No
início da Quaresma, a Palavra de Deus apela a repensar as nossas opções de vida
e a tomar consciência dessas “tentações” que nos impedem de renascer para a vida
nova, para a vida de Deus.
A
primeira leitura convida-nos a eliminar os falsos deuses em quem às vezes
apostamos tudo e a fazer de Deus a nossa referência fundamental. Alerta-nos, na
mesma lógica, contra a tentação do orgulho e da auto-suficiência, que nos levam
a caminhos de egoísmo e de desumanidade, de desgraça e de
morte.
O
Evangelho apresenta-nos uma catequese sobre as opções de Jesus. Lucas sugere que
Jesus recusou radicalmente um caminho de materialismo, de poder, de êxito fácil,
pois o plano de Deus não passava pelo egoísmo, mas pela partilha; não passava
pelo autoritarismo, mas pelo serviço; não passava por manifestações
espetaculares que impressionam as massas, mas por uma proposta de vida plena,
apresentada com simplicidade e amor. É claro que é esse caminho que é sugerido
aos que seguem Jesus.
A
segunda leitura convida-nos a prescindir de uma atitude arrogante e
auto-suficiente em relação à salvação que Deus nos oferece: a salvação não é uma
conquista nossa, mas um dom gratuito de Deus. É preciso, pois, “converter-se” a
Jesus, isto é, reconhecê-l’O como o “Senhor” e acolher no coração a salvação
que, em Jesus, Deus nos propõe.
1ª
leitura: Dt. 26,4-10 - AMBIENTE
O
livro do Deuteronômio – do qual é retirada a primeira leitura de hoje – é aquele
“livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º
ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2Re. 22). Neste livro os teólogos
deuteronomistas – originários do norte mas, entretanto, refugiados no sul, em
Jerusalém, após as derrotas dos reis do norte (Israel) frente aos assírios –
apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser
adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e
elegeu Israel e fez com ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um
povo único, unido, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer
sentido as divisões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e
religiosa, após a morte do rei Salomão).
O
livro apresenta-se, literariamente, como um conjunto de discursos de Moisés,
pronunciados nas planícies de Moab: antes de entrar na Terra Prometida, Moisés
lembra ao Povo os seus compromissos para com Deus e convida os israelitas a
renovar a sua aliança com Jahwéh.
Em
concreto, o texto que hoje nos é apresentado faz parte de um bloco (cf. Dt.
12-26) que apresenta “as leis e os costumes” que o Povo da aliança devia pôr em
prática nessa terra da qual iria, em breve, tomar posse. Uma dessas leis pedia
que fossem oferecidos ao Senhor os primeiros frutos da terra e que o israelita
fiel proclamasse, nesse contexto, a sua “confissão de fé”. Provavelmente, o
costume é de inspiração cananeia: cada ano, por ocasião da recolha dos produtos
da terra, o cananeu celebrava uma festa em honra de Baal, divindade da
fecundidade e da vegetação, agradecendo-lhe os dons da terra. Israel, no
entanto, sabia que não era a Baal mas a Jahwéh que devia agradecer tudo; a sua
confissão de fé centrava-se, então, na ação de Deus em favor do seu Povo,
sublinhando sobretudo a libertação do Egito, os acontecimentos da marcha pelo
deserto, a eleição e o dom da Terra.
MENSAGEM
O
gesto de oferecer os primeiros produtos da terra era, portanto, acompanhado de
uma “confissão de fé”. No fundo, todo este “credo” que recapitula as antigas
intervenções do Senhor em favor do seu Povo (eleição dos patriarcas, êxodo, dom
da terra) tem como objetivo último afirmar e reconhecer que essa Terra Boa onde
Israel construiu a sua existência é um dom de Deus; e não só a terra, mas tudo o
que cresce sobre ela, é produto do amor de Deus em favor do seu Povo. É isso que
significavam e simbolizavam as primícias que o israelita depositava sobre o
altar, por meio do sacerdote.
Estas
profissões de fé que os israelitas estavam obrigados a pronunciar periodicamente
na liturgia faziam parte da pedagogia divina, que queria prevenir o Povo contra
a tentação da idolatria. Por um lado, Israel era convidado a reconhecer quem era
o seu Senhor e que tudo era um dom do amor de Jahwéh – não de outros deuses; por
outro lado, Israel era convidado a libertar-se do orgulho, do egoísmo, da
auto-suficiência e a reconhecer que tudo o que era e que tinha não era fruto das
conquistas humanas, mas provinha de Jahwéh. Israel era, assim, convidado a
reconhecer que só no amor e na acção de Deus encontrava a vida e a
felicidade.
ATUALIZAÇÃO
•
Uma das tentações frequentes na vida do homem moderno é colocar a sua vida, a
sua esperança e a sua segurança nas mãos dos falsos deuses: o dinheiro, o poder,
o êxito social ou profissional, a ciência ou a técnica, os partidos, os líderes
e as ideologias ocupam com frequência nas nossas vidas o lugar de Deus. Quais
são os deuses diante dos quais o mundo se prostra? Quais são os deuses que,
tantas vezes, impedem que Deus ocupe, na minha vida, o primeiro
lugar?
•
O orgulho, o egoísmo, a auto-suficiência também levam o homem a prescindir de
Deus. Os êxitos e as realizações são atribuídas exclusivamente ao esforço e ao
gênio humano, como se o homem se bastasse a si próprio… Deus chega mesmo a ser
visto, não como a referência última da nossa história e da nossa vida, mas como
um estorvo que impede o homem de ser livre e de seguir o seu caminho de busca de
felicidade. Onde nos leva um mundo que prescinde de Deus? Os caminhos que o
homem constrói longe de Deus são caminhos onde encontramos mais humanidade, mais
alegria, mais amor, mais liberdade, mais respeito pela justiça e pela dignidade
do homem? Porquê?
•
Tudo o que recebemos é de Deus e não nosso. Somos apenas administradores dos
dons que Deus colocou à disposição de todos os homens. A nossa relação com os
bens – mesmo os mais fundamentais – não pode, pois, ser uma relação fechada e
egoísta: tudo pertence a Deus, o Pai de todos os homens e deve, portanto, ser
partilhado. Como nos situamos face a isto? Os bens que Deus colocou à nossa
disposição servem apenas para nosso benefício exclusivo, ou são vistos como dons
de Deus para todos?
2ª
leitura: Rm. 10,8-13 - AMBIENTE
A
carta aos Romanos é considerada, por alguns exegetas, a “carta da
reconciliação”. Estamos nos anos 57/58; a convivência entre judeo-cristãos e
pagano-cristãos apresenta algumas dificuldades, dadas as diferenças sociais,
culturais e religiosas subjacentes aos dois grupos. A comunidade cristã corre o
risco de radicalizar as incompatibilidades e de se dividir… Nesta situação,
Paulo escreve para sublinhar aquilo que a todos une. O centro da carta seria, de
acordo com esta perspectiva, 15,7: “Acolhei-vos, pois, uns aos outros, como
Cristo vos acolheu, para glória de Deus”.
O
texto da segunda leitura pertence à primeira parte da carta (Rm. 1-11); o título
desta parte pode ser: o Evangelho de Jesus é a força que congrega e que salva
todo o crente (judeus e pagãos). Depois de demonstrar que todos os homens vivem
mergulhados num ambiente de pecado (Rm. 1,18-3,20), mas que a “justiça de Deus”
dá a vida a todos sem distinção (Rm. 3,21-5,11) e que é em Jesus que essa vida
se comunica (Rm. 5,12-8,39), Paulo reflete sobre o desígnio de Deus a respeito
de Israel (Rm. 9,1-11,36).
Neste
texto, em concreto, Paulo põe em relevo aquilo que une judeus e gregos: a mesma
fé em Jesus Cristo e na proposta de salvação que Ele
traz.
MENSAGEM
Nos
versículos anteriores (cf. Rm. 9,30-10,4), Paulo havia criticado o orgulho e a
auto-suficiência dos judeus, que pensavam chegar à salvação à custa das obras
que praticavam: se cumprissem as obras da Lei, Deus não teria outro remédio
senão salvá-los. Ora, na perspectiva de Paulo, a salvação não é uma conquista
humana, mas um dom gratuito de Deus que, na sua bondade, “justifica” o
homem.
Essa
auto-suficiência dos judeus levou-os a desprezar a salvação de Deus, oferecida
gratuitamente em Jesus Cristo. Os pagãos, ao contrário, com simplicidade e
humildade, acolheram a proposta de salvação que Jesus
trouxe.
Então,
tudo estará perdido para os judeus? Não. Basta-lhes acolher Jesus como “o
Senhor” e aceitar a sua condição de ressuscitado: isso significa aceitar que Ele
veio de Deus e que a proposta de salvação por Ele apresentada tem o selo de
Deus.
Dessa
forma nascerá um povo único, sem distinções de raça, cor ou estatuto social. O
que é decisivo é acolher a proposta de salvação que Deus faz através de Jesus e
aderir a essa comunidade de irmãos, “justificados” pela bondade e pelo amor de
Deus.
ATUALIZAÇÃO
•
O orgulho e a auto-suficiência aparecem sempre como algo que fecha aos homens o
caminho para Deus. Conduzem o homem ao fechamento em si próprio e a prescindir
de Deus e dos outros. Os orgulhosos e auto-suficientes correspondem aos “ricos”
das bem-aventuranças: são os que estão instalados nas suas certezas, no seu
comodismo, no seu egoísmo e não estão disponíveis para se deixar desafiar por
Deus e para acolher, em cada instante, a novidade e o amor de Deus. Por isso,
são “malditos”: se não estiverem dispostos a abrir o seu coração a Deus, recusam
a salvação que Deus tem para oferecer.
•
Como nos situamos face a isto? A nossa religião é um cumprir escrupulosamente as
regras para assegurar o “lugarzinho no céu”, ou é um aderir na fé à pessoa de
Jesus e à proposta gratuita de salvação que, através d’Ele, Deus nos
faz?
•
Quando nos reunimos em assembléia e proclamamos Jesus como o nosso “Senhor”,
somos uma verdadeira comunidade de irmãos, sem “judeu nem grego”, ou continuamos
a ser uma comunidade dividida, com amigos e inimigos, ricos e pobres, negros e
brancos, santos e pecadores, superiores e
inferiores?
Evangelho:
Lc. 4,1-13 - AMBIENTE
Estamos
no começo da atividade pública de Jesus. Ele acabou de ser batizado por João
Baptista e recebeu o Espírito para a missão (cf. Lc. 3,21-22). Agora,
confronta-Se com uma proposta de atuação messiânica que pretende subverter a
proposta do Pai.
Também
aqui não estamos diante de uma reportagem histórica, feita por um jornalista que
presenciou o desafio entre Jesus e o diabo, algures no deserto… Estamos, sim,
diante de uma página de catequese, cujo objetivo é ensinar-nos que Jesus, como
nós, sentiu a mordedura das tentações. Ele também sentiu a tentação de
prescindir de Deus e de seguir um caminho humano de êxitos, de aplausos, de
poder e de riqueza; no entanto, Ele soube dizer não a todas essas propostas que
O afastavam do plano do Pai.
MENSAGEM
Lucas
(como já o havia feito Mateus) vai apresentar a catequese sobre as opções de
Jesus, em três episódios ou “parábolas”. O relato constrói-se em torno de um
diálogo em que tanto o diabo como Jesus citam a Escritura em apoio da sua
opinião.
A
primeira “parábola” sugere que Jesus poderia ter optado por um caminho de
facilidade e de riqueza, utilizando a sua divindade para resolver qualquer
necessidade material… No entanto, Jesus sabia que “nem só de pão vive o homem” e
que o caminho do Pai não passa pela acumulação egoísta de bens. A resposta de
Jesus cita Dt 8,3, sugerindo que o seu alimento – a sua prioridade – é a Palavra
do Pai.
A
segunda “parábola” sugere que Jesus poderia ter escolhido um caminho de poder,
de domínio, de prepotência, ao jeito dos grandes da terra. No entanto, Jesus
sabe que esses esquemas são diabólicos e que não entram nos planos do Pai; por
isso, citando Dt. 6,13, diz que só o Pai é o seu “absoluto” e que não se deve
adorar mais nada: adorar o poder que corrompe e escraviza não tem nada a ver com
o projeto de Deus.
A terceira “parábola” sugere que Jesus poderia ter construído um caminho de êxito fácil, mostrando o seu poder através de gestos espetaculares e sendo admirado e aclamado pelas multidões (sempre dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático dos super-heróis). Jesus responde a esta proposta citando Dt. 6,16, que manda “não tentar” o Senhor Deus: aqui, “tentar” significa “não utilizar os dons de Deus ou a bondade de Deus com um fim egoísta e interesseiro”.
A terceira “parábola” sugere que Jesus poderia ter construído um caminho de êxito fácil, mostrando o seu poder através de gestos espetaculares e sendo admirado e aclamado pelas multidões (sempre dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático dos super-heróis). Jesus responde a esta proposta citando Dt. 6,16, que manda “não tentar” o Senhor Deus: aqui, “tentar” significa “não utilizar os dons de Deus ou a bondade de Deus com um fim egoísta e interesseiro”.
Apresentam-se,
portanto, diante de Jesus, dois caminhos. De um lado, está a proposta do diabo:
que Jesus realize o seu papel na história da salvação como um Messias
triunfante, ao jeito dos homens. Do outro, está a escolha de Jesus: um caminho
de obediência ao Pai e de serviço aos homens, que elimina qualquer concepção do
messianismo como poder.
ATUALIZAÇÃO
•
Frente a frente estão, hoje, a lógica de Deus e a lógica dos homens. A catequese
que o Evangelho nos apresenta neste primeiro Domingo da Quaresma ensina que
Jesus pautou cada uma das suas escolhas pela lógica de Deus. E nós, cristãos,
seguidores de Jesus? É essa a nossa lógica, também?
•
Deixar-se conduzir pela tentação dos bens materiais, do acumular mais e mais, do
olhar apenas para o seu próprio conforto e comodidade, do fechar-se à partilha e
às necessidades dos outros, é seguir o caminho de Jesus? Pagar salários de
miséria aos operários e malbaratar fortunas em noitadas de jogo ou em coisas
supérfluas (enquanto os irmãos, ao lado, gemem a sua miséria), é seguir o
caminho de Jesus?
•
Dentro de cada pessoa, existe o impulso de dominar, de ter autoridade, de
prevalecer sobre os outros. Por isso – às vezes na Igreja – os pobres, os
débeis, os humildes têm de suportar atitudes de prepotência, de autoritarismo,
de intolerância, de abuso. A catequese de hoje sugere que este “caminho” é
diabólico e não tem nada a ver com o serviço simples e humilde que Jesus propôs
nas suas palavras e nos seus gestos.
•
Podemos, também, ceder à tentação de usar Deus ou os dons de Deus para brilhar,
para dar espetáculo, para levar os outros a admirar-nos e a bater-nos palmas. A
isto Jesus responde de forma determinada: não utilizarás Deus em proveito da tua
vaidade e do teu êxito pessoal.
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas
Carvalho
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