sábado, 8 de março de 2014

1º DOMINGO DA QUARESMA - JESUS NO DESERTO.

Leituras: 
Gênesis 2, 7-9.3.1-7; 
Salmo 50 (51); 
Carta de São Paulo aos Romanos 5, 12-19;
 Mateus 4, 1-11.

COR LITÚRGICA: ROXA

 Já iniciamos, desde quarta-feira passada, o Tempo da Quaresma, que sempre traz a Campanha da Fraternidade, para nos ajudar em nossa conversão. Neste ano de 2014, o tema é “Fraternidade e Tráfico Humano”, com o lema: “É para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5, 1)”. Nesta páscoa semanal de Jesus somos convidados a refletir sobre as tentações de Jesus e também as nossas. Jesus não cede às armadilhas do diabo, porque Deus não se manifesta naquilo que mata a vida humana: a idolatria do dinheiro, que desconsidera a vida por causa do lucro, que leva tantas pessoas a sofrerem com o tráfico humano.

1. Situando-nos brevemente

É fascinante e perturbadora a experiência que perpassa nosso interior todos os dias. Por um lado, nos surpreende o estupor diante da consciência de sermos amados e cuidados por Deus como seus filhos e filhas. O estupor se traduz em íntimo chamado a responder com a simplicidade e a confiança de uma criança.

Por outro lado, se infiltra uma sutil e atraente sugestão, insinuando o desejo de tomar somente em nossas mãos o próprio destino. Olhar a os esmos como o exclusivo ponto de referência, única garantia de nossa dignidade. Tornar-se autossuficiente. Profunda laceração do coração: ficamos feridos, porém na conseguimos escapar.

“Impenetrável é o homem, seu coração é um abismo!” exclama o salmista (Sl 64,7). O apóstolo Paulo, olhando sua sofrida experiência pessoal, grita: “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero (...) Infeliz que eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7, 19.24-25).

Este primeiro domingo da Quaresma nos coloca diante do mistério do bem e do mal que nos habita, até as raízes mais profundas da nossa pessoa, e nos deixa vislumbrar a saída desta contradição: queda de Adão/Eva diante tentador, no Jardim do Éden (1ª leitura), e vitória de Cristo que derrota o diabo no deserto (evangelho) e antecipa sua vitória final na cruz e ressurreição.

Cristo Ressuscitado é o novo Adão que, no jardim da ressurreição, dá início a uma nova humanidade, à qual nós pertencemos por graça, pelo Batismo, que nos faz participar de sua morte e ressurreição.

Cada Quaresma nos faz realizar, de maneira nova e mais profunda, esta passagem da sujeição ao pecado para a vida nova em Cristo, participando de suas lutas e de sua vitória.

2. Recordando a Palavra

“Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não repousa em ti” (S. Agostinho, Confissões, Livr. 1,1; LH do 9º domingo do Tempo Comum). Santo Agostinho interpreta a tensão vital que nos habita como um chamado constante a voltar a Deus, mesmo quando, pelas ilusões da falsa liberdade, nos afastamos do caminho certo. Atração para Deus, como a origem e fonte inesgotável de vida, e tentação a nos colocarmos em alternativa a Ele é a sorte que nos acompanha.

A narração da criação do ser humano proposta pela primeira leitura (Gn 2, 7-9; 3, 1-7), com sua linguagem simbólica e altamente poética, destaca o cuidado carinhoso com o qual Deus chama à existência o homem, o faz participe de sua mesma vida e dignidade e seu parceiro no cuidado da beleza e da fecundidade da criação inteira, que é “um jardim a ser cultivado”. No centro do jardim, como no centro da existência humana, o Senhor faz brotar a “árvore da vida” e a “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn2,9).

Vida em abundância e conhecimento na intimidade recíproca são os dons com que o Senhor enriquece a existência e a missão de Adão e Eva. A cena encantadora, que apresenta o Senhor “passeando à brisa da tarde no jardim”, à procura de Adão e Eva para deter-se em amável conversa com eles, como com seus íntimos amigos (Gn 3,8), irradia toda a beleza e o dinamismo da relação que o Senhor estabeleceu entre si mesmo e o ser humano, ao criá-lo à sua imagem e semelhança (Gn 1,26).

O diabo, o inimigo da vida, o atrapalhador que engana o homem com a ilusão da falsa promessa e da perspectiva de tornar-se fonte totalmente  da própria “nudez”, isto é, da radical incapacidade de realizar, de verdade, tanto a vocação à autêntica dignidade e liberdade como a missão de construir um mundo capaz de espelhar a beleza divina: “Então os olhos de ambos se abriram, e, como reparassem que estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira” (Gn 3,7).

O Senhor, porém, não abandona quem trai, fica fugindo e de se esconde. A narração do pecado tem um seguimento de promessa e de esperança. A voz do Senhor, à procura de seus amigos escondidos pela vergonha e o sentido de culpa, ao primeiro ressoar no jardim – “Onde estás?” (Gn 3,9), - parece vibrar como uma ameaça. Na verdade, ela prepara a promessa de resgate da armadilha da serpente enganadora: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).

A condição que Adão e Eva terão que enfrentar “fora do jardim”, longe das próprias e autênticas raízes, será amenizada pela luz desta promessa. A pergunta de Deus ao homem- “Onde estás” – revelará plenamente seu carinhoso cuidado na voz cheia de ternura com que Jesus ressuscitado falará a Maria Madalena no jardim da ressurreição: “Maria!” (...) “Rabbuni!” (Jo 20,16).

O salmo responsorial (Sl 50) é o salmo penitencial por excelência. Resume em si os sentimentos mais profundos do pecado, do arrependimento, da conversão, da alegria, do agradecimento pela vida renovada pela misericórdia e o perdão de Deus. O caminho de pecado e de conversão do rei Davi se torna espelho do caminho de toda pessoa que procura a Deus, a partir de sua fragilidade.

O salmo exprime, com a máxima intensidade, a consciência da própria fragilidade inata e do próprio pecado, e ao mesmo tempo, a confiança extrema no Senhor que por sua misericórdia perdoa e tudo renova. “Ó Deus, tem piedade de mim (...) contra ti eu pequei!”. “Reconheço a minha iniquidade e meu pecado está sempre diante de mim”.

Tal humilde reconhecimento do pecado não desanima, mas abre à confiança quem coloca no Senhor a razão de sua vida. O perdão invocado é certeza de uma radical transformação do coração, como graça de Deus: “Criai em mim, ó Deus, um coração puro, renova em mim um espírito resoluto (...) Devolve-me a alegria de ser salvo”.

O salmo alimenta o caminho da conversão, a passagem para a vida nova da Páscoa, através da purificação interior da Quaresma.

Na segunda leitura (Rm 2, 12-19), Paulo desenvolve, em profundidade, a relação que Deus tem estabelecido entre a aventura negativa de Adão e a resposta de obediência e de amor, realizada por Cristo, “novo Adão”, início de uma humanidade nova.

O dom da salvação em Cristo é bem maior do que o mal praticado pelo homem. Deus não se deixa vencer em bondade e misericórdia. Pela fidelidade no amor e na obediência filial de Cristo, o Pai derrama, gratuitamente e com abundância, a vida nova no Espírito, e dela nós vivemos.

A transgressão de um só levanta a multidão humana à morte, mas foi de modo bem superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos (cf. Rm 5,15).

Cristo assume sobre si nossa condição humana de pecado e com sua vida de dedicação filial, sobretudo com sua páscoa, revira a situação, abrindo caminho para voltar ao projeto original de Deus e realizá-lo em plenitude.
 
Evangelho Mateus 4, 1-11
 Naquele tempo, 1o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 2Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome. 3Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!” 4Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’”.
5Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, 6e lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. 7Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’”
8Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, 9e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. 10Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’”. 11Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus.
O evangelho (Mt 4, 1-11) narra que Jesus se apresenta entre os pecadores para ser batizado por João e que, cheio do Espírito Santo, é conduzido por este mesmo Espírito a enfrentar o diabo no “deserto”, lugar da esterilidade e da provação, contraposto ao “jardim”, lugar da vida e da comunhão, no qual Deus tinha colocado o homem, para que cuidasse e gozasse de sua beleza e fecundidade.

O deserto, como o jardim do primeiro Éden, não é simplesmente um lugar geográfico, mas indica a sofrida situação existencial do homem “desertificada”, como repetia Bento XVI, ao descrever a condição do homem pós-moderno, fechado em si mesmo e interiormente corroído pela pretensão de ser o centro do mundo, sem relação com Deus e em competição com os outros (cf. Homilia na Santa Missa da abertura do Ano da Fé. 11/10/2012).

Jesus penetra dentro deste deserto, conduzido pelo espírito, para partilhar a dura condição humana e vencer, com o amor e a obediência, o poder obscuro do maligno. “A Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jô 1,14). Com a três tentações, o tentador procura afastar Jesus do projeto do Pai. Propõe-lhe o caminho do sucesso obtido com o milagre fácil (mudar as pedras em pão para satisfazer a fome), com gestos que produzem prestígio espetacular e fácil consenso (jogar-se do templo diante do povo), prometendo-o com o poder (adorando o poder).

Eis as tentações que, em formas variadas, cada um, continua a enfrentar ao longo da vida. A Igreja não fica imune a isto, nem no nosso tempo, como, com vigor, destaca frequentemente o Papa Francisco.

Jesus, no entanto, animado pelo Espírito, rejeita com a força da Palavra de Deus, as seduções e manifesta sua verdadeira condição de Filho de Deus, assumindo até as extremas conseqüências a escolha da humildade e da dedicação ao Pai.

Jesus, “novo Adão”, com a luta no deserto, reestabelece a verdadeira relação da obediência no amor com o Pai, que o “primeiro Adão”, no Éden, não soube guardar e valorizar. Jesus, com sua luta de quarenta dias e sua vitória, vence as provações que Israel, em sua peregrinação de quarenta anos nos desertos, não tinha conseguido superar, abandonando-se à murmuração contra Deus e à idolatria.

3. Atualizando a Palavra

O caminho dos discípulos, em todos os tempos, é o mesmo de Jesus.  Somente seguindo Jesus, se pode lutar, com êxito, contra o egocentrismo e a procura de falso sucesso, quer na vida pessoal, quer no exercício dos ministérios na Igreja, e chegar à intimidade do jardim da ressurreição. A Quaresma nos indica o caminho certo e suas etapas.

O Batismo nos introduz no caminho do próprio Jesus, nos faz participar da mesma ação do Espírito que o conduziu e sustentou na luta com o diabo no deserto e na vitória sobre a morte na ressurreição. Animados pelo Espírito, temos a graça de viver com a liberdade dos filhos e filhas de Deus. Temos a graça, como diz Paulo, de viver como já “ressuscitados” (cf. Cl 3, 1-4), como partícipes da vida nova em Cristo, não mais permitindo que o pecado determine nossa maneira de sentir, de pensar, de agir.

Com a fé e o Batismo, passamos por uma transformação radical, que nos acompanha por toda a vida. A vida nova no Espírito Santo é semente que nos impele desde dentro, cujo crescimento nós devemos favorecer. A graça não é magia, nem o desenvolvimento das suas potencialidades é algo de automático. Cada dia o Senhor solicita nossa disponibilidade no amor e nosso compromisso de obediência filial.

A vida do discípulo irradia a luz e a fecundidade da Páscoa ao mesmo tempo em que continua a luta contra as contradições do pecado que sobem do coração, até que seja reconstituído, em sua integridade, como o da criança.

O “homem velho” e o “homem novo” ainda convivem dentro de nós, e, às vezes, num conflito que nos dilacera. Nossa salvação afirma Paulo, é ainda objeto de esperança e de luta (cf. Rm 8, 24). Temos ainda a necessidade de cultivar a dinâmica de conversão e penitência, enquanto vivemos da energia vital e da luminosidade da Páscoa.

Com sábia pedagogia, cada ano a Igreja nos oferece novamente a luz da Páscoa e a sóbria alegria da Quaresma, com suas exigências de penitência e conversão.

O tempo da Quaresma se apresenta como o tempo mais propício para celebrar a purificação do coração e fortalecer a caridade. Mediante várias formas de ascese e de oração íntima, de maneira especial com a celebração do sacramento da Reconciliação, em forma individual ou comunitária.

4. Ligando a Palavra com ação litúrgica

A celebração da Eucaristia nos oferece a graça de celebrar a vida como um caminho partilhado em comunidade. Ela nos tira da solidão de nossos vários desertos, pelos quais ficamos prisioneiros de nós mesmos, por presunção ou por medo.

A ilusão de se tornar protagonista absoluto do próprio destino, na qual caiu o primeiro homem, deixa na Eucaristia lugar para o reconhecimento que a vida recebe sua energia e sua fecundidade da relação com Cristo, obediente e livre até o dom da própria vida, e da relação de amor para com os irmãos.

O original diálogo de amizade e de festa entre o Senhor e o homem no Éden acabou com o homem tornando-se surdo e mudo, se escondendo de Deus e de si próprio. A Eucaristia, pela união com Cristo, nos dá a ousadia de nos apresentarmos na casa do Pai, com humildade e confiança.

Pedimos perdoa, repetidas vezes, desde o inicio da celebração até ao momento de nos aproximarmos à mesa do corpo e do sangue de Cristo. O sentido penitencial se desdobra do ato penitencial, ao início, até a proclamação de fé: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”.

A presunção de nos auto-orientarmos na vida, sem relação com o Senhor, cede lugar à humilde invocação para que a Quaresma nos ajude a “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa” (oração do dia).

A participação na dupla mesa da Palavra de Deus e do pão eucarístico nos sustenta na longa caminhada do deserto da vida, com suas lutas e suas experiências de fome e fraqueza. Estamos expostos à tentação de suprir por nós mesmos nossas supostas necessidades – como o diabo sugere a Jesus – quando a espera do tempo de Deus nos aparece insustentável (oração depois da comunhão).

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