Dom Estevão Bettencourt (OSB)
«Como
pode o Pai do Céu, que é infinitamente bom, condenar o homem a um
inferno eterno, quando os pais na terra não castigam seus filhos com
punições sem fim ? Certamente Deus há de perdoar aos pecadores que se
acham no inferno».
A dificuldade acima provém de
uma concepção errônea do inferno: supõe, seja este um castigo que Deus
na hora do juízo concebe mais ou menos arbitrariamente para atormentar a
criatura; em tal caso, a sentença divina poderia ser reformada ou até
cancelada por anistia, à semelhança do que se dá nos tribunais humanos…
Na verdade, a condenação ao
inferno não depende propriamente de um veredito divino pronunciado após a
morte do pecador; é, antes, a
consequência muito lógica de certos princípios que caracterizam a
existência do ser humano, de modo que se pode dizer que, anteriormente a
uma sentença divina positiva, já o pecador lavrou sua sorte infernal;
não é preciso que Deus tome alguma deliberação especial para que o
inferno se torne realidade para o pecador.
É o que vamos recordar sumariamente, remetendo o leitor para quanto já foi dito sobre o inferno em «P. R. 3/1957. qu. 5.
1. Todo homem traz em si uma
aspiração inata e incoercível ao Bem Infinito, que é Deus (todos querem
ser bem- aventurados sem que possam assinalar limites a essa sua sede de
bem-aventurança).
2. Para conseguir a felicidade a que aspiram, Deus outorgou às criaturas humanas o livre arbítrio. Este lhes confere dignidade própria, fazendo que se movam, e não sejam simplesmente movidas, em demanda do Fim Supremo.
3. Se o homem, utilizando
devidamente a sua liberdade de arbítrio, adere ao infinito ou a Deus,
compreende-se que esta atitude se lhe torne fonte de alegria e
felicidade imensas; pois então convergem para o mesmo objetivo as
aspirações inatas de sua natureza humana e a opção consciente da vontade
livre.
4. Admita-se, porém, que a criatura humana livremente preste adesão, e adesão total, a um bem criado (dinheiro, gozo, fama…), afastando-se conscientemente de Deus…
De tal atitude não pode deixar de resultar tremendo dualismo ou penosa dilaceração dentro da alma humana; a sua natureza, feita para o Bem Infinito, continua a bradar por Deus, enquanto a vontade adere a um bem finito.
Convém aqui lembrar que a adesão a um bem finito capaz de provocar tal dilaceração é chamada «pecado mortal», o qual só se dá quando as três seguintes condições são simultaneamente preenchidas:
a) haja matéria grave,
b) haja pleno conhecimento de causa (ato da inteligência),
c) haja vontade deliberada e consciente de aderir ao bem finito.
Caso estas três condições sejam
preenchidas, toda a personalidade humana (por suas faculdades
características: o intelecto e a vontade) está empenhada.
5. Enquanto o pecador é
peregrino neste mundo, pode mitigar o drama que ele traz em seu íntimo:
ocupando-se com as tarefas e as diversões da vida cotidiana, vai
encobrindo aos seus próprios olhos a dura realidade de sua alma, e
esquece, ao menos parcialmente, a dilaceração de sua personalidade.
6. Suponha-se, porém, que tal
indivíduo venha a morrer nessa situação: sua alma se separa do corpo e
deixa de usufruir, da parte das criaturas sensíveis, os paliativos que a
consolavam neste mundo.
A consequência será clara: tal
alma continuará a trazer dentro de si o desejo profundo e espontâneo de
se saciar no Bem infinito; tal desejo está impregnado na natureza humana
e é incoercível; nenhuma criatura humana pode ser concebida sem essa
aspiração ou sem esse sinete característico. A mesma alma, porém, tomará
consciência clara da monstruosidade de seu estado: sim, verificará que a
sua vontade livre terá dirigido toda a personalidade do indivíduo para
um bem limitado e lacunoso, incapaz de a satisfazer; ao finito terá dado
a adesão que devia ter prestado ao infinito. E não lhe será possível
«esquecer» essa situação, pois não terá em torno de si algum dos objetos
sensíveis que lhe serviam de paliativo neste mundo.
Daí redunda a mais profunda
dilaceração de que seja capaz a criatura: de um lado, haverá o brado
espontâneo da natureza, anterior a qualquer deliberação, brado voltado
para Deus, o Infinito; do outro lado, existirá deliberada entrega da
vontade a uma criatura, ao finito; estes dois clamores estarão em luta
entre si, dividindo ou retorcendo (por assim dizer) a alma.
7. Tal é o estado em que, logo
após a morte, entra naturalmente a alma de quem tenha pecado gravemente.
Vê-se então como, antes mesmo que Deus profira alguma sentença sobre
ela, essa alma já traz dentro de si o inferno, ou o maior tormento
possível. O juízo póstumo que o Senhor formula a seu respeito, não vem a ser senão o reconhecimento de tal situação; nada de novo induz na sorte que tal alma ocasionou para si.
Mas porque é que o Senhor reconhece e não muda essa ordem de coisas vigente na alma do réu ?
O Senhor não a muda, porque só o faria forçando ou violentando a livre deliberação da criatura.
Ora Deus, que dotou de personalidade livre o ser humano, não lhe retira
a dignidade assim outorgada; antes, respeita-a plenamente.
Seja lícito lembrar de novo o seguinte: todo
pecado grave supõe, da parte do homem, claro conhecimento do mal e
pleno desejo de o cometer; supõe, portanto, uma tomada de posição
consciente e livre de toda a personalidade humana frente à mais séria
das questões, que é a questão do Fim Último. Não se poderá, por
conseguinte, tachar de pecado mortal qualquer ação que tenha aspecto de
culpa grave, pois nenhum observador humano é capaz de penetrar o íntimo
das consciências para lá discernir as possíveis atenuantes da
culpabilidade. Não nos é lícito, por conseguinte, em caso algum supor ou
afirmar que determinada pessoa está no inferno. Se
a justiça humana leva em conta os estados de obsessão e diminuída
responsabilidade dos criminosos, muito mais a Justiça Divina os
considera, de modo que ninguém padece a triste sorte do inferno sem
realmente se ter encaminhado para ela.
8. Contudo talvez insista alguém: afinal, Deus, que é sumamente misericordioso, não poderia perdoar ?
— Sim ; Deus poderia perdoar, e de fato, perdoa às suas criaturas, desde que, da parte destas, uma condição se verifique: haja repúdio do pecado ou arrependimento; em caso contrário, isto é, se a criatura não o quer receber, vão se torna o perdão. Ora
acontece justamente que nenhuma das almas que morrem em pecado mortal
e, por conseguinte, nenhum dos réprobos do inferno se quer arrepender e
voltar para Deus, por muito tormentosa que seja a sua situação.
Com efeito, a alma só muda de disposições ou se arrepende quando unida
ao corpo; é só mediante a atividade dos sentidos externos e internos que
ela pode conceber novos conhecimentos e desejos; por conseguinte, quando se separa do corpo ou dos sentidos, a alma humana se fixa irrevogavelmente na última disposição que teve durante esta vida (amor ou ódio a Deus).
O pecador, portanto, que morra com aversão a Deus e apego apaixonado à
criatura, para o futuro sentirá, de um lado, a tremenda dilaceração que
este afeto acarreta, mas, de outro lado, não desejará em absoluto voltar
para Deus, desfazendo-se do seu amor desregrado ao finito; não o
desejando, está claro que o Senhor não o forçará.
Vê-se assim algo de aparentemente paradoxal, mas sumamente verídico e significativo:
não há quem esteja no inferno e daí queira sair; os réprobos sofrem,
mas não querem abandonar o estado que lhes motiva o sofrimento. Se algum
deles pedisse perdão, Deus não lho negaria.
Esta afirmação é ilustrada pela parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32).
Não há dúvida, tal trecho do S. Evangelho visa incutir a suma confiança
em Deus cuja misericórdia surpreende a expectativa humana; o Senhor
perdoa ultrapassando todas as categorias da benevolência humana. Contudo
a parábola bem mostra que esse perdão só é outorgado à criatura que,
cheia de arrependimento o deseje e peça: «Pai, pequei contra o céu e
contra Ti; já não sou digno de ser chamado teu filho» (Lc 15,18),
exclamou o herói da narrativa. Ora foi justamente o fato de se ter
reconhecido indigno que lhe mereceu ser recebido como filho bem-amado!…
Oxalá os homens que se afastam de Deus, procedessem até as últimas
instâncias como o filho pródigo! Então seriam sempre tratados como este…
9. Deve-se observar outrossim
que o estado aflitivo do réprobo não tem fim, porque a alma humana é,
por sua natureza, imortal (não consta de partes que se desgastem e
decomponham); cf. «P.R.» 2/1957, qu. 5.
Deus poderia, a rigor,
aniquilar as criaturas que estão no inferno. Ele não o faz, porém, pois a
existência desses seres tem seu sentido no conjunto do universo. Note-se bem que o centro ou o ponto de referência de todas as criaturas não é o homem, mas Deus;
todas as criaturas são chamadas a dar glória a Deus; portanto, desde
que realizem esta finalidade, sua existência tem valor no grande quadro
do universo. Ora o pecador
sofre no inferno justamente porque reconhece que Deus é sumamente bom e
que ele voluntàriamente se incompatibilizou com o Sumo Bem (se não
reconhecesse a Bondade de Deus, o réprobo não sofreria). Vê-se então que
o tormento mesmo do pecador é proclamação da perfeição e da santidade
de Deus; destarte a existência do réprobo não é vã, mas preenche sua
finalidade primária e suprema.
A modalidade de que essa existência, para o respectivo sujeito, é infeliz, torna-se secundária; Deus fez o homem para ser, e ser sempre (claro está que… à semelhança do Exemplar Divino, o qual é sempre feliz) ; a modalidade de ser feliz, porém, Deus a quis tornar dependente da livre opção do homem; este a pode frustrar. Contudo, o bem fundamental que é o ser, existir,
Deus o quis tomar a seus exclusivos cuidados; o Criador o dá
irrevogàvelmente; não o retira, mesmo que o homem não cumpra a sua
parte, abusando do dom do Benfeitor. O homem, por conseguinte, existirá sempre, como Deus planejou bondosamente, mesmo que, em consequência de uma livre opção sua, não exista feliz. Sua existência, mesmo nessas circunstâncias, não carecerá de significado e valor.
10. Talvez ainda nos aflore à mente uma última dúvida:
Deus, sabendo que tal ou tal criatura se perderia no inferno, não
poderia ter deixado de a criar? Não deveria ter feito apenas criaturas
que usassem da sua liberdade para o bem?
Reflitamos um pouco sobre o
valor dessa «sedutora» solução do problema. «Liberdade» diz, por seu
conceito mesmo, variedade e multiplicidade de realizações; é natural,
portanto, que a liberdade humana se afirme na história com essa
multiplicidade de formas que a caracterizam; se tal variedade não se
verifica, tem-se estranha liberdade, … liberdade artificialmente
canalizada numa só direção; ora, isto não sendo normal, não se poderia
pretender que Deus procedesse assim. O essencial é que nenhuma das
criaturas livres, mesmo usando plenamente da sua liberdade, deixe de ser
uma expressão da santidade do Criador; ora isto se verifica também nos
réprobos, os quais, por todo o seu ser, no inferno, proclamam a
Perfeição e, em particular, a Bondade do Criador.
O Senhor não criou seres livres
que artificialmente só optassem por um alvitre, como também não criou
flores de papel, mas criou flores naturais; é somente o homem que, não
podendo produzir flores naturais, fabrica flores artificiais, flores que
não murcham,… mas flores que parecem ser flores, quando, na verdade,
não o são!
11. Outras questões atinentes ao inferno já foram abordadas em «P. R.» 3/1957,
qu. 5. O que interessava, na presente questão, era mostrar que o
inferno nada tem de arbitrário da parte de Deus; não é um castigo que o
Criador estipule atendendo a um código de penas e sanções, à semelhança
do que se dá na justiça humana, código naturalmente reformável… O
inferno, em verdade, não é senão a última consequência da violação dos
princípios que definem a estrutura do ser humano: quem voluntariamente
ingere veneno, morre, simplesmente porque contradisse as leis que regem a
vida física do homem…
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