encarregou de digerir e que hoje é,
apenas, uma peça de museu; por isso, não tem qualquer espaço nas suas vidas.
Como podemos testemunhar a nossa convicção de que Ele é o centro da história e
de que Ele está no princípio e no fim da história da salvação?
Evangelho: Lc. 10,25-37 - AMBIENTE
Continuamos “a caminho de Jerusalém” – quer dizer, continuamos a
percorrer esse percurso espiritual, durante o qual Jesus prepara os discípulos
para serem as testemunhas do Reino, após a sua partida deste mundo. É neste
contexto “pedagógico” que vai aparecer a “parábola do bom samaritano”.
Para percebermos cabalmente o que está aqui em jogo, convém também ter
presente o quadro da relação entre judeus e samaritanos. Trata-se de dois
grupos que as vicissitudes históricas tinham separado e cujas relações eram, no
tempo de Jesus, bastante conflituosas.
Historicamente, a divisão começou quando, em 721 a.C., a Samaria foi
tomada pelos assírios e foi deportada cerca de 4% da sua população; na Samaria
instalaram-se colonos assírios que se misturaram com a população local; para os
judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cf. 2 Re.
17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando,
após o regresso do exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf.
Esd. 4,1-5) para a reconstrução do templo de Jerusalém (ano 437) e denunciaram
os casamentos mistos; tiveram, então, que enfrentar a oposição dos samaritanos
na reconstrução da cidade (cf. Ne. 3,33-4,17). No ano de 333 a.C., novo
elemento de separação: os samaritanos construíram um templo no monte Garizim;
no entanto, esse templo foi destruído em 128 a.C. por João Hircano. Mais tarde,
as picardias continuaram: a mais famosa aconteceu já na época de Cristo (alguns
anos depois do nascimento de Cristo), quando os samaritanos profanaram com
ossos o templo de Jerusalém.
Os judeus desprezavam os samaritanos, por serem uma mistura de sangue
israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé
jahwista; e os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.
MENSAGEM
O que está em jogo no texto que nos é proposto é uma pergunta de um
mestre da Lei: “o que fazer, a fim de conseguir a vida eterna?” (Marcos
apresenta a mesma cena – cf. Mc. 12,28-34 – mas, aí, a pergunta é acerca do
“maior mandamento da Lei”. Lucas, talvez adaptando-se aos leitores cristãos de
cultura grega, põe a questão em termos de “vida eterna”).
A resposta é previsível e evidente, de tal forma que o próprio mestre da
Lei a conhece: amar a Deus, fazer de Deus o centro da vida e amar o próximo como
a si mesmo. Neste “resumo” dos mandamentos, cita-se Dt 6,5 (no que diz respeito
ao amor a Deus) e Lv 19,18 (no que diz respeito ao amor ao próximo). Jesus
concorda: até aqui, a proposta de Jesus não acrescenta nada de novo àquilo que
a própria Lei sugere.
A dúvida do mestre da Lei vai, no entanto, mais fundo: “e quem é o meu
próximo?” É uma questão pertinente, neste contexto. Na época de Jesus, os
mestres de Israel discutiam, precisamente, quem era o “próximo”. Naturalmente,
havia opiniões mais abrangentes e opiniões mais particularistas e
exclusivistas; mas havia consenso entre todos no sentido de excluir da
categoria “próximo” os inimigos: de acordo com a Lei, o “próximo” era apenas o
membro do Povo de Deus (cf. Ex. 20,16-17; 21,14.18.35; Lv. 19,11.13.15-18).
Jesus, no entanto, tinha uma perspectiva diferente da perspectiva dos
“fazedores de opinião” de Israel. É precisamente para explicar a sua
perspectiva que Jesus conta a “parábola do bom samaritano”.
A parábola situa-nos nessa estrada de cerca de 30 quilômetros entre a
cidade santa de Jerusalém e o oásis de Jericó. Na época de Jesus, é uma estrada
perigosa, sempre infestada de bandos armados. Ora “um homem” não identificado
(não se diz quem é, de que raça é, qual a sua religião, mas apenas que é “um
homem”, embora, pelo contexto, possa depreender-se que é um judeu) foi
assaltado pelos bandidos e deixado caído na berma da estrada. Trata-se,
portanto (e isso é que é preponderante), de “um homem” ferido, abandonado,
necessitado de ajuda.
Pela estrada passaram sucessivamente um sacerdote (que conhecia a Lei e
que exercia funções litúrgicas no templo) e um levita (ligado à instituição
religiosa judaica e que exercia, também, funções litúrgicas no templo). Ambos
passaram adiante: ou o medo de enfrentar a mesma sorte, ou as preocupações com
a pureza legal (que impedia contatar com um cadáver), ou a pressa, ou a
indiferença diante do sofrimento alheio, impede-os de parar. Apesar dos seus
conhecimentos religiosos, não têm qualquer sentimento de misericórdia por
aquele homem. Eles sabem tudo sobre Deus, lidam diariamente com Deus mas,
afinal, não sabem nada de Deus, pois não sabem nada de amor. A sua religião é
uma religião oca, de ritos estéreis, de gestos vazios e sem sentido, de
cerimônias faustosas e solenes, mas não tem nada a ver com o amor, com o
coração.
Pela estrada passou, finalmente, um samaritano. Trata-se de um desses
que a religião tradicional de Israel considerava um inimigo, um infiel, longe
da salvação e do amor de Deus… No entanto, foi ele que parou, sem medo de
correr riscos ou de adiar os seus esquemas e interesses pessoais, que cuidou do
ferido e que o salvou. Apesar de ser um herege, um excomungado, mostra ser
alguém atento ao irmão necessitado, com o coração cheio de amor e, portanto,
cheio de Deus.
Jesus conclui a parábola dizendo ao mestre da Lei que o interrogara:
“então vai e faz o mesmo”. A verdadeira religião que conduz à vida plena passa
pelo amor a Deus, traduzido em gestos concretos de amor pelo irmão – por todo o
irmão, sem exceção.
Recordemos que a pergunta inicial era: “o que fazer para alcançar a vida
eterna”… A conclusão é óbvia: para alcançar a vida eterna é preciso amar a Deus
e amar o próximo. O “próximo” é qualquer um que necessita de nós, seja amigo ou
inimigo, conhecido ou desconhecido, da mesma raça ou doutra raça qualquer; o
“próximo” é qualquer irmão caído nos caminhos da vida que necessita, para se
levantar, da nossa ajuda e do nosso amor. Neste gesto do samaritano, a Igreja
de todos os tempos (a comunidade dos que caminham ao encontro da vida plena, da
salvação) reconhece um aspecto fundamental da sua missão: a de levantar todos
os homens e mulheres caídos nos caminhos da vida.
ATUALIZAÇÃO
• A pergunta do mestre da Lei não é uma pergunta acadêmica; é a pergunta
que os homens do nosso tempo fazem todos os dias: “o que fazer para chegar à
vida plena, à felicidade? Como dar, verdadeiramente, sentido à vida?” A
resposta eterna é: “faz de Deus o centro da tua vida, ama-O e ama também os
outros irmãos”. Trata-se, portanto, de fazer com que o amor percorra as duas
coordenadas fundamentais da nossa existência – a vertical (relação com Deus) e
a horizontal (relação com os outros homens). É por aqui que passa a nossa
realização plena.
• O que é isso do amor ao próximo? Até onde se deve ir? É preciso
exagerar? Não se trata de exagerar. Trata-se de ver em cada pessoa – sem
exceção – um irmão e de lhe dar a mão sempre que ele necessitar. Qualquer
pessoa ferida com quem nos cruzamos nos caminhos da vida tem direito ao nosso
amor, à nossa misericórdia, ao nosso cuidado – seja ela branca ou negra,
portuguesa ou ucraniana, cristã ou muçulmana, portista, sportinguista ou
benfiquista, fascista ou comunista, pobre ou rica… A verdadeira religião que
conduz à salvação passa por este amor sem limites.
• Pode acontecer que o lidar todos os dias com o divino tenha endurecido
o nosso coração em relação às realidades do mundo… Pode acontecer que uma vida
instalada nos torne insensíveis aos gritos de sofrimento dos pobres… Pode
acontecer que o nosso egoísmo fale mais alto e que evitemos meter-nos em
complicações por causa das injustiças que os nossos irmãos sofrem… Mas, nesse
caso, convém perguntar: deixando que a minha vida se guie por critérios de
egoísmo e de comodismo, estou a caminhar em direção à minha realização plena, à
vida eterna?
• As nossas comunidades são clubes fechados, “reservados a sócios”, onde
é “proibida a entrada aos estranhos”, ou comunidades onde são amados e têm
lugar todos aqueles que a vida atira para a berma da estrada?
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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