Será que todos nós, quando morremos, já estamos plenamente convertidos a Deus? O que acontece com as almas que precisam se purificar?
Será que todas as coisas sujas que acumulamos em nossas vidas se tornarão, de repente, irrelevantes?
Para a Igreja Católica, o purgatório é um estado no qual as almas dos defuntos passam por um processo de purificação a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu. É a ocasião final que Deus dá às pessoas de se habilitarem para a comunhão plena com Ele. Assim, o purgatório é a última conversão, na morte.
O modo de viver de cada pessoa não é irrelevante. A morte não é uma esponja que simplesmente apaga todo o mal feito e o pecado cometido. Raros são os que, na morte, estão de tal forma purificados que podem mergulhar direto na santidade de Deus. A graça de Deus que salva não prescinde da justiça.
Quando uma pessoa morre, sua opção de vida torna-se definitiva. Podem existir pessoas que levaram uma vida puríssima, tendo morrido na graça e na amizade de Deus, estando totalmente purificadas. A Igreja ensina que tais pessoas seguem imediatamente para o Céu.
No outro extremo desse caso, podem existir aqueles que morreram tendo cometido faltas muito graves, sem terem se arrependido e acolhido o amor misericordioso de Deus. Estes passariam ao estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus, chamado de Inferno.
Observando as duas situações acima, não é difícil perceber que nenhuma delas é a mais comum. O coração do homem vive constantemente em luta perante suas limitações e negações em acolher o amor de Deus de forma plena.
Em sua carta Spe Salvi, o Papa Bento XVI reconhece que na maioria dos homens “perdura no mais profundo da sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus”.
Porém, nas opções concretas da vida, essa abertura para Deus “é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede” (n. 45).
Mesmo aqueles que buscam viver a sua vida em amizade com Deus não estão totalmente isentos de apresentar inclinações desregradas, falhas em sua constituição humana, ou seja, características incompatíveis com a santidade de Deus.
Quantas vezes aquilo que chamamos de virtude não é, na verdade, um culto ao próprio “eu”; quantas vezes a prudência não se revela uma forma de covardia; a virilidade, arrogância; a parcimônia, avareza; e a caridade, uma forma de esbanjamento (Schamus, “Katholische Dogmatik” IV 2).
Quantas vezes em nossos corações não se instalam egoísmo, orgulho, vaidade, negligência, infidelidade...
Então pergunta o Papa: “o que acontece a tais indivíduos quando comparecem diante do Juiz? Será que todas as coisas imundas que acumularam na sua vida se tornarão, de repente, irrelevantes?” (n. 44)
O Papa tem aqui em mente a questão da justiça. A graça de Deus – seu socorro gratuito –, que salva o homem, não exclui a justiça. A graça não é uma esponja que apaga tudo que foi feito de mal no mundo, de modo que, ao final, tudo tenha o mesmo valor (n. 44).
A compenetração da graça e da justiça ensina que “o nosso modo de viver não é irrelevante”, ou seja, que o mal que cometemos e o pecado dos homens não é simplesmente esquecido.
O ensinamento católico considera que o ser humano, na morte, ainda tem uma ocasião para se purificar e atingir o grau de santidade necessário para entrar no Céu. O purgatório é exatamente este estado em que as almas dos defuntos se purificam. Não é uma câmara de tortura e não deve causar medo. O purgatório é uma derradeira oportunidade para a pessoa tornar-se plena e evoluir até as últimas possibilidades do seu ser.
O mal do mundo e de nossos corações não fica simplesmente esquecido com a morte. Deus não é apenas graça, mas é também justiça. E toda pessoa, sendo dotada de liberdade, é ao final responsável por suas escolhas e atitudes.
Sendo assim, aqueles que morrem na graça e na amizade com Deus, mas não estão completamente purificados, têm a oportunidade de passar por essa purificação após a morte.
O ensinamento católico considera que o destino do ser humano na morte não alcança um ponto final estático da evolução. Ou seja, é possível realizar um caminho de aperfeiçoamento – de conversão e purificação – depois da morte.
Trata-se da última conversão da pessoa. Diante de Deus, na morte, cada um deve abrir mão, de forma radical, de todo orgulho e egoísmo, entregando-se incondicionalmente ao Senhor, depositando nele toda a esperança. Deve abandonar tudo que impossibilita amar a Deus com todo coração.
É a este último ato da evolução humana, esta conversão derradeira e purificação para mergulhar na comunhão com Deus que a Igreja chama de purgatório.
“É exatamente na morte e por ocasião do encontro com Deus que cada pessoa experimentará, com intensidade nunca antes conhecida, o significado de sua vida vivida.
E dependendo do que ela tiver feito de si durante esta vida, dependendo também do que ela tiver feito a outras pessoas e com as situações históricas e estruturais naquela vida, sua união com Deus também será ligada a uma purificação experimentada de maneira mais ou menos dolorosa”, afirma o teólogo Renold Blank no livro “Escatologia da Pessoa”.
Esta purificação é uma última oportunidade dada ao homem de cumprimento do plano de Deus, em que sejamos “conformes à imagem do seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8, 29).
Assim, o purgatório não deve ser visto como uma câmara de tortura cósmica e nem deve causar medo. O purgatório é no fundo de “um novo e reiterado ato de salvação de Deus, a fim de que o homem possa ser salvo” (Blank).
A oferta de Deus com o purgatório configura-se então como a etapa para a pessoa tornar-se plena, evoluir até as últimas possibilidades do seu ser, alcançar a plena realização de todas as suas capacidades, estando apta assim para entrar no Céu e na santidade de Deus.
A imagem do fogo, associada ao purgatório, pode ser interpretada como o próprio Cristo, que vem para nos salvar. No encontro com Ele, toda falsidade vem abaixo e o seu olhar nos cura como que pelo fogo.
Sobre a imagem do purgatório ser associada ao fogo, Bento XVI assinala que “alguns teólogos recentes são do parecer de que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador” (Spe Salvi, n. 47).
Diante do olhar de Cristo, toda falsidade vem abaixo. “É o encontro com ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos”.
Nesse momento, as coisas edificadas durante a vida podem se revelar palha seca e desmoronar. Porém, “na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação”.
O olhar de Cristo, o toque do seu coração “cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa ‘como pelo fogo’. Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo de seu amor nos penetra como chama”.
Bento XVI explica ainda que o pecado do homem já foi queimado na Paixão de Cristo. E no momento do Juízo, “experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós”.
A doutrina do purgatório é uma consequência lógica da ideia bíblica de que Deus exige a expiação dos pecados. Ela traz referências a certos trechos da Escritura, à tradição da Igreja e à prática da oração pelos defuntos. Essa ideia foi sistematizada a partir do II Concílio de Lião, em 1274. O Papa Bento XVI a retomou em sua encíclica sobre a esperança cristã, Spe Salvi (2007).
O termo purgatório designa uma noção teológica elaborada a partir da Idade Média no Ocidente. Nomeia o estado em que se encontram as almas dos defuntos que estão num estado provisório, devido ao fato de não estarem aptas a entrar imediatamente na visão de Deus.
O pensamento católico assinala o dogma do purgatório como consequência lógica da doutrina bíblica segundo a qual Deus exige do homem a expiação pessoal pelas faltas cometidas.
Do Antigo Testamento, considera-se a passagem mais significativa para ilustrar essa ideia 2 Mac 12, 39-46, em que Judas Macabeu “mandou que se celebrasse pelos mortos um sacrifício expiatório, para que fossem absolvidos de seu pecado”. Já Paulo, em 1 Cor 3, 10-15, fala de uma salvação “como que através do fogo”.
Até o século IV, a fé no purgatório é atestada pelos sufrágios que os cristãos faziam por seus defuntos, ou seja, as orações pelas almas que ainda não tinham entrado no Céu e poderiam ser ajudadas nisso pelos fiéis vivos.
Santo Agostinho e outros grandes teólogos dos inícios da Igreja assinalam a existência de penas expiatórias depois da morte. Nesse âmbito, o texto de Paulo que fala da salvação “como que através do fogo” é frequentemente citado.
Diante de um crescente interesse pelo tema do purgatório na Idade Média, o Magistério da Igreja passou a estruturar essa doutrina.
O II Concílio de Lião (1274) fala de “penas purgatoriais”. O Concílio de Florença (1438) também assinala uma purificação após a morte por “penas purgatoriais”. Mas é o Concílio de Trento (1547) que vai registrar expressamente a doutrina, afirmando que o pecado acarreta uma pena que tem de ser expiada “seja neste mundo, seja no outro, no purgatório”.
Trata-se portanto de uma doutrina católica, que não foi acolhida nem pelas Igrejas do Oriente nem pelos protestantes.
O ensinamento mais recente da Igreja Católica reafirma a doutrina do purgatório. O Catecismo da Igreja Católica (1992) assinala sua fundamentação nas Escrituras, nos concílios e na prática da oração pelos defuntos. O Papa Bento XVI também retoma o tema, na sua encíclica sobre a esperança cristã.
Referências
Para este artigo, Aleteia consultou o CIC (Catecismo da Igreja Católica); a encíclica Spe Salvi, de Bento XVI (2007); o livro “Escatologia da Pessoa - vida morte e ressurreição”, de Renold J. Blank (São Paulo, Paulus, 2000); o livro “A vida que começa com a morte”, de D. Estevão Bettencourt (Rio de Janeiro, Agir, 1963); o “Dicionário crítico de teologia”, de Jean-Yves Lacoste (Loyola, 2004).
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