A liturgia deste 3º domingo do tempo pascal recorda-nos que a comunidade
cristã tem por missão testemunhar e concretizar o projeto libertador que Jesus
iniciou; e que Jesus, vivo e ressuscitado, acompanhará sempre a sua Igreja em missão,
vivificando-a com a sua presença e orientando-a com a sua Palavra.
A primeira leitura apresenta-nos o testemunho que a comunidade de
Jerusalém dá de Jesus ressuscitado. Embora o mundo se oponha ao projeto
libertador de Jesus testemunhado pelos discípulos, o cristão deve antes
obedecer a Deus do que aos homens.
A segunda leitura apresenta Jesus, o “cordeiro” imolado que venceu a
morte e que trouxe aos homens a libertação definitiva; em contexto litúrgico, o
autor põe a criação inteira a manifestar diante do “cordeiro” vitorioso a sua
alegria e o seu louvor.
O Evangelho apresenta os discípulos em missão, continuando o projeto
libertador de Jesus; mas avisa que a ação dos discípulos só será coroada de
êxito se eles souberem reconhecer o Ressuscitado junto deles e se deixarem
guiar pela sua Palavra.
1ª leitura: Atos 5,27b-32.40b-41 - AMBIENTE
Entre 2,1 e 8,3, o Livro dos Atos apresenta o testemunho da Igreja de
Jerusalém acerca de Jesus. Os comentadores costumam chamar aos capítulos 3-5 a
“secção do nome”, pois eles incidem no anúncio do “nome” de Jesus (cf. At.
3,6.16;4,7.10.12.30;5,28.41), isto é, do próprio Jesus (o “nome” era uma
apelação com que os judeus designavam o próprio Deus; designar Jesus dessa
forma equivalia a dizer que Ele era “o Senhor”). Esse anúncio, feito em
condições de extrema dificuldade (por causa da oposição dos líderes judeus), é,
sobretudo, obra dos apóstolos.
No texto que nos é proposto, apresenta-se o testemunho de Pedro e dos
outros apóstolos acerca de Jesus. Presos e miraculosamente libertados (cf. Act
5,17-19), os apóstolos voltaram ao Templo para dar testemunho de Cristo
ressuscitado (cf. Act 5,20-25). De novo presos, conduzidos à presença da
suprema autoridade religiosa da nação (o Sinédrio) e formalmente proibidos de
dar testemunho de Jesus, os apóstolos responderam apresentando um resumo do
kerigma primitivo.
MENSAGEM
A questão principal gira à volta do confronto entre o cristianismo
nascente e as autoridades judaicas. A frase de Pedro “deve obedecer-se antes a
Deus do que aos homens” (v. 29) deve ser vista como o tema central; define a
atitude que os cristãos são convidados a assumir diante da oposição do mundo.
Quanto ao resumo doutrinal dos vs. 30-32, ele não apresenta grandes
novidades doutrinais em relação a outras formulações do kerigma primitivo
acerca de Jesus (apresentado de forma mais desenvolvida em At. 2,17-36, 3,13-26
e 10,36-43): morte na cruz, ressurreição, exaltação à direita de Deus, a sua
apresentação como salvador e o testemunho dos apóstolos por ação do Espírito.
Neste contexto, apenas se acentua – mais do que noutras formulações – a
responsabilidade do Sinédrio no escândalo da cruz e a contraposição entre a
ação de Deus e a ação das autoridades judaicas em relação a Jesus.
De resto, a oposição humana põe em relevo a realidade sobre-humana da
mensagem, a sua força que não pode ser detida e o dinamismo dessa comunidade
animada pelo Espírito. Se Jesus encontrou oponentes e morreu na cruz, é natural
que os apóstolos, fiéis a Jesus e ao seu projeto, se defrontem com a oposição
desses mesmos que mataram Jesus. No entanto, os verdadeiros seguidores do
projeto de Jesus – animados pelo Espírito – estão mais preocupados com a
fidelidade ao “caminho” de Jesus do que às ordens ou interesses dos homens –
mesmo que sejam os que mandam no mundo.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e atualizar a Palavra, considerar os seguintes dados:
• A proposta de Jesus é uma proposta libertadora, que não se compadece
nem pactua com esquemas egoístas, injustos, opressores. É uma mensagem
questionante, transformadora, revolucionária, que põe em causa tudo o que gera
injustiça, morte, opressão; por isso, é uma proposta que é rejeitada e
combatida por aqueles que dominam o mundo e que oprimem os débeis e os pobres.
Isto explica bem porque é que o testemunho sobre Jesus (se é coerente e
verdadeiro) não é um caminho fácil de glória, de aplausos, de honras, de
popularidade, mas um caminho de cruz. Não temos, portanto, que nos admirar se a
mensagem que propomos e o testemunho que damos não encontram eco entre os que
dominam o mundo; temos é de nos questionar e de nos inquietar se não somos
importunados por aqueles que oprimem e que escravizam os irmãos: isso quererá
dizer que o nosso testemunho não é coerente com a proposta de Jesus.
• Qual a nossa atitude, em concreto, diante daqueles que “assassinam” a
proposta de Jesus e que constroem um mundo de onde a lógica de Deus está
ausente: é de medo, de fraqueza, de submissão, ou de denúncia firme, corajosa e
desassombrada? Para nós, o que é mais importante: obedecer a Deus ou aos
homens?
2ª leitura: Ap. 5,11-14 - AMBIENTE
A segunda parte do Livro do Apocalipse (cap. 4-22) apresenta-nos aquilo
que poderíamos chamar “uma leitura profética da história”: o autor vai
apresentar a história humana numa perspectiva de esperança, demonstrando aos
cristãos perseguidos pelo império que não há nada a temer pois a vitória final
será de Deus e dos que se mantiverem fiéis aos projetos de Deus.
O texto que nos é proposto faz parte da visão inicial, onde o “profeta”
João nos apresenta as personagens centrais que vão intervir na história humana:
Deus, transcendente e onipotente, sentado no seu trono, rodeado pelo Povo de
Deus e por toda a criação (cf. Ap. 4,1-11); depois, o “livro” onde,
simbolicamente, está o desígnio de Deus acerca da humanidade (cf. Ap. 5,1-4);
finalmente, é-nos apresentado “o cordeiro” (Jesus), aquele que detém a
totalidade do poder (“sete cornos”) e do conhecimento (“sete olhos”); só ele é
digno de ler o livro (ou seja, de revelar, de proclamar, de concretizar para os
homens o projeto divino de salvação).
MENSAGEM
A personagem fundamental deste pequeno extrato que nos é proposto como
segunda leitura é “o cordeiro”. É um símbolo usado pelo autor do Livro do
Apocalipse para falar de Jesus.
O símbolo do “cordeiro” é um símbolo com uma grande densidade teológica,
que concentra e evoca três figuras: a do “servo de Jahwéh” – figura de imolação
– que, qual manso cordeiro é levado ao matadouro (Is. 53,6-7; cf. Jr. 11,19;
At. 8,26-38); a do “cordeiro pascal” – figura de libertação – cujo sangue foi
sinal eficaz de vitória sobre a escravidão (Ex. 12,12-13.27;24,8; cf. Jo 1,29;
1Cor. 5,7; 1Pe. 1,18-19); e a do “cordeiro apocalíptico” – figura de poder real
– vencedor da morte (esta imagem é característica da literatura apocalíptica,
onde aparece um cordeiro vencedor, guia do rebanho, dotado de poder e de
autoridade real – cf. 1º livro de Henoc, 89,41-46; 90,6-10.37; Testamento de
José, 19,8; Testamento de Benjamim, 3,8; Targum de Jerusalém sobre Ex. 1,5). O
autor do Apocalipse apresenta, portanto, de uma maneira original e sintética, a
plenitude do mistério de imolação, de libertação e de vitória régia, que
corresponde a Cristo morto, ressuscitado e glorificado.
O “cordeiro” (Cristo) é entronizado: ele assumiu a realeza e sentou-se
no próprio trono de Deus. Aí, recebe todo o poder e glória divina. A
entronização régia de Cristo, ponto culminante da aventura divino-humana de
Jesus, desencadeia uma verdadeira torrente de louvores: dos viventes, dos
anciãos (vs. 5-8) e dos anjos (vs. 11-12). E todas as criaturas (v. 13), a
partir dos lugares mais esconsos da terra, juntam a sua voz ao louvor. O Templo
onde ressoam estas incessantes aclamações alargou as suas fronteiras e tem,
agora, as dimensões do mundo. É uma liturgia cósmica, na qual a criação inteira
celebra o Cristo imolado, ressuscitado, vencedor e faz dele o centro do
“cosmos”.
ATUALIZAÇÃO
• A mensagem final do Livro do Apocalipse pode resumir-se na frase: “não
tenhais medo, pois a vossa libertação está a chegar”. É uma mensagem “eterna”,
que revigora a nossa fé, que renova a nossa esperança e que fortalece a nossa
capacidade de enfrentar a injustiça, o egoísmo, o sofrimento e o pecado. Diante
deste “cordeiro” vencedor, que nos trouxe a libertação, os cristãos vêem
renovada a sua confiança nesse Deus salvador e libertador em quem acreditam.
• Esta “liturgia” celebra Cristo, aquele que venceu a morte, que
ressuscitou, que nos apresentou o plano libertador de Deus em nosso favor e
que, hoje, continua a dar sentido aos nossos dramas e aos nossos sofrimentos, a
iluminar a história humana com a luz de Deus. Ele é, de fato (como esta
liturgia no-lo apresenta), o centro, a referência fundamental à volta do qual
tudo se constrói? Temos consciência desta centralidade de Cristo na nossa experiência
de fé? Manifestamos a nossa gratidão, unindo a nossa voz ao louvor da criação
inteira?
Evangelho: Jo 21,1-19 - AMBIENTE
O último capítulo do Evangelho segundo João não faz parte da obra
original (a obra original terminava com a conclusão de 20,30-31); é um texto
acrescentado posteriormente, que apresenta diferenças de linguagem, de estilo e
mesmo de teologia, em relação aos outros vinte capítulos. A sua origem não é
clara; no entanto, a existência de alguns traços literários tipicamente
joânicos poderia fazer-nos pensar num complemento redigido pelos discípulos do
evangelista.
Neste capítulo, já não se referem notícias sobre a vida, a morte ou a
ressurreição de Jesus. Os protagonistas são, agora, um grupo de discípulos,
dedicados à atividade missionária. O autor descreve a relação que esta
“comunidade em missão” tem com Jesus, reflete sobre o lugar de Jesus na
atividade missionária da Igreja e assinala quais as condições para que a missão
dê frutos.
MENSAGEM
O texto está claramente dividido em duas partes.
A primeira parte (vs. 1-14) é uma parábola sobre a missão da comunidade.
Utiliza a linguagem simbólica e tem caráter de “signo”.
Começa por apresentar os discípulos: são sete. Representam a totalidade
(“sete”) da Igreja, empenhada na missão e aberta a todas as nações e a todos os
povos.
Esta comunidade é apresentada a pescar: sob a imagem da pesca, os
evangelhos sinópticos representam a missão que Jesus confia aos discípulos (cf.
Mc. 1,17; Mt. 4,19; Lc. 5,10): libertar todos os homens que vivem mergulhados
no mar do sofrimento e da escravidão. Pedro preside à missão: é ele que toma a
iniciativa; os outros seguem-no incondicionalmente. Aqui faz-se referência ao
lugar proeminente que Pedro ocupava na animação da Igreja primitiva.
A pesca é feita durante a noite. A noite é o tempo das trevas, da
escuridão: significa a ausência de Jesus (“enquanto é de dia, temos de
trabalhar, realizando as obras daquele que Me enviou: aproxima-se a noite,
quando ninguém pode trabalhar; enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo”
– Jo 9,4-5). O resultado da ação dos discípulos (de noite, sem Jesus) é um
fracasso rotundo (“sem Mim, nada podeis fazer” – Jo 15,5).
A chegada da manhã (da luz) coincide com a presença de Jesus (Ele é a
luz do mundo). Jesus não está com eles no barco, mas sim em terra: Ele não
acompanha os discípulos na pesca; a sua ação no mundo exerce-se por meio dos
discípulos.
Concentrados no seu esforço inútil, os discípulos nem reconhecem Jesus
quando Ele Se apresenta. O grupo está desorientado e decepcionado pelo
fracasso, posto em evidência pela pergunta de Jesus (“tendes alguma coisa de
comer?”). Mas Jesus dá-lhes indicações e as redes enchem-se de peixes: o fruto
deve-se à docilidade com que os discípulos seguem as indicações de Jesus.
Acentua-se que o êxito da missão não se deve ao esforço humano, mas sim à
presença viva e à Palavra do Senhor ressuscitado.
O surpreendente resultado da pesca faz com que um discípulo o reconheça.
Este discípulo – o discípulo amado – é aquele que está sempre próximo de Jesus,
em sintonia com Jesus e que faz, de forma intensa, a experiência do amor de
Jesus: só quem faz essa experiência é capaz de ler os sinais que identificam
Jesus e perceber a sua presença por detrás da vida que brota da ação da
comunidade em missão.
Os pães com que Jesus acolhe os discípulos em terra são um sinal do
amor, do serviço, da solicitude de Jesus pela sua comunidade em missão no
mundo: deve haver aqui uma alusão à Eucaristia, ao pão que Jesus oferece, à
vida com que Ele continua a alimentar a comunidade em missão.
O número dos peixes apanhados na rede (153) é de difícil explicação. É
um número triangular, que resulta da soma dos números um a dezessete. O número
dezessete não é um número bíblico… Mas o dez e o sete são: ambos simbolizam a
plenitude e a universalidade. Outra explicação é dada por são Jerônimo… Segundo
ele, os naturalistas antigos distinguiam 153 espécies de peixes: assim, o
número faria alusão à totalidade da humanidade, reunida na mesma Igreja. Em
qualquer caso, significa totalidade e universalidade.
Na segunda parte do texto (vs. 15-19), Pedro confessa por três vezes o
seu amor a Jesus (durante a paixão, o mesmo discípulo negou Jesus por três
vezes, recusando dessa forma “embarcar” com o “mestre” na aventura do amor que
se faz dom). Pedro – recordemo-lo – foi o discípulo que, na última ceia,
recusou que Jesus lhe lavasse os pés porque, para ele, o Messias devia ser um
rei poderoso, dominador, e não um rei de serviço e de dom da vida. Nessa
altura, ao raciocinar em termos de superioridade e de autoridade, Pedro mostrou
que ainda não percebera que a lei suprema da comunidade de Jesus é o amor
total, o amor que se faz serviço e que vai até à entrega da vida. Jesus disse
claramente a Pedro que quem tem uma mentalidade de domínio e de autoridade não
tem lugar na comunidade cristã (cf. Jo 13,6-9).
A tríplice confissão de amor pedida a Pedro por Jesus corresponde,
portanto, a um convite a que ele mude definitivamente a mentalidade. Pedro é
convidado a perceber que, na comunidade de Jesus, o valor fundamental é o amor;
não existe verdadeira adesão a Jesus, se não se estiver disposto a seguir esse
caminho de amor e de entrega da vida que Jesus percorreu. Só assim Pedro poderá
“seguir” Jesus (cf. Jo 21,19).
Ao mesmo tempo, Jesus confia a Pedro a missão de presidir à comunidade e
de a animar; mas convida-o também a perceber onde é que reside, na comunidade
cristã, a verdadeira fonte da autoridade: só quem ama muito e aceita a lógica
do serviço e da doação da vida poderá presidir à comunidade de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
• A mensagem fundamental que brota deste texto convida-nos a constatar a
centralidade de Cristo, vivo e ressuscitado, na missão que nos foi confiada.
Podemos esforçar-nos imenso e dedicar todas as horas do dia ao esforço de mudar
o mundo; mas se Cristo não estiver presente, se não escutarmos a sua voz, se
não ouvirmos as suas propostas, se não estivermos atentos à Palavra que Ele
continuamente nos dirige, os nossos esforços não farão qualquer sentido e não
terão qualquer êxito duradouro. É preciso ter a consciência nítida de que o
êxito da missão cristã não depende do esforço humano, mas da presença viva do
Senhor Jesus.
• É preciso ter, também, a consciência da solicitude e do amor do Senhor
que, continuamente, acompanha os nossos esforços, os anima, os orienta e que
conosco reparte o pão da vida. Quando o cansaço, o sofrimento, o desânimo
tomarem posse de nós, Ele lá estará, dando-nos o alimento que nos fortalece. É
necessário ter consciência da sua constante presença, amorosa e vivificadora ao
nosso lado e celebrá-la na Eucaristia.
• A figura do “discípulo amado”, que reconhece o Senhor nos sinais de
vitalidade que brotam da missão comunitária, convida-nos a ser sensíveis aos
sinais de esperança e de vida nova que acontecem à nossa volta e a ler neles a
presença salvadora e vivificadora do Ressuscitado. Ele está presente, vivo e
ressuscitado, em qualquer lado onde houver amor, partilha, doação que geram
vida nova.
• O diálogo final de Jesus com Pedro chama a atenção para uma dimensão
essencial do discipulado: “seguir” o “mestre” é amá-l’O muito e, portanto, ser
capaz de, como Ele, percorrer o caminho do amor total e da doação da vida.
• Na comunidade cristã, o essencial não é a exibição da autoridade, mas
o amor que se faz serviço, ao jeito de Jesus. As vestes de púrpura, os tronos,
os privilégios, as dignidades, os sinais de poder favorecem e tornam mais
visível o essencial (o amor que se faz serviço), ou afastam e assustam os
pobres e os débeis?
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário