A
liturgia deste domingo leva-nos a refletir sobre a nossa vocação: somos todos
chamados por Deus e d’Ele recebemos uma missão para o
mundo.
Na
primeira leitura, encontramos a descrição plástica do chamamento de um profeta –
Isaías. De uma forma simples e questionadora, apresenta-se o modelo de um homem
que é sensível aos apelos de Deus e que tem a coragem de aceitar ser
enviado.
No
Evangelho, Lucas apresenta um grupo de discípulos que partilharam a barca com
Jesus, que acolheram as propostas de Jesus, que souberam reconhecê-l’O como seu
“Senhor”, que aceitaram o convite para ser “pescadores de homens” e que deixaram
tudo para seguir Jesus… Neste quadro, reconhecemos o caminho que os cristãos são
chamados a percorrer.
A
segunda leitura propõe-nos refletir sobre a ressurreição: trata-se de uma
realidade que deve dar forma à vida do discípulo e levá-lo a enfrentar sem medo
as forças da injustiça e da morte. Com a sua ação libertadora – que continua a
ação de Jesus e que renova os homens e o mundo – o discípulo sabe que está a dar
testemunho da ressurreição de Cristo.
1ª
leitura – Is. 6,1-2a.3-8 - AMBIENTE
Estamos
em Jerusalém, por volta de 740/739 a.C.. Isaías tem, então, à volta de vinte
anos. Enquanto está no Templo em oração, descobre que Deus o chama a ser
profeta. O texto de hoje relata-nos essa descoberta e a resposta de Isaías. No
entanto, este relato não deve ser visto como uma reportagem jornalística de
acontecimentos, mas sim como uma apresentação teológica de uma experiência
interior de vocação.
Os
pormenores folclóricos – o trono alto e sublime em que o Senhor Se senta, o seu
manto que enche o Templo, os “serafins” com seis asas que voam sem cessar à
volta e que cobrem a face e os pés, o oscilar das portas nos seus gonzos, o fumo
– são elementos simbólicos com que o profeta desenha a grandeza, a onipotência e
a magnificência de Deus. É essa a perspectiva que o profeta tem do Deus que o
chamou.
MENSAGEM
Nesta
catequese sobre a experiência de vocação, encontramos vários passos. Vamos
resumi-los brevemente.
Em
primeiro lugar (vs. 1-5), Isaías deixa claro que a sua vocação é obra de Jahwéh,
o Deus majestoso e santo, infinitamente acima do mundo e distante da realidade
pecadora em que os homens vivem mergulhados. Os elementos literários típicos das
teofanias (o temor, a voz forte, o fumo) definem o quadro típico das
manifestações de Deus no Antigo Testamento: foi esse Deus que se manifestou a
Isaías e que o convocou para o seu serviço.
Em
segundo lugar (vs. 6-7), temos a objeção e a purificação. A objeção do profeta é
um elemento típico dos relatos de vocação (cf. Ex. 3,11, no chamamento de
Moisés). Manifesta o sentimento de um homem que, chamado por Deus a uma missão,
tem consciência dos seus limites e da sua indignidade, ou prefere continuar no
seu cantinho cómodo, sem se comprometer. A “purificação” sugere que a
indignidade e a limitação não são impeditivos para a missão: a eleição divina dá
ao profeta autoridade, apesar dos seus limites bem
humanos.
Em
terceiro lugar, temos a aceitação da missão pelo profeta. Convém, a propósito,
notar o seguinte: Isaías oferece-se sem saber ainda qual a missão que lhe vai
ser confiada; manifesta, dessa forma, a sua disponibilidade absoluta para o
serviço de Deus.
Temos,
aqui, descrito o caminho da verdadeira vocação.
ATUALIZAÇÃO
•
Cada um de nós tem a sua história de vocação: de muitas formas Deus entra na
nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma resposta positiva à sua
proposta. Temos consciência de que Deus nos chama – às vezes de formas bem
banais? Estamos atentos aos sinais que Ele semeia na nossa vida e através dos
quais Ele nos diz, dia a dia, o que quer de nós?
•
A missão que Deus propõe está, frequentemente, associada a dificuldades, a
sofrimentos, a conflitos, a confrontos… Por isso, é um caminho de cruz que, às
vezes, procuramos evitar. Será que eu consigo vencer o comodismo e a preguiça
que me impedem de concretizar a missão?
• É
preciso ter consciência, também, que as minhas limitações e indignidades muito
humanas não podem servir de desculpa para realizar a missão que Deus quer
confiar-me: se Ele me pede um serviço, dar-me-á a força para superar os meus
limites e para cumprir o que Ele me pede.
• Isaías
aceita o envio, ainda antes de saber, em concreto, qual é a missão. É o exemplo
de quem arrisca tudo e se dispõe, de forma absoluta, para o serviço de Deus. No
entanto, é difícil arriscar tudo, sem cálculos nem garantias: é o pôr em causa
os nossos projetos e esquemas para confiar apenas em Deus, de forma que Ele
possa fazer de nós o que quiser. Qual a minha atitude em relação a
isto?
2ª
leitura: 1Cor. 15,1-11 - AMBIENTE
A
chegada do cristianismo ao mundo grego provocou um choque de mentalidades e de
perspectivas culturais. Isso ficou bem evidente na dificuldade dos coríntios em
aceitar a ressurreição dos mortos.
A
ressurreição dos mortos era relativamente bem aceite no judaísmo, habituado a
ver o homem na sua unidade; mas constituía um problema sério para a mentalidade
grega. Porquê? Porque a cultura grega, fortemente influenciada por filosofias
dualistas (como a filosofia de Platão, por esta altura na moda) que viam no
corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre, recusava-se
a aceitar a ressurreição do homem integral. Como poderia o corpo – essa
realidade material, carnal, sensual, que aprisionava a alma e a impedia de subir
ao mundo ideal, na opinião dos filósofos gregos – seguir a
alma?
É
a esta questão posta pelos Coríntios que Paulo vai responder neste
texto.
MENSAGEM
A
argumentação de Paulo é simples e contundente: nós, cristãos, ressuscitaremos um
dia, porque Cristo já ressuscitou.
O
texto começa com a evocação de uma fórmula da catequese primitiva sobre esta
questão. Paulo não está a inventar: está a transmitir com absoluta fidelidade a
catequese que recebeu.
A
fórmula paulina, que é ao mesmo tempo reflexo e modelo da primitiva pregação
cristã acerca da ressurreição, estrutura-se em três tempos: afirmação do fato
(morte/ressurreição), testemunho da Sagrada Escritura, comprovação experimental
do mesmo (sepultura/aparições). A comprovação do fato resulta dos outros dois
elementos.
No
que diz respeito ao testemunho das escrituras, Paulo não cita diretamente nenhum
texto da Sagrada Escritura em favor da sua tese; mas podemos pensar que Paulo
está a referir-se a Is. 53,8-12 (o quarto poema do Servo de Jahwéh) e a Os 6,2.
No que diz respeito às testemunhas da ressurreição de Jesus, Paulo cita seis
manifestações de Jesus ressuscitado: a Pedro, aos Doze, a mais de quinhentos
irmãos, a Tiago, aos outros apóstolos e, finalmente, ao próprio
Paulo.
Notemos
que os apóstolos (Paulo incluído) não testemunharam o momento da ressurreição,
mas a experiência de um Jesus que continuou vivo depois da morte. O ressuscitado
fez-se presente na vida destes homens e, como tal, converteu-se em objeto de
pregação e de fé. Portanto, ao falar da ressurreição de Jesus, não estamos a
falar de um “fato histórico”, entendendo por “fato histórico” aquele de que
qualquer pessoa pode relatar os pormenores. A ressurreição de Cristo é um fato
real, mas ao mesmo tempo sobrenatural e meta-histórico, algo que ultrapassa
completamente as categorias humanas de espaço e de tempo, a fim de entrar na
órbita da fé. É algo que a ciência histórica não pode demonstrar, porque
corresponde a uma experiência de fé. O que, historicamente, podemos comprovar, é
a incrível transformação dos discípulos que, de homens cheios de medo, de
frustração e de cobardia, se converteram em arautos destemidos de Jesus, vivo e
ressuscitado.
Além
do mais, a ressurreição é um facto que ocorreu, mas que continua a ocorrer;
continua a ter a eficácia primitiva, continua a ser capaz de converter em homens
novos, a quantos aceitam Jesus pela fé. A comunidade cristã é convidada a fazer
esta descoberta, a partir das Escrituras, do Espírito e da própria vida nova que
continuamente vai nascendo nos cristãos.
ATUALIZAÇÃO
•
Será um dado adquirido, para qualquer cristão, a ressurreição de Jesus. No
entanto, essa ressurreição é, para nós, uma verdade abstrata que afirmamos no
credo, ou algo vivo e dinâmico, que todos os dias continua a acontecer na nossa
vida e na nossa história, gerando vida nova, libertação, amor, numa contínua
manifestação de Primavera para nós e para o mundo?
•
A ressurreição de Cristo garante-nos que não há morte para quem aceita fazer da
sua vida uma luta pela justiça, pela verdade, pelo projecto de Deus. Temos
consciência disso? A certeza da ressurreição encoraja-nos a lutar, sem a
paralisia que vem do medo, por um mundo mais justo, mais fraterno, mais
humano?
Evangelho:
Lc. 5,1-11 – AMBIENTE
Estamos
na Galileia, no início do ministério de Jesus. Há algum tempo, Ele apresentou o
seu programa na sinagoga de Nazaré como anúncio da Boa Nova aos pobres e
proposição da libertação para os prisioneiros… Agora, começam a notar-se os
primeiros resultados da actividade de Jesus: à sua volta começa a formar-se o
grupo dos que foram sensíveis a essa proposta de salvação e seguiram
Jesus.
MENSAGEM
O
texto que nos é proposto como Evangelho é uma catequese que procura apresentar
as coordenadas fundamentais da identidade cristã: o que é ser cristão? Como se
segue Jesus? O que é que implica seguir Jesus?
Ser
cristão é, em primeiro lugar, estar com Jesus “no mesmo barco” (v. 3). É desse
barco (a comunidade cristã), que a Palavra de Jesus se dirige ao mundo, propondo
a todos a libertação (“pôs-Se a ensinar, da barca, a
multidão”).
Ser
cristão é, em segundo lugar, escutar a proposta de Jesus, fazer o que Ele diz,
cumprir as suas indicações, lançar as redes ao mar (vs. 4-5). Às vezes, as
propostas de Jesus podem parecer ilógicas, incoerentes, ridículas (e quantas
vezes o parecem, face aos esquemas e valores do mundo…); mas é preciso confiar
incondicionalmente, entregar-se nas mãos d’Ele e cumprir à risca as suas
indicações (“porque Tu o dizes, lançarei as redes” – v.
5).
Ser
cristão é, em terceiro lugar, reconhecer Jesus como “o Senhor” (v. 8): é o que
faz Pedro, ao perceber como a proposta de Jesus gera vida e fecundidade para
todos. O título “Senhor” (em grego, “kyrios”) é o título que a comunidade cristã
primitiva dá a Jesus ressuscitado, reconhecendo n’Ele o “Senhor” que preside ao
mundo e à história.
Ser
cristão é, em quarto lugar, aceitar a missão que Jesus propõe: ser pescador de
homens (vers. 10). Para entendermos o verdadeiro significado da expressão, temos
de recordar o que significava o “mar” no ideário judaico: era o lugar dos
monstros, onde residiam os espíritos e as forças demoníacas que procuravam
roubar a vida e a felicidade do homem. Dizer que os seus discípulos vão ser
“pescadores de homens” significa que a missão do cristão é continuar a obra
libertadora de Jesus em favor do homem, procurando libertar o homem de tudo
aquilo que lhe rouba a vida e a felicidade. Trata-se de salvar o homem de morrer
afogado no mar da opressão, do egoísmo, do sofrimento, do medo – as forças
demoníacas que impedem a felicidade do homem.
Ser
cristão é, finalmente, deixar tudo e seguir Jesus (v. 11). Esta alusão ao
desprendimento do discípulo é típica de Lucas (cf. Lc. 5,28;12,33;18,22): Lucas
expressa, desta forma, que a generosidade e o dom total devem ser sinais
distintivos das comunidades e dos crentes que seguem
Jesus.
Uma
palavra, ainda, para o papel proeminente que Pedro aqui desempenha: a comunidade
lucana é uma comunidade estruturada, que reconhece em Pedro o “porta-voz” de
todos e o principal animador dessa comunidade de Jesus que navega nos mares da
história.
ATUALIZAÇÃO
•
A reflexão deste texto deve pôr em paralelo o “caminho cristão”, tal como Lucas
o descreve aqui, com esse caminho – às vezes não tão cristão como isso – que
vamos percorrendo todos os dias. Considerar as seguintes
questões:
• O
nosso caminho é feito no barco de Jesus, ou, às vezes, embarcamos noutros
projetos onde Jesus não está e fazemos deles o objetivo da nossa vida? Por outro
lado, deixamos que Jesus viaje conosco ou, às vezes, obrigamo-l’O a desembarcar
e continuamos viagem sem Ele?
• Ao
longo da viagem, somos sensíveis às palavras e propostas de Jesus? As suas
indicações são para nós sinais obrigatórios a seguir, ou fazem mais sentido para
nós os valores e a lógica do mundo?
• Reconhecemos,
de fato, que Jesus é o “Senhor” que preside à nossa história e à nossa vida? Ele
é o centro à volta do qual constituímos a nossa existência, ou deixamos que
outros “senhores” nos manipulem e dominem?
• Chamados
a ser “pescadores de homens”, temos por missão combater o mal, a injustiça, o
egoísmo, a miséria, tudo o que impede os homens nossos irmãos de viver com
dignidade e de ser felizes. É essa a nossa luta? Sentimos que continuamos, dessa
forma, o projeto libertador de Jesus?
•
A nossa entrega é total, ou parcial e calculada? Deixamos tudo na praia para
seguir Jesus, porque o seu projeto se tornou a prioridade da nossa
vida?
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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