Em
síntese: A velhice é tida por muitos como idade ingrata, entregue à
solidão e aos achaques. Na verdade, uma velhice vivida com Deus na
perspectiva da vida eterna pode ser um período fecundo. Com efeito; o
ancião possui o cabedal da experiência, que ele pode comunicar às
gerações posteriores (desde que não se feche em saudosismo lamurioso e
na repetição enfadonha de histórias passadas). Além disto, o ancião,
tendo ultrapassado as metas que absorvem a atenção dos mais jovens em
sua vida profissional, deve poder realizar com nitidez a autêntica
escala de valores; os bens definitivos lhe estão muito presentes,
exercendo benigna influência sobre o seu coração. O Apóstolo São Paulo,
em suas últimas cartas (1/2 Tm, Tt), dá testemunho de quanto o ancião
pode ser sereno e voltado para os mais nobres ideais, mesmo sofrendo a
inclemência do seu tempo. Importa que o ancião aceite a sua idade. Não
se engane a propósito, como quem quer viver anacronicamente décadas
passadas.
Todavia, para que a idade provecta possa
ser assim serena e fecunda, requer-se que a pessoa se prepare para ela
precisamente nos anos em que ela parece distante; é nas fases de lucidez
e plena maturidade que o cristão deve armazenar o cabedal espiritual de
que ele desfrutará na reta final de sua existência terrestre; querer
começar a encarar o fim da vida quando se este se faz sensivelmente
presente, com seus achaques físicos ou mentais, é tarefa difícil e de
pouco êxito.
Nos tempos atuais, é maior do que outrora o número de pessoas que
chegam a idade provecta, dado que os recursos da medicina prolongam a
vida humana além dos limites do passado. Para muitos, a velhice se
torna um fardo pesado, pois o ancião não raro sofre da solidão que os
outros lhe impõe ou que ele impõe a si mesmo. Daí os sentimentos de
melancolia e desânimo que podem invadir o coração dos anciãos. Estes se
dispõem a dizer com o sábio do Antigo Testamento: “São anos dos quais
não gosto” (Ecl 12, 1).
Como se compreende, a experiência da
velhice e do termo desta vida terrestre é diferente naqueles que têm fé,
e naqueles que não têm fé. Para estes últimos, o fim da caminhada
terrestre é simplesmente fim e naufrágio, após o qual nada existe – o
que contraria violentamente o instinto natural de autoconservação e a
aspiração de todo homem a viver. Para quem tem fé, o caminhar para a
dita “morte” é simplesmente caminhar para a plenitude ou a consumação da
vida. Nas páginas subseqüentes voltar-nos-emos para a velhice tal como a
consideram a sã razão e o olhar da fé cristã.
Eis como o S. Padre João Paulo II apresenta a velhice:
“A velhice é uma fase da vida muito especial. Nela é elevado ao termo
e consumado tudo o que uma longa vida tenha realizado. A velhice faz a
colheita de tudo que foi aprendido, vivenciado e conseguido…, como
também a colheita de tudo o que foi sofrido e superado”.
Um olhar retrospectivo do ancião sobre o seu passado tende a ver
neste facetas positivas e valores que nos momentos de tribulação
passaram despercebidos. A Providência Divina, que escreve direito por
linhas tortas, aparece mais nitidamente como a artesã que sabe tirar dos
males maiores bens. Em suma, uma visão global e desapaixonada dos
acontecimentos permite conceber otimismo em relação aos anos de velhice:
embora o ancião sinta as forças diminuirem e as moléstias a acometê-lo,
ele guarda a paz; tem a convicção de que, afinal, tudo o que o acomete
vem a ser um caminhar para Deus; somente o pecado é incompatível com
esse direcionamento. – Uma paciência cheia de confiança e esperança dá
estrutura a tal fase da vida.
A idade ancião, além disto, ajuda o homem a distinguir melhor o
essencial e o acidental na vida; o olhar se purifica, os horizontes se
clareiam e a pessoa percebe melhor o que merece empenho e o que não vale
a pena… Muita coisa que outrora parecia importante e “empolgava”,
aparece como secundária. Pode-se dizer que então a pessoa cresce em
sabedoria, ou seja, na intuição do mundo como Deus o vê. A eternidade
penetra mais desembaraçadamente no presente do homem e projeta luz sobre
a existência terrestre.
Em consequência, o ancião que pela idade é impedido de tomar parte na
vida da família e na vida pública como outrora, nem por isto se torna
uma pessoa inútil. Ele tem seu papel a exercer, comunicando aos mais
jovens suas experiências de vida, abrindo-lhes o olhar para possíveis
ilusões e percalços que sorrateiramente os ameaçam. Os jovens hão de
ter interesse em procurar ouvir os mais velhos. Notemos, porém, que isto
só será possível se os mais velhos se abstiverem de contar sempre as
mesmas histórias, fechados num saudosismo que não seja capaz de
compreender o momento presente. A tendência dos anciãos a reviver o
passado, dando por vezes a impressão de que o presente é simplesmente
decadência, contribui para isolá-los e impedir-lhes o exercício da
importante função de acompanhar os mais jovens. Ora tal função é
indispensável, como nota o S. Padre João Paulo II:
“Os mais jovens e os mais velhos…, aqueles que hoje são velhos e os
que amanhã serão velhos, … os sadios e os doentes, nós todos realizamos
juntos a plenitude do Corpo de Cristo, e amadurecemos juntos em direção
dessa plenitude”.
Embora o ancião não possa aprovar tudo o que vê, ele não deve ser um
mero arauto de críticas e contradições, mas, antes, procure ser um
pacificador e reconciliador; a sua idade, já isenta de certas paixões,
deve ajudá-lo a atenuar os ânimos exaltados e amainar os afetos
acalorados dos mais jovens, sem detrimento da Verdade e do Bem.
Aceitar a idade
A perspectiva de envelhecer assusta muitas pessoas e suscita nelas a
rejeição da sua idade. Querem então passar por indivíduos menos idosos,
tomando atitudes artificiais ou anacrônicas no vestir-se, no linguajar,
na freqüentação de certos ambientes… Isto redunda não raro em cenas
ridículas. Além disto, a natureza pode levar o ancião a procurar
poupar-se, guardando tanto quanto possível o que lhe vai escapando;
pode intensificar-se nele o apego às pequenas coisas e aos objetos do
seu uso – coisas que outrora ele olhava com mais indiferença porque
sabia como recuperá-las caso as perdesse. Vêm a propósito as ponderações
de Emérico da Gama:
“O jovem é um ser livre; está sempre pronto para partir; o velho de
espírito envelhecido necessita de um número cada vez maior de pontos de
apoio, não só nos seus movimentos físicos, mas de alma. E esses pontos
de apoio são outras tantas amarras que o prendem e podem amesquinhar. É
curioso como, contrariando as leis da lógica, quanto mais perto para o
homem está de ter que deixar as coisas desta vida, mais costuma
agarrar-se a elas. Faz lembrar aquele que se queixava, já perto do fim:
“E as minhas barras de ouro, padre? - Não vale a pena, meu filho, se
você não se arrepender. Não vale a pena, porque se derreterão todas”
(posfácio do livro de Romano Guardini, As Idades da Vida, p. 105).
Ora aceitar a idade é aceitar as restrições que ela impõe; é aceitar a
aposentadoria e certa marginalização; é aceitar ser dependente dos
outros, sem, porém, os onerar mesquinhamente… É aceitar isto tudo com
realismo e magnanimidade. Quem o aceita, descobre também os valores da
idade provecta; esta já não é obnubilada pelo anseio de conseguir
títulos, honras e vitórias; isto tudo, que tanto solicita o jovem,
impede-o por vezes de olhar para os valores definitivos, que mficam
além de todos os títulos e honras da terra. O ancião já não tem o olhar
embaçado pela cortina de conquistas de sua carreira terrestre; já não é
perturbado pelas paixões que as competições, as rivalidades, as rixas…,
freqüentes nos decênios profissionais, suscitam em muitos homens. Assim
com o olhar mais perspicaz ou liberto do colorido das metas terrestres
ou imediatas, o ancião tem o coração mais livre para considerar os
valores definitivos e encaminhar-se para eles sem tantos entraves; a
mensagem da fé pode falar-lhe mais eloqüente e persuasivamente do que em
outras fases da vida. São palavras de Emérico da Gama:
“Os anciãos sabem muito bem que não se aproximam do fim de tudo, mas
da definitiva rampa de lançamento, e por isto vêem sentido em aumentar o
caudal de sua prontidão armazenada. Ou seja, percebem que têm muito a
fazer, talvez mais – e, sem dúvida, mais importante – do que tudo o que
já fizeram. Por isto se compreende que São Paulo tenha dito: “Esquecendo
o que fica para trás, e avançando para o que está adiante, corro em
direção à meta…” (Fl 3, 13s). O velho, segundo São Paulo, é alguém para
quem o passado não conta, exatamente como o jovem. E, como o jovem,
corre, é um ser que tem pressa” (ib., pp. 103s).
Em vez de perder sua generosidade e seus predicados juvenis de
coragem e idealismo, o ancião que tem fé conserva em grau ainda mais
elevado tais valores. É o que se pode confirmar considerando a figura do
Apóstolo São Paulo sobre o fundo de cena da filosofia pré-cristã.
O testemunho do Apóstolo
Em sua Retórica (ll 12s), o grande filósofo grego Aristóteles
(384-322 a.C.), procurando caracterizar a juventude e a velhice da vida
humana, afirmava que os jovens vivem para os valores morais e
artísticos; concebem um ideal de virtude, mesmo de heroísmo, cuja beleza
os atrai e ao qual se entregam sem medir coeficientes de ordem
material; gastam desmedidamente forças físicas e bens materiais na
consecução do seu ideal. Numa palavra: “vivem para o belo (pros to
kalón), não para o útil (pros to sympherón, o interesse pessoal,
egoísta)”. A razão disto, conforme Aristóteles, é que sentem em si uma
vitalidade ardorosa, que os leva a procurar o que o homem pode conceber
de mais nobre, o belo e o bem (moral) dos gregos; é justamente a
consciência de possuir a vida que neles desperta elevadas aspirações. –
Conseqüentemente, para Aristóteles, os anciãos, experimentando em si o
definhar lento das forças físicas, vivem não mais para um ideal de
bravura e beleza, mas para o interesse particular; visam, antes do mais,
baseados em cálculos e especulações, a aquilo que lhes possa trazer
proveito físico e conservar a existência; numa palavra: vivem não mais
para o belo, mas para o útil, o interesse pessoal.
Esta caracterização do ancião não deixa de impressionar: significa
uma retorsão total da anterior, uma desdita às aspirações mais
espontâneas e nobres da natureza humana. É lógica, porém: a vida é o
fundamento pressuposto a todo e qualquer ideal que o homem possa
conceber. Ora Aristóteles e seus contemporâneos, só conhecendo a vida
neste corpo, julgavam que as aspirações variam, chegando mesmo a
deturpar-se e renegar-se de acordo com o grau de vitalidade que o homem
experimenta nas sucessivas idades de sua vida.
O quadro é triste. Pergunta-se, porém: estará, de fato, o homem destinado a renegar seus ideais nobres?
O fato é que, três séculos mais tarde, um outro pensador, que tomara
conhecimento profundo do Evangelho e da sua mensagem de ressurreição e
vida imortal, São Paulo, manifestava um modo de ver bem diferente. Para o
percebermos, basta dizer que o Apóstolo escreveu treze epístolas,
sendo as três últimas, ditas “Pastorais” (1/2 Tm, Tt), devidas a Paulo
quase septuagenário e, no caso da 2 Tm, encarcerado em Roma, consciente
de que estava prestes a ser condenado à morte. Pois bem; ao passo que
nas dez epístolas anteriores o Apóstolo empregara vinte vezes o termo
kalón (belo e bem moral), nas três Pastorais ele o usou vinte e quatro
vezes, e geralmente como adjetivo aposto aos diversos substantivos com
que delineava a vida cristã. A mente de São Paulo aparece assim
impregnada pelo ideal da beleza, pelas aspirações supremas, na idade
decrépita muito mais ainda do que no vigor dos anos. Que contraste com o
quadro anterior proposto pelo homem pré-cristão, por muito sensato que
fosse! E qual a razão de ser deste contraste? É que justamente São Paulo
percebia o sentido que a morte tomou após Cristo , sentido que o homem
antes de Cristo não podia perceber: enquanto este a julgava termo da
existência humana, Paulo a via qual etapa ou passagem para outra vida,
muito mais rica e fecunda do que a terrestre; por isto também, quanto
mais próximo se achava da morte, tanto mais afirmava os valores da mente
humana, pois sabia que o seu definhar na vida terrestre era, na
realidade, um rejuvenescimento para a vida verdadeira, eterna.
Eis como a morte, para o cristão, importa em autêntico desabrochar,
em vez de extinção da personalidade. Ela pode e deve ser dita
“transfiguração” do discípulo de Cristo. Conseqüentemente, a idade anciã
consciente de tal sentido da morte não pode deixar de se reconfortar,
guardando um vigor de alma juvenil dentro dos seus muitos anos de
peregrinação terrestre.
Armazenar na juventude e na maturidade
É espontâneo ao ser humano afastar a noção de que será velho e deverá
dizer Adeus a este mundo visível. Pensar nisto é, para muitos, um
pesadelo. Por isto procuram viver uma idade que não têm, como se a
verdadeira vida fosse apenas a da fase juvenil e a da maturidade
biológica. Na verdade, porém, é precisamente quando o fim da vida
parece distante que se faz mister pensar nele, pois é somente com a
inteligência lúcida e a vontade dócil que a pessoa pode armazenar as
considerações e os propósitos que lhe permitirão enfrentar o declínio
das forças físicas e psíquicas; não é quando estas vão diminuindo (por
motivo de moléstias, como a arteriosclerose, a deficiência visual, a
auditiva, a paralisia…) que o indivíduo se pode dispor a encarar as
exigências da velhice; quem não se preparou nos anos belos e sadios,
dificilmente se preparará quando começar a sofrer os ataques da idade.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 339 – Ano 1990 – p. 352
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