Jorge Ferraz
Um dos aspectos menos compreendidos da doutrina da Igreja Católica diz respeito à proibição dos contraceptivos. O
problema acontece porque este ensinamento é as mais das vezes deslocado
do seu lugar natural e, com isso, a sua correta apreciação fica
prejudicada. Geralmente
não adianta meramente citar os documentos magisteriais sobre o assunto,
porque eles se direcionam a uma situação distinta daquela que os
interlocutores estão geralmente imaginando – o que contribui para a
confusão.
O ensinamento católico encontra a sua formulação lapidar na conhecida Humanae Vitae de
Paulo VI: é «de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato
conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o
desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim
ou como meio, tornar impossível a procriação» (HV 14).
A
expressão mais importante aqui é «ato conjugal», que evidentemente
pressupõe dois cônjuges: um esposo e uma esposa unidos pelos sagrados
liames do Matrimônio. O que a Igreja diz aqui, simplesmente, é que para
os esposos não é uma «via legítima para a regulação dos nascimentos»
(id. ibid.) recorrer à contracepção artificial.
Penso que, para
a maior parte das pessoas, o recurso aos contraceptivos dá-se não num
contexto de entrega conjugal, mas sim de sexo fora do Matrimônio. Ora,
sexo fora do Matrimônio é já pecado de per si: trata-se ou de adultério
ou de fornicação, em qualquer dos casos uma grave violação do Sexto
Mandamento que não passa a ser pecaminosa somente por causa do
preservativo utilizado e nem deixa de sê-lo caso o ato sexual seja feito
sem camisinha. Para uma correta compreensão do ensinamento católico é
preciso, penso, separar as duas coisas. Ou melhor, as três coisas.
A primeira coisa, a
se dizer para os casais casados, é que a regulação artificial da
natalidade é intrinsecamente desordenada. Para isso valem as razões
evocadas na Humanae Vitae
e em outros documentos similares, que apontam para o nexo intrínseco
entre «o significado unitivo e o significado procriador» (HV 13) do ato
conjugal como querido por Deus e inscrito na natureza sexuada humana.
A
segunda coisa, a se dizer para os solteiros, não pode ser simplesmente
«não use camisinha». O que é preciso lhes dizer é que não façam sexo
fora do casamento. Isso é uma coisa muito mais básica do que o veto à
contracepção artificial, e se explica à luz da antropologia cristã e
do significado mais profundo da sexualidade humana, que não pode ser
reduzida ao hedonismo doentio com o qual é tratada nos dias de hoje.
Pretender explicar a imoralidade da contracepção para gente que ainda
não entendeu sequer que não pode sair por aí tendo relações sexuais com
desconhecidos (*) é uma tática evidentemente fadada ao fracasso.
[(*)
Para fins de intimidade conjugal, um amigo, um namorado ou mesmo um
noivo é um desconhecido. É uma pessoa que, por sua própria condição, não
tem o direito a certas intimidades que são próprias dos esposos unidos
em uma empresa comum para a vida inteira: enquanto
este compromisso mútuo não for firmado, e enquanto permanecer aberta a
possibilidade de que os caminhos de ambos venham a se separar, duas
pessoas são estranhas entre si independente do tempo há que se conheçam e
da quantidade de informações sobre a outra que cada uma delas possua.
O
amor conjugal está alicerçado sobre a entrega integral em vistas ao
futuro, e não sobre o tempo gasto no passado. Ter passado algum tempo
(por grande que ele seja) com uma pessoa é coisa banal, que se pode
advogar até mesmo em favor de animais irracionais; em princípio, um
cachorro pode ter passado a sua vida inteira com uma única cadela, ou um
boi com uma única vaca, e nem por isso é-nos possível elevar o
"relacionamento" deles ao patamar do amor humano.
Ao contrário, devotar o seu futuro a um companheiro é
ato de liberdade por excelência, único digno da natureza humana que
detém inteligência e vontade para ser senhora da própria existência.
É fácil assenhorear-se do que já passou, entregar fatos consumados
sobre os quais não se pode fazer mais nada; o que é verdadeiramente
digno e humano é entregar o que ainda não é (e nada, a não ser o próprio
amor, impede que seja diferente). Enquanto esta entrega não for feita,
repito, duas pessoas são a rigor desconhecidas entre si. Não por acaso a
Bíblia emprega a palavra "conhecer" para se referir aos atos sexuais.]
Uma
terceira coisa se precisa dizer a respeito dos preservativos, e que é
ligeiramente diferente das duas acima. Refere-se aos efeitos sociais
deletérios da contracepção artificial. Sobre estes, é útil citar as palavras do saudoso D. Estêvão Bettencourt:
Não se deve argumentar a partir da onda de erotismo hoje existente para legitimar o sexo livre. Essa onda seria incoercível e, de certo modo, obrigaria jovens e adultos à prática sexual extraconjugal. — Na verdade, não é a freqüência ou a pujança de um determinado comportamento que o torna lícito. Como os assaltos dos malfeitores e a corrupção dos homens públicos são freqüentes, mas nem por isso são legitimados, assim também o sexo livre, por mais freqüente que seja, fica sendo reprovável. É muito mais sadio e educativo incitar os jovens e a sociedade ao uso regrado do sexo (por que não dizer, à castidade?) do que se deixar dominar pelos modismos; aliás, a disciplina e o autodomínio, no caso, são a única solução cristã.
É fácil ver que, num círculo vicioso, a promiscuidade é retroalimentada precisamente por estas tentativas de se lhe “minimizar” os danos.
É fácil ver que as incontáveis campanhas de “sexo seguro” que empestam a
nossa sociedade contemporânea têm o efeito de predispôr as pessoas
(mormente os jovens) ao sexo livre e irresponsável, como se os males
decorrentes de uma vida sexual desordenada unicamente se resumissem a
meia dúzia de doenças sexualmente transmissíveis; como se, mutatis mutandis,
o único problema do destempero à mesa fossem taxas de colesterol
elevadas, e os mais deploráveis espetáculos de glutonice pudessem se
transformar na mais sublime expressão da dignidade humana se forem
seguidos de cuidadosas lavagens estomacais. À luz de tudo isso, é fácil
perceber como os contraceptivos na verdade agravam o problema,
que – parafraseando D. Estêvão – só pode ser corretamente enfrentado à
luz de disciplina e de autodomínio, coisas cujo abandono não conduz
senão à degradação humana. E disso, infelizmente, a nossa sociedade dá
um triste testemunho.
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