O Leonardo Boff não gostou da primeira encíclica do Papa Francisco.
Claro que ele não poderia gostar, uma vez que é bem conhecido o
orgulhoso desprezo do ex-frade por tudo aquilo que é católico. O seu
texto, contudo, é espantoso: analisando-o, parece que o “teólogo” sequer
leu a Lumen Fidei que desde o primeiro parágrafo se propõe a desqualificar. Vejamos:
A Encíclia (sic) não traz nenhuma novidade espetacular que chamasse a atenção da comunidade teológica
Certamente é bem difícil conceber algum
tipo de “novidade espetacular” que pudesse ser possível em um texto
sobre a Fé da Igreja, que é a mesma ontem, hoje e sempre! No entanto,
«[a] fé como escuta e visão» (LF 29-31) é um dos pontos mais ricos do
texto pontifício, que aborda o assunto sob um prisma que eu não me
recordo de ter encontrado em documentos eclesiásticos. O Papa diz que a
Fé é simultaneamente ouvir e ver, o que transcende a Revelação
vetero-testamentária (cuja expressão máxima se encontra no Sh’ma Yisrael -
«ouve, ó Israel») e só encontra a sua plenitude na Encarnação de
Cristo, que é a Palavra do Pai, que pode ser vista e ouvida e até mesmo tocada:
«Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos
e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma,
transformando o nosso coração, permitiu-nos — e permite-nos —
reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus» (LF 31). A beleza da
imagem escapa completamente aos olhos remelentos do caquético
ex-franciscano.
É um texto dirigido para dentro da Igreja. Fala da luz da fé para quem já se encontra dentro no mundo iluminado pela fé.
Aqui o absurdo chega às raias da
falsificação intelectual pura e simples. A introdução da Encíclica
coloca a questão em termos absolutamente não-crentes: começa analisando
justamente «a objecção que se levanta de muitos dos nossos
contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé» (LF 2) e diz que
«urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a
sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu
vigor» (LF 4). E ainda: «a fé enriquece a existência humana em todas as
suas dimensões» (LF 6). Não há sombra de «reflexão intrasistêmica»
aqui, como se fosse um texto auto-referenciado e que só servisse para
sedimentar católicos hermeticamente isolados de um mundo sem Fé.
E mais: os capítulos II e IV têm um
evidente apelo para os que não crêem. Aquele por colocar a Fé como uma
modalidade de conhecimento; este, por advogar com veemência os influxos
benéficos da Fé para a vida em sociedade. Leiam-se os seguintes excertos
– trago só dois – e digam honestamente se é possível dizer que esta
Encíclica não tem nada a dizer para os que não têm Fé:
- A fé
ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um
caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o
olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a
permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé
desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter,
satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza
sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da
criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo
que se abre aos estudos da ciência [LF 34].
- Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade [LF 54].
Ainda, o número 35 da Encíclica fala
sobre «A fé e a busca de Deus» e tenciona explicitamente «oferece[r] a
contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores
das diferentes religiões» (id. ibid.).
E ainda vem o Boff me dizer que se trata
de um texto que somente fala da Fé Católica para os que já são
católicos! Ele tem certeza de que está falando da Lumen Fidei?
[O texto t]em dificuldade em aceitar um dos temas mais caros do pensamento moderno: a autonomia do sujeito e o uso que faz da luz da razão.
Evidentemente nenhum sujeito tem
“autonomia” alguma frente à realidade das coisas: se minha conta
bancária está negativa, é claro que eu não posso evocar a minha
“autonomia intelectual” para afirmá-la cheia de dinheiro e com isso
saldar os meus credores. Mas o «uso que [o indivíduo] faz da luz da
razão» perpassa todo o documento, e é exatamente isto que o Papa em
diversos pontos evoca em favor da Fé. Por exemplo, citando Sto.
Agostinho, afirma que «a busca da razão, com o seu desejo de verdade e
clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova
compreensão» [LF 33]. E ainda: «a busca da verdade é uma questão de
memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta
forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso « eu » pequeno e
limitado» [LF 25].
Esta afirmação [«“sem a verdade a fé não salva” (n.24)»] é problemática em termos teológicos
Em termos teológicos, o Boff é que é problemático. Aliás, problemático é eufemismo: ele é errado mesmo.
pois toda a Tradição, especialmente, os Concílios tem afirmado que somente salva “aquela verdade, informada pela caridade” (fides caritate informata).
Sim, e isso é repetido pela própria Lumen Fidei
logo no seu início: «Fé, esperança e caridade constituem, numa
interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão
com Deus» (LF 7). De onde raios o Boff tirou que a Encíclica defenderia
uma Fé separada da Caridade?
Mas se constata na Encíclia uma dolorosa lacuna que lhe subtrae (sic) grande parte da relevância: não aborda as crises da fé do homem de hoje, suas dúvidas, suas perguntas que nem a fé pode responder: Onde estava Deus no tsunami que dizimou milhares de vida ou em Fukushima? Como crer depois dos massacres de milhares de indígenas feitos por cristãos ao longo de nossa história, dos milhares de torturados e assassinados pelas ditaduras militares dos anos 70-80? Como ainda ter fé depois dos milhões de mortos nos campos nazistas de extermínio? A encíclica não oferece nenhum elemento para respondermos a estas angústias.
Custa acreditar que este parágrafo possa ter sido escrito, pois a Lumen Fidei reserva, sim, e explicitamente, um trecho para falar do sofrimento do mundo:
A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. [LF 57]
E este eu tenho certeza de que o Boff o
leu, porque dois parágrafos antes ele citou a «lâmpada que guia os
nossos passos na noite». Parece que, para o ex-franciscano, a resposta
do Papa Francisco não é suficiente. Gostaria, então, de conhecer a
relevante contribuição teológica que o Leonardo Boff tem a dar para o
problema do mal no mundo, que seja melhor do que os textos magisteriais
sobre o assunto resumidos nas linhas acima da Lumen Fidei.
Na verdade, o grande problema do Boff é
com as partes «fortemente doutrinárias» do documento do Papa Francisco. O
que provoca calafrios no velho boffento é ler a Doutrina Católica
explícita com desconcertante clareza em vários pontos da Encíclica, como
p.ex. quando o Papa diz com todas as letras que «[s]em verdade, a fé
não salva» (LF 24); ou que «a teologia é impossível sem a fé» (LF 36),
que ela «partilha a forma eclesial da fé» (id. ibid) e que «não
considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como
algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como
um dos seus momentos internos constitutivos» (id. ibid.); ou ainda que a
Fé «é uma só» e por isso deve ser confessada «em toda a sua pureza e
integridade» (LF 48), e isso de tal modo que «danificar a fé significa
danificar a comunhão com o Senhor» (id. ibid.). É isso que o Boff não
suporta. O que, para nós católicos, tem um quê de positivo: afinal, se o
Boff não gostou da Encíclica, isso significa que ela é realmente boa. E
que portanto deve ser bem lida, meditada e posta em prática.
Publicado por Jorge Ferraz (admin)
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