Definem a experiência cristã como
“viver na luz”.
No Evangelho, Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”; a sua
missão é libertar os homens das trevas do egoísmo, do orgulho e da autossuficiência.
Aderir à proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de
realização que conduz à vida plena. Da ação de Jesus nasce, assim, o Homem Novo
– isto é, o Homem elevado às suas máximas potencialidades pela comunicação do
Espírito de Jesus.
Na segunda leitura, Paulo propõe aos cristãos de Éfeso que recusem
viver à margem de Deus (“trevas”) e que escolham a “luz”. Em concreto,
Paulo explica que viver na “luz” é praticar as obras de Deus (a bondade, a
justiça e a verdade).
A primeira leitura não se refere diretamente ao tema da “luz” (o
tema central na liturgia deste domingo). No entanto, conta a escolha de David
para rei de Israel e a sua unção: é um óptimo pretexto para reflectirmos sobre
a unção que recebemos no dia do nosso Baptismo e que nos constituiu testemunhas
da “luz” de Deus no mundo.
LEITURA I – 1 Sam 16,1b.6-7.10-13a
Na segunda metade do séc. XI
a.C., os filisteus constituíam uma ameaça bastante séria para as tribos do Povo
de Deus. Instalados na orla costeira, os filisteus pressionavam cada vez mais
os outros grupos que habitavam a terra de Canaã, nomeadamente as tribos do Povo
de Deus que ocupavam as montanhas do interior do país. A necessidade de uma
liderança única e forte levou os anciãos das tribos a equacionar, pela primeira
vez, a possibilidade da união política das tribos sob a autoridade de um rei, à
imagem do que sucedia com os outros povos da zona.
A primeira experiência monárquica
aconteceu com Saul e agrupava as tribos do centro e algumas do norte do país.
Essa experiência terminou, no entanto, de forma dramática: Saul e seu filho
Jónatas morreram na batalha de Gelboé, em luta contra os filisteus, por volta
do ano 1010 a.C.
Era preciso encontrar um outro
“herói”, capaz de gerar consensos entre tribos muito diferentes, juntá-las e
conduzi-las vitoriosamente ao combate contra os inimigos filisteus. A escolha dos
anciãos – tanto das tribos do norte, como das tribos do sul – recaiu, então,
num jovem chamado David.
David nasceu por volta de 1040
a.C., em Belém de Judá, no sul do país. Como é que David se tornou notado e se
impôs, de forma a ser considerado uma solução para o problema da realeza?
O Livro de Samuel apresenta três
tradições sobre a entrada de David em cena. A primeira apresenta David como um
admirável guerreiro, cuja valentia chamou a atenção de Saul, sobretudo após a
sua vitória sobre o gigante filisteu Golias (cf. 1 Sm 17). A segunda tradição
apresenta David como um poeta, que vai para a corte de Saul para cantar e tocar
harpa (segundo esta tradição – bastante hostil a Saul – o rei só conseguia
reencontrar a calma e o bem estar quando David o acalmava com a sua música –
cf. 1 Sm 16,14-23. Aos poucos, o poeta/cantor David foi ganhando adeptos na
corte, tornando-se amigo de Jónatas, o filho de Saúl, e casando mesmo com
Mical, a filha do rei). Finalmente, a terceira tradição – a menos verificável
historicamente, mas a de maior importância teológica – apresenta a realeza de
David como uma escolha de Jahwéh. É esta terceira tradição que o nosso texto
nos apresenta.
O nosso relato apresenta-nos uma
bem elaborada reflexão sobre a eleição. O autor do texto pretende mostrar que a
lógica de Deus é bem diferente, neste capítulo, da lógica dos homens.
Antes de mais, David é
apresentado como o eleito de Jahwéh. É sempre Jahwéh que escolhe aqueles a quem
quer confiar uma missão. Nem a Samuel – o seu enviado – Jahwéh dá qualquer
explicação. A eleição não resulta da iniciativa do homem, mas sim da iniciativa
e da vontade livre de Deus.
Em segundo lugar, impressiona a
lógica da escolha de Deus. Samuel raciocina com a lógica dos homens e pretende
ungir como rei o filho mais velho de Jessé de Belém, impressionado pelo seu
belo aspecto e pela sua estatura; mas não é essa a escolha de Deus… Samuel
percebe, finalmente, que a escolha de Deus recai sobre David – o filho mais
novo de Jessé – um jovem anónimo e desconhecido que andava a guardar o rebanho
do pai.
A história da eleição de David
quer sublinhar a lógica de Deus, que escolhe sem ter em conta os méritos, o
aspecto ou as qualidades humanas que costumam impressionar os homens. Pelo
contrário, Deus escolhe e chama, com frequência, os pequenos, os mais fracos,
aqueles que o mundo marginaliza e considera insignificantes; e é através deles
que age no mundo.
Fica, assim, claro que quem leva
a cabo a obra da salvação é Deus; os homens são apenas instrumentos, através dos
quais Deus realiza a sua obra no mundo.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir dos
seguintes dados:
• Se olharmos para o mundo com
olhos de esperança, vemos muitas pessoas que realizam coisas bonitas, que lutam
contra a miséria, o sofrimento, a injustiça, a doença, o analfabetismo, a
violência… Não há mal nenhum em admirarmos a sua disponibilidade e em
aprendermos com o seu empenho e compromisso. No entanto, nós os crentes somos
convidados a olhar mais além e a ver Deus por detrás de cada gesto de amor, de
bondade, de coragem, de compromisso com a construção de um mundo melhor. O
nosso Deus continua a construir, dia a dia, a história da salvação; e chama
homens e mulheres para colaborarem com Ele na salvação do mundo.
• A nossa leitura mostra, mais
uma vez, que Deus tem critérios diferentes dos critérios humanos e que a sua
lógica nem sempre coincide com a nossa. “Deus não vê como o homem; o homem olha
às aparências, o Senhor vê o coração” – diz o texto. É preciso entrar na lógica
de Deus e aprender a ver, para além da aparência, da roupa que a pessoa veste,
do “curriculum” profissional ou académico; é preciso aprender a ver com o
coração e a descobrir a riqueza que se esconde por detrás daqueles que parecem
insignificantes e sem pretensões… É preciso, sobretudo, aprender a respeitar a
dignidade de cada homem e de cada mulher, mesmo quando não parecem pessoas
importantes ou influentes. É isso que acontece nos “guichets” dos nossos
serviços públicos? É isso que acontece nas recepções das nossas igrejas? É isso
que acontece nas portarias das nossas casas religiosas?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 22 (23)
Refrão 1: O Senhor é meu pastor:
nada me faltará.
Refrão 2: O Senhor me conduz:
nada me faltará.
O Senhor é meu pastor: nada me
falta.
Leva-me a descansar em verdes
prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.
Ele me guia por sendas direitas
por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por
vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque
Vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo
me enchem de confiança.
Para mim preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça
e meu cálice transborda.
A bondade e a graça hão-de
acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.
LEITURA II – Ef 5,8-14
A Carta aos Efésios é,
provavelmente, um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias
Igrejas da Ásia Menor, numa altura em que Paulo está na prisão (em Roma? em
Cesareia?). O seu portador é um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.
Alguns vêem nesta carta uma
espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que Paulo sente ter
terminado a sua missão apostólica na Ásia e não sabe exatamente o que o futuro
próximo lhe reserva (recordemos que ele está, por esta altura, prisioneiro e
não sabe como vai terminar o cativeiro).
O tema central da Carta aos Efésios
é aquilo a que Paulo chama “o mistério”: o desígnio (ou projeto) salvador de
Deus, definido desde toda a eternidade, escondido durante séculos aos homens,
revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos,
desfraldado e dado a conhecer ao mundo na Igreja.
O texto que nos é aqui proposto
faz parte da “exortação aos batizados” que aparece na segunda parte da carta
(cf. Ef 4,1-6,20). Nessa exortação, Paulo retoma os temas tradicionais da
catequese primitiva e convida os crentes a deixarem a antiga forma de viver
para assumirem a nova, revestindo-se de Cristo (cf. Ef 4,17-31), imitando Deus
(cf. Ef 4,32-5,2) e passando das trevas à luz (cf. Ef 5,3-20).
A imagem da “luz” e das “trevas”,
aqui utilizada, é uma imagem que aparecia frequentemente na catequese
primitiva, como sugere o seu uso nos textos neo-testamentários, sobretudo em
João e Paulo (cf. Jo 1,4-5; 3,19.21; 8,12; 1 Jo 1,5-7; 2,9-11; Rom 2,19; 2 Cor
4,6; 1 Tess 5,4-7). O símbolo “luz/trevas” aparece, também, nos escritos de
Qûmran para definir o mundo de Deus (luz) e o mundo que se opõe a Deus
(trevas).
Para Paulo, viver nas “trevas” é
viver à margem de Deus, recusar as suas propostas, viver prisioneiro das
paixões e dos falsos valores, no egoísmo e na autossuficiência. Ao contrário,
viver na “luz” é acolher o dom da salvação que Deus oferece, aceitar a vida
nova que Ele propõe, escolher a liberdade, tornar-se “filho de Deus”.
Os cristãos são aqueles que
escolheram viver na “luz”. Paulo, dirigindo-se aos cristãos da parte ocidental
da Ásia Menor, exorta-os a viverem na órbita de Deus, como Homens Novos, e a
praticarem as obras correspondentes à opção que fizeram pela “luz”. Em
concreto, Paulo pede-lhes que as suas vidas sejam marcadas pela bondade, pela
justiça e pela verdade. A propósito, Paulo cita um velho hino cristão
baptismal, que convoca os crentes para viverem na “luz” (vers. 14).
Mais ainda: o cristão não é só
chamado a viver na “luz”; mas deve desmascarar as “trevas” e denunciar as obras
e os comportamentos daqueles que escolhem viver nas “trevas” do egoísmo, da
mentira, da escravidão e do pecado. O cristão não deve só escolher a luz, mas
deve também desmascarar as obras das “trevas”, de forma aberta e decidida.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, ter em conta os
seguintes dados:
• “Luz” e “trevas” são, nesta
passagem, duas esferas de poder capazes de tomar conta do homem e de
condicionar a sua vida, as suas opções, os seus valores e comportamentos. O
cristão, no entanto, é aquele que optou por “viver na luz”. Para mim, o que
significa, em concreto, “viver na luz”? O que é que isso, em termos práticos,
implica? Quais são os esquemas, comportamentos e valores que devem ser
definitivamente saneados da minha vida, a fim de que eu seja um testemunho da
“luz”?
• Para Paulo, não chega “viver na
luz” e dar testemunho da “luz”. É preciso, também, denunciar – de forma aberta
e decidida – as “trevas” que desfeiam o mundo e que mantêm os homens escravos.
Na minha perspectiva, quais são os gestos, comportamentos e atitudes que
contribuem para apagar a “luz” de Deus e para manter este mundo nas “trevas”?
Com que é que eu devo pactuar e o que é que eu devo denunciar?
• A expressão “desperta tu que
dormes”, citada por Paulo, convida-nos à vigilância. O cristão não pode ficar
de braços cruzados diante da maldade, do egoísmo, da injustiça, da exploração,
dos contra-valores que enegrecem a vida dos homens e do mundo. O cristão tem de
manter uma atitude de vigilância atenta e de denúncia ousada e corajosa. Diante
dos contra-valores, qual a minha atitude: é a atitude comodista de quem deixa
correr as coisas porque não está para se chatear, ou é a atitude de quem se
sente realmente incomodado com a escuridão do mundo e pretende intervir para
que o mundo se construa de uma forma diferente?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Jo
8,12
Escolher um dos refrães:
Refrão 1: Louvor e glória a Vós,
Jesus Cristo, Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor,
Filho do Deus vivo.
Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus
Cristo, Rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis
são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e
o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Eu sou a luz do mundo, diz o
Senhor:
quem Me segue terá a luz da vida.
EVANGELHO – Jo 9,1-41
Naquele tempo, 1ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. 6E cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. 7E disse-lhe: “Vai lavar-te na piscina de Siloé” (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando.
8Os vizinhos e os que costumavam ver o cego — pois ele era mendigo — diziam: “Não é aquele que ficava pedindo esmola?” 9Uns diziam: “Sim, é ele!” Outros afirmavam: “Não é ele, mas alguém parecido com ele”.
Ele, porém, dizia: “Sou eu mesmo!”
13Levaram então aos fariseus o homem que tinha sido cego. 14Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego. 15Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha recuperado a vista. Respondeu-lhes: “Colocou lama sobre os meus olhos, fui lavar-me e agora vejo!”
16Disseram, então, alguns dos fariseus: “Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado”. Mas outros diziam: “Como pode um pecador fazer tais sinais?”
17E havia divergência entre eles. Perguntaram outra vez ao cego: “E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?” Respondeu: “É um profeta”.
34Os fariseus disseram-lhe: “Tu nasceste todo em pecado e estás nos ensinando?” E expulsaram-no da comunidade.
35Jesus soube que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?” 36Respondeu ele: “Quem é, Senhor, para que eu creia nele?” 37Jesus disse: “Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo”. Exclamou ele: 38“Eu creio, Senhor!” E prostrou-se diante de Jesus.
Já vimos, na semana passada, que
o Evangelho segundo João procura apresentar Jesus como o Messias, Filho de
Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. Também vimos que, no chamado
“Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), o autor apresenta – recorrendo aos
“sinais” da água (cf. Jo 4,1-5,47), do pão (cf. Jo 6,1-7,53), da luz (cf. Jo
8,12-9,41), do pastor (cf. Jo 10,1-42) e da vida (cf. Jo 11,1-56) – um conjunto
de catequeses sobre a ação criadora do Messias.
O nosso texto é, exatamente, a
terceira catequese (a da luz) do “Livro dos Sinais”: através do “sinal” da
“luz”, o autor vai descrever a ação criadora e vivificadora de Jesus. A
catequese sobre a “luz” é colocada no contexto da “Festa de Sukkot” (a festa
das colheitas); um dos ritos mais populares dessa festa era, exatamente, a
iluminação dos quatro grandes candelabros do átrio das mulheres, no Templo de
Jerusalém.
No centro do quadro aparece-nos
(além de Jesus) um cego. Os “cegos” faziam parte do grupo dos excluídos da
sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas – pela
teologia oficial – como resultado do pecado (os rabbis da época chegavam a
discutir de onde vinha o pecado de alguém que nascia com uma deficiência: se o
defeito era o resultado de um pecado dos pais, ou se era o resultado de um
pecado cometido pela criança no ventre da mãe).
Segundo a concepção da época,
Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o
resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de
estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua
condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas
no tribunal e de participar nas cerimónias religiosas no Templo.
O nosso texto não é uma
reportagem jornalística sobre a cura de um cego; mas é uma catequese, na qual
se apresenta Jesus como a “luz” que veio iluminar o caminho dos homens. O
“cego” da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na
escuridão, privados da “luz”, prisioneiros dessas cadeias que os impedem de
chegar à plenitude da vida. A reflexão apresenta-se em vários quadros.
No primeiro quadro (vers. 2-5),
Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”. Jesus e os discípulos estão diante de
um cego de nascença. De acordo com a teologia da época, o sofrimento era sempre
resultado do pecado; por isso, os discípulos estavam preocupados em saber se
foi o cego que pecou ou se foram os seus pais. Jesus desmonta esta perspectiva
e nega qualquer relação entre pecado e sofrimento. No entanto, a ocasião é
propícia para ir mais além; e Jesus aproveita-a para mostrar que a missão que o
Pai lhe confiou é ser “a luz do mundo” e encher de “luz” a vida dos que vivem
nas trevas.
No segundo quadro (vers. 6-7),
Jesus passa das palavras aos atos e prepara-se para dar a “luz” ao cego. Começa
por cuspir no chão, fazer lodo com a saliva e ungir com esse lodo os olhos do
cego. O gesto de fazer lodo reproduz, evidentemente, o gesto criador de Deus de
Gn 2,7 (quando Deus amassou o barro e modelou o homem). A saliva transmitia,
pensava-se, a própria força ou energia vital (equivale ao sopro de Deus, que
deu vida a Adão – cf. Gn 2,7). Assim, Jesus juntou ao barro a sua própria
energia vital, repetindo o gesto criador de Deus. A missão de Jesus é criar um
Homem Novo, animado pelo Espírito de Jesus.
No entanto, a cura não é
imediata: requer-se a cooperação do enfermo. “Vai lavar-te na piscina de Siloé”
– diz-lhe Jesus. A disponibilidade do cego em obedecer à ordem de Jesus é um
elemento essencial na cura e sublinha a sua adesão à proposta que Jesus lhe
faz. A referência ao banho na piscina do “enviado” (o autor deste texto tem o
cuidado de explicar que Siloé significa “enviado”) é, evidentemente, uma alusão
à água de Jesus (o enviado do Pai), essa água que torna os homens novos, livres
das trevas/escravidão. A comunidade joânica pretenderá, certamente, fazer aqui
uma catequese sobre o baptismo: quem quiser sair das trevas para viver na luz,
como Homem Novo, tem de aceitar a água do baptismo – isto é, tem de optar por
Jesus e acolher a proposta de vida que Ele oferece.
Depois, o autor do texto coloca
em cena várias personagens; essas personagens vão assumir representar vários
papéis e assumir atitudes diversas diante da cura do cego.
Os primeiros a ocupar a cena são
os vizinhos e conhecidos do cego (vers. 8-12). A imagem do cego, dependente e
inválido, transformado em homem livre e independente, leva os seus concidadãos
a interrogar-se. Percebem que de Jesus vem o dom da vida em plenitude; talvez
anseiem pelo encontro com Jesus, mas não se atrevem a dar o passo definitivo
(ir ao encontro de Jesus) para ter acesso à “luz”. Representam aqueles que
percebem a novidade da proposta que Jesus traz, que sabem que essa proposta é
libertadora, mas que vivem na inércia, no comodismo e não estão dispostos a
sair do seu “cantinho”, do seu mundo limitado, para ir ao encontro da “luz”.
Um outro grupo que aparece em
cena é o dos fariseus (vers. 13-17). Eles sabem perfeitamente que Jesus oferece
a “luz”; mas recusam-na liminarmente. Para eles, interessa continuar com o
esquema das “trevas”. Representam aqueles que têm conhecimento da novidade de
Jesus, mas não estão dispostos a acolhê-la. Sentem-se mais confortáveis nos
seus esquemas de escravidão e autossuficiência e não estão dispostos a
renunciar às “trevas”. Mais: opõem-se decididamente à “luz” que Jesus oferece e
não aceitam que alguém queira sair da escravidão para a liberdade. Quando
constatam que o homem curado por Jesus não está disposto a voltar atrás e a
regressar aos esquemas de escravidão, expulsam-no da sinagoga: entre as
“trevas” (que os dirigentes querem manter) e a “luz” (que Jesus oferece), não
pode haver compromisso.
Depois, aparecem em cena os pais
do cego (vers. 18-23). Eles limitam-se a constatar o acontecimento (o filho
nasceu cego e agora vê), mas evitam comprometer-se. Na sua atitude, transparece
o medo de quem é escravo e não tem coragem de passar das “trevas” para a “luz”.
O texto explica, inclusive, que eles “tinham medo de ser expulsos da sinagoga”.
A “sinagoga” designava o local do encontro da comunidade israelita; mas
designava, também, a própria comunidade do Povo de Deus. Ser expulso da
“sinagoga” significava a excomunhão, o risco de ser declarado herege e apóstata,
de perder os pontos de referência comunitários, o cair na solidão, no ridículo,
no descrédito e na marginalidade. Preferem a segurança da ordem estabelecida –
embora injusta e opressora – do que os riscos da vida livre. Representam todos
aqueles que, por medo, preferem continuar na escravidão, não provocar os
dirigentes ou a opinião pública, do que correr o risco de aceitar a proposta
transformadora de Jesus.
Finalmente, reparemos no
“percurso” que o homem curado por Jesus faz. Antes de se encontrar com Jesus, é
um homem prisioneiro das “trevas”, dependente e limitado. Depois, encontra-se
com Jesus e recebe a “luz” (do encontro com Jesus resulta sempre uma proposta
de vida nova para o homem). O relato descreve – com simplicidade, mas também de
uma forma muito bela – a progressiva transformação que o homem vai sofrendo.
Nos momentos imediatos à cura, ele não tem ainda grandes certezas (quando lhe
perguntam por Jesus, responde: “não sei”; e quando lhe perguntam quem é Jesus,
ele responde: “é um profeta”); mas a “luz” que agora brilha na sua vida vai-o
amadurecendo progressivamente. Confrontado com os dirigentes e intimado a
renegar a “luz” e a liberdade recebidas, ele torna-se, em dado momento, o homem
das certezas, das convicções; argumenta com agilidade e inteligência, joga com
a ironia, recusa-se a regressar à escravidão: mostra o homem adulto, maduro,
livre, sem medo… É isso que a “luz” que Jesus oferece produz no homem.
Finalmente, o texto descreve o estádio final dessa caminhada progressiva: a
adesão plena a Jesus (vers. 35-38). Encontrando o ex-cego, Jesus convida-o a
aderir ao “Filho do Homem” (“acreditas no Filho do Homem?” - vers. 35); a
resposta do ex-cego é a adesão total: “creio, Senhor” (vers. 38). O título
“Senhor” (“kyrios”) era o título com que a comunidade cristã primitiva
designava Jesus, o Senhor glorioso. Diz, ainda, o texto, que o ex-cego se
prostrou e adorou Jesus: adorar significa reconhecer Jesus como o projecto de
Homem Novo que Deus apresenta aos homens, aderir a Ele e segui-l’O.
Neste percurso está
simbolicamente representado o “caminho” do catecúmeno. O primeiro passo é o
encontro com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a sua adesão à “luz” e vai
amadurecendo a sua descoberta… Torna-se, progressivamente, um homem livre, sem
medo, confiante; e esse “caminho” desemboca na adesão total a Jesus, no
reconhecimento de que Ele é o Senhor que conduz a história e que tem uma
proposta de vida para o homem… Depois disto, ao cristão nada mais interessa do
que seguir Jesus.
A missão de Jesus é aqui
apresentada como criação de um Homem Novo. Deus criou o homem para ser livre e
feliz; mas o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, dominaram o coração do
homem, prenderam-no num esquema de “cegueira” e frustraram o projeto de Deus. A
missão de Jesus consistirá em destruir essa “cegueira”, libertar o homem e
fazê-lo viver na “luz”. Trata-se de uma nova criação… Assim, da ação de Jesus
irá nascer um Homem Novo, liberto do egoísmo e do pecado, vivendo na liberdade,
a caminho da vida em plenitude.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as
seguintes propostas:
• Nós, os crentes, não podemos
fechar-nos num pessimismo estéril, decidir que o mundo “está perdido” e que à
nossa volta só há escuridão… No entanto, também não podemos esconder a cabeça
na areia e dizer que tudo está bem. Há, objetivamente, situações, instituições,
valores e esquemas que mantêm o homem encerrado no seu egoísmo, fechado a Deus
e aos outros, incapaz de se realizar plenamente. O que é que, no nosso mundo,
gera escuridão, trevas, alienação, cegueira e morte? O que é que impede o homem
de ser livre e de se realizar plenamente, conforme previa o projeto de Deus?
• A catequese que João nos propõe
hoje garante-nos: a realização plena do homem continua a ser a prioridade de
Deus. Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens e mostrou-lhes
a luz libertadora: convidou-os a renunciar ao egoísmo e autossuficiência que
geram “trevas”, sofrimento, escravidão e a fazerem da vida um dom, por amor.
Aderir a esta proposta é viver na “luz”. Como é que eu me situo face ao desafio
que, em Jesus, Deus me faz?
• O Evangelho deste domingo
descreve várias formas de responder negativamente à “luz” libertadora que Jesus
oferece. Há aqueles que se opõem decididamente à proposta de Jesus porque estão
instalados na mentira e a “luz” de Jesus só os incomoda; há aqueles que têm
medo de enfrentar as “bocas”, as críticas, que se deixam manipular pela opinião
dominante, e que, por medo, preferem continuar escravos do que arriscar ser
livres; há aqueles que, apesar de reconhecerem as vantagens da “luz”, deixam
que o comodismo e a inércia os prendam numa vida de escravos… Eu identifico-me
com algum destes grupos?
• O cego que escolhe a “luz” e
que adere incondicionalmente a Jesus e à sua proposta libertadora é o modelo
que nos é proposto. A Palavra de Deus convida-nos, neste tempo de Quaresma, a
um processo de renovação que nos leve a deixar tudo o que nos escraviza, nos
aliena, nos oprime – no fundo, tudo o que impede que brilhe em nós a “luz” de
Deus e que impede a nossa plena realização. Para que a celebração da
ressurreição – na manhã de Páscoa – signifique algo, é preciso realizarmos esta
caminhada quaresmal e renascermos, feitos Homens Novos, que vivem na “luz” e
que dão testemunho da “luz”. O que é que eu posso fazer para que isso aconteça?
• Receber a “luz” que Cristo
oferece é, também, acender a “luz” da esperança no mundo. O que é que eu faço
para eliminar as “trevas” que geram sofrimento, injustiça, mentira e alienação?
A “luz” de Cristo que os padrinhos me passaram no dia em que fui batizado
brilha em mim e ilumina o mundo?
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