Leituras:
Gênesis
2, 7-9.3.1-7;
Salmo 50 (51);
Carta de São Paulo aos Romanos 5, 12-19;
Mateus 4,
1-11.
COR LITÚRGICA: ROXA
Já iniciamos, desde
quarta-feira passada, o Tempo da Quaresma, que sempre traz a Campanha da
Fraternidade, para nos ajudar em nossa conversão. Neste ano de 2014, o tema é
“Fraternidade e Tráfico Humano”, com o lema: “É para a liberdade que Cristo nos
libertou (Gl 5, 1)”. Nesta páscoa semanal de Jesus somos convidados a refletir
sobre as tentações de Jesus e também as nossas. Jesus não cede às armadilhas do
diabo, porque Deus não se manifesta naquilo que mata a vida humana: a idolatria
do dinheiro, que desconsidera a vida por causa do lucro, que leva tantas
pessoas a sofrerem com o tráfico humano.
1. Situando-nos brevemente
É fascinante
e perturbadora a experiência que perpassa nosso interior todos os dias. Por um
lado, nos surpreende o estupor diante da consciência de sermos amados e
cuidados por Deus como seus filhos e filhas. O estupor se traduz em íntimo
chamado a responder com a simplicidade e a confiança de uma criança.
Por outro
lado, se infiltra uma sutil e atraente sugestão, insinuando o desejo de tomar
somente em nossas mãos o próprio destino. Olhar a os esmos como o exclusivo
ponto de referência, única garantia de nossa dignidade. Tornar-se
autossuficiente. Profunda laceração do coração: ficamos feridos, porém na
conseguimos escapar.
“Impenetrável
é o homem, seu coração é um abismo!” exclama o salmista (Sl 64,7). O apóstolo
Paulo, olhando sua sofrida experiência pessoal, grita: “Não faço o bem que
quero, mas faço o mal que não quero (...) Infeliz que eu sou! Quem me libertará
deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo, nosso
Senhor!” (Rm 7, 19.24-25).
Este primeiro
domingo da Quaresma nos coloca diante do mistério do bem e do mal que nos
habita, até as raízes mais profundas da nossa pessoa, e nos deixa vislumbrar a
saída desta contradição: queda de Adão/Eva diante tentador, no Jardim do Éden
(1ª leitura), e vitória de Cristo que derrota o diabo no deserto (evangelho) e
antecipa sua vitória final na cruz e ressurreição.
Cristo
Ressuscitado é o novo Adão que, no jardim da ressurreição, dá início a uma nova
humanidade, à qual nós pertencemos por graça, pelo Batismo, que nos faz
participar de sua morte e ressurreição.
Cada Quaresma
nos faz realizar, de maneira nova e mais profunda, esta passagem da sujeição ao
pecado para a vida nova em Cristo, participando de suas lutas e de sua vitória.
2. Recordando a Palavra
“Fizeste-nos
para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não repousa em ti” (S.
Agostinho, Confissões, Livr. 1,1; LH do 9º domingo do Tempo Comum). Santo
Agostinho interpreta a tensão vital que nos habita como um chamado constante a
voltar a Deus, mesmo quando, pelas ilusões da falsa liberdade, nos afastamos do
caminho certo. Atração para Deus, como a origem e fonte inesgotável de vida, e
tentação a nos colocarmos em alternativa a Ele é a sorte que nos acompanha.
A narração da
criação do ser humano proposta pela primeira leitura (Gn 2, 7-9; 3, 1-7), com
sua linguagem simbólica e altamente poética, destaca o cuidado carinhoso com o
qual Deus chama à existência o homem, o faz participe de sua mesma vida e
dignidade e seu parceiro no cuidado da beleza e da fecundidade da criação
inteira, que é “um jardim a ser cultivado”. No centro do jardim, como no centro
da existência humana, o Senhor faz brotar a “árvore da vida” e a “árvore do
conhecimento do bem e do mal” (Gn2,9).
Vida em abundância
e conhecimento na intimidade recíproca são os dons com que o Senhor enriquece a
existência e a missão de Adão e Eva. A cena encantadora, que apresenta o Senhor
“passeando à brisa da tarde no jardim”, à procura de Adão e Eva para deter-se
em amável conversa com eles, como com seus íntimos amigos (Gn 3,8), irradia
toda a beleza e o dinamismo da relação que o Senhor estabeleceu entre si mesmo
e o ser humano, ao criá-lo à sua imagem e semelhança (Gn 1,26).
O diabo, o
inimigo da vida, o atrapalhador que engana o homem com a ilusão da falsa
promessa e da perspectiva de tornar-se fonte totalmente da própria “nudez”, isto é, da radical
incapacidade de realizar, de verdade, tanto a vocação à autêntica dignidade e
liberdade como a missão de construir um mundo capaz de espelhar a beleza
divina: “Então os olhos de ambos se abriram, e, como reparassem que estavam nus,
teceram tangas para si com folhas de figueira” (Gn 3,7).
O Senhor,
porém, não abandona quem trai, fica fugindo e de se esconde. A narração do
pecado tem um seguimento de promessa e de esperança. A voz do Senhor, à procura
de seus amigos escondidos pela vergonha e o sentido de culpa, ao primeiro
ressoar no jardim – “Onde estás?” (Gn 3,9), - parece vibrar como uma ameaça. Na
verdade, ela prepara a promessa de resgate da armadilha da serpente enganadora:
“Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Esta te
ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).
A condição
que Adão e Eva terão que enfrentar “fora do jardim”, longe das próprias e autênticas
raízes, será amenizada pela luz desta promessa. A pergunta de Deus ao homem-
“Onde estás” – revelará plenamente seu carinhoso cuidado na voz cheia de
ternura com que Jesus ressuscitado falará a Maria Madalena no jardim da
ressurreição: “Maria!” (...) “Rabbuni!” (Jo 20,16).
O salmo
responsorial (Sl 50) é o salmo penitencial por excelência. Resume em si os
sentimentos mais profundos do pecado, do arrependimento, da conversão, da
alegria, do agradecimento pela vida renovada pela misericórdia e o perdão de
Deus. O caminho de pecado e de conversão do rei Davi se torna espelho do
caminho de toda pessoa que procura a Deus, a partir de sua fragilidade.
O salmo
exprime, com a máxima intensidade, a consciência da própria fragilidade inata e
do próprio pecado, e ao mesmo tempo, a confiança extrema no Senhor que por sua
misericórdia perdoa e tudo renova. “Ó Deus, tem piedade de mim (...) contra ti
eu pequei!”. “Reconheço a minha iniquidade e meu pecado está sempre diante de
mim”.
Tal humilde
reconhecimento do pecado não desanima, mas abre à confiança quem coloca no
Senhor a razão de sua vida. O perdão invocado é certeza de uma radical
transformação do coração, como graça de Deus: “Criai em mim, ó Deus, um coração
puro, renova em mim um espírito resoluto (...) Devolve-me a alegria de ser
salvo”.
O salmo
alimenta o caminho da conversão, a passagem para a vida nova da Páscoa, através
da purificação interior da Quaresma.
Na segunda leitura
(Rm 2, 12-19), Paulo desenvolve, em profundidade, a relação que Deus tem
estabelecido entre a aventura negativa de Adão e a resposta de obediência e de
amor, realizada por Cristo, “novo Adão”, início de uma humanidade nova.
O dom da
salvação em Cristo é bem maior do que o mal praticado pelo homem. Deus não se
deixa vencer em bondade e misericórdia. Pela fidelidade no amor e na obediência
filial de Cristo, o Pai derrama, gratuitamente e com abundância, a vida nova no
Espírito, e dela nós vivemos.
A transgressão
de um só levanta a multidão humana à morte, mas foi de modo bem superior que a
graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um homem, Jesus
Cristo, se derramou em abundância sobre todos (cf. Rm 5,15).
Cristo assume
sobre si nossa condição humana de pecado e com sua vida de dedicação filial,
sobretudo com sua páscoa, revira a situação, abrindo caminho para voltar ao
projeto original de Deus e realizá-lo em plenitude.
Evangelho Mateus 4,
1-11
Naquele tempo, 1o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 2Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome. 3Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!” 4Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’”.
5Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, 6e lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. 7Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’”
8Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, 9e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. 10Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’”. 11Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus.
5Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, 6e lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. 7Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’”
8Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, 9e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. 10Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’”. 11Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus.
O evangelho
(Mt 4, 1-11) narra que Jesus se apresenta entre os pecadores para ser batizado
por João e que, cheio do Espírito Santo, é conduzido por este mesmo Espírito a
enfrentar o diabo no “deserto”, lugar da esterilidade e da provação,
contraposto ao “jardim”, lugar da vida e da comunhão, no qual Deus tinha
colocado o homem, para que cuidasse e gozasse de sua beleza e fecundidade.
O deserto,
como o jardim do primeiro Éden, não é simplesmente um lugar geográfico, mas
indica a sofrida situação existencial do homem “desertificada”, como repetia
Bento XVI, ao descrever a condição do homem pós-moderno, fechado em si mesmo e
interiormente corroído pela pretensão de ser o centro do mundo, sem relação com
Deus e em competição com os outros (cf. Homilia na Santa Missa da abertura do
Ano da Fé. 11/10/2012).
Jesus penetra
dentro deste deserto, conduzido pelo espírito, para partilhar a dura condição
humana e vencer, com o amor e a obediência, o poder obscuro do maligno. “A
Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jô 1,14). Com a três tentações, o
tentador procura afastar Jesus do projeto do Pai. Propõe-lhe o caminho do
sucesso obtido com o milagre fácil (mudar as pedras em pão para satisfazer a
fome), com gestos que produzem prestígio espetacular e fácil consenso (jogar-se
do templo diante do povo), prometendo-o com o poder (adorando o poder).
Eis as
tentações que, em formas variadas, cada um, continua a enfrentar ao longo da
vida. A Igreja não fica imune a isto, nem no nosso tempo, como, com vigor,
destaca frequentemente o Papa Francisco.
Jesus, no
entanto, animado pelo Espírito, rejeita com a força da Palavra de Deus, as
seduções e manifesta sua verdadeira condição de Filho de Deus, assumindo até as
extremas conseqüências a escolha da humildade e da dedicação ao Pai.
Jesus, “novo
Adão”, com a luta no deserto, reestabelece a verdadeira relação da obediência
no amor com o Pai, que o “primeiro Adão”, no Éden, não soube guardar e
valorizar. Jesus, com sua luta de quarenta dias e sua vitória, vence as
provações que Israel, em sua peregrinação de quarenta anos nos desertos, não
tinha conseguido superar, abandonando-se à murmuração contra Deus e à
idolatria.
3. Atualizando a Palavra
O caminho dos
discípulos, em todos os tempos, é o mesmo de Jesus. Somente seguindo Jesus, se pode lutar, com
êxito, contra o egocentrismo e a procura de falso sucesso, quer na vida
pessoal, quer no exercício dos ministérios na Igreja, e chegar à intimidade do
jardim da ressurreição. A Quaresma nos indica o caminho certo e suas etapas.
O Batismo nos
introduz no caminho do próprio Jesus, nos faz participar da mesma ação do
Espírito que o conduziu e sustentou na luta com o diabo no deserto e na vitória
sobre a morte na ressurreição. Animados pelo Espírito, temos a graça de viver
com a liberdade dos filhos e filhas de Deus. Temos a graça, como diz Paulo, de
viver como já “ressuscitados” (cf. Cl 3, 1-4), como partícipes da vida nova em
Cristo, não mais permitindo que o pecado determine nossa maneira de sentir, de
pensar, de agir.
Com a fé e o
Batismo, passamos por uma transformação radical, que nos acompanha por toda a
vida. A vida nova no Espírito Santo é semente que nos impele desde dentro, cujo
crescimento nós devemos favorecer. A graça não é magia, nem o desenvolvimento
das suas potencialidades é algo de automático. Cada dia o Senhor solicita nossa
disponibilidade no amor e nosso compromisso de obediência filial.
A vida do
discípulo irradia a luz e a fecundidade da Páscoa ao mesmo tempo em que
continua a luta contra as contradições do pecado que sobem do coração, até que
seja reconstituído, em sua integridade, como o da criança.
O “homem
velho” e o “homem novo” ainda convivem dentro de nós, e, às vezes, num conflito
que nos dilacera. Nossa salvação afirma Paulo, é ainda objeto de esperança e de
luta (cf. Rm 8, 24). Temos ainda a necessidade de cultivar a dinâmica de
conversão e penitência, enquanto vivemos da energia vital e da luminosidade da
Páscoa.
Com sábia
pedagogia, cada ano a Igreja nos oferece novamente a luz da Páscoa e a sóbria
alegria da Quaresma, com suas exigências de penitência e conversão.
O tempo da
Quaresma se apresenta como o tempo mais propício para celebrar a purificação do
coração e fortalecer a caridade. Mediante várias formas de ascese e de oração
íntima, de maneira especial com a celebração do sacramento da Reconciliação, em
forma individual ou comunitária.
4. Ligando a Palavra com ação litúrgica
A celebração
da Eucaristia nos oferece a graça de celebrar a vida como um caminho partilhado
em comunidade. Ela nos tira da solidão de nossos vários desertos, pelos quais
ficamos prisioneiros de nós mesmos, por presunção ou por medo.
A ilusão de
se tornar protagonista absoluto do próprio destino, na qual caiu o primeiro
homem, deixa na Eucaristia lugar para o reconhecimento que a vida recebe sua
energia e sua fecundidade da relação com Cristo, obediente e livre até o dom da
própria vida, e da relação de amor para com os irmãos.
O original
diálogo de amizade e de festa entre o Senhor e o homem no Éden acabou com o
homem tornando-se surdo e mudo, se escondendo de Deus e de si próprio. A Eucaristia,
pela união com Cristo, nos dá a ousadia de nos apresentarmos na casa do Pai,
com humildade e confiança.
Pedimos
perdoa, repetidas vezes, desde o inicio da celebração até ao momento de nos
aproximarmos à mesa do corpo e do sangue de Cristo. O sentido penitencial se
desdobra do ato penitencial, ao início, até a proclamação de fé: “Senhor, eu
não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei
salvo”.
A presunção
de nos auto-orientarmos na vida, sem relação com o Senhor, cede lugar à humilde
invocação para que a Quaresma nos ajude a “progredir no conhecimento de Jesus
Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa” (oração do dia).
A
participação na dupla mesa da Palavra de Deus e do pão eucarístico nos sustenta
na longa caminhada do deserto da vida, com suas lutas e suas experiências de
fome e fraqueza. Estamos expostos à tentação de suprir por nós mesmos nossas
supostas necessidades – como o diabo sugere a Jesus – quando a espera do tempo
de Deus nos aparece insustentável (oração depois da comunhão).
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