domingo, 17 de fevereiro de 2013

I DOMINGO DA QUARESMA - JESUS É TENTADO NO DESERTO!




No início da Quaresma, a Palavra de Deus apela a repensar as nossas opções de vida e a tomar consciência dessas “tentações” que nos impedem de renascer para a vida nova, para a vida de Deus.
A primeira leitura convida-nos a eliminar os falsos deuses em quem às vezes apostamos tudo e a fazer de Deus a nossa referência fundamental. Alerta-nos, na mesma lógica, contra a tentação do orgulho e da auto-suficiência, que nos levam a caminhos de egoísmo e de desumanidade, de desgraça e de morte.
O Evangelho apresenta-nos uma catequese sobre as opções de Jesus. Lucas sugere que Jesus recusou radicalmente um caminho de materialismo, de poder, de êxito fácil, pois o plano de Deus não passava pelo egoísmo, mas pela partilha; não passava pelo autoritarismo, mas pelo serviço; não passava por manifestações espetaculares que impressionam as massas, mas por uma proposta de vida plena, apresentada com simplicidade e amor. É claro que é esse caminho que é sugerido aos que seguem Jesus.
A segunda leitura convida-nos a prescindir de uma atitude arrogante e auto-suficiente em relação à salvação que Deus nos oferece: a salvação não é uma conquista nossa, mas um dom gratuito de Deus. É preciso, pois, “converter-se” a Jesus, isto é, reconhecê-l’O como o “Senhor” e acolher no coração a salvação que, em Jesus, Deus nos propõe.
 
1ª leitura: Dt. 26,4-10 - AMBIENTE
 
O livro do Deuteronômio – do qual é retirada a primeira leitura de hoje – é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2Re. 22). Neste livro os teólogos deuteronomistas – originários do norte mas, entretanto, refugiados no sul, em Jerusalém, após as derrotas dos reis do norte (Israel) frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um povo único, unido, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as divisões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).
O livro apresenta-se, literariamente, como um conjunto de discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab: antes de entrar na Terra Prometida, Moisés lembra ao Povo os seus compromissos para com Deus e convida os israelitas a renovar a sua aliança com Jahwéh.
Em concreto, o texto que hoje nos é apresentado faz parte de um bloco (cf. Dt. 12-26) que apresenta “as leis e os costumes” que o Povo da aliança devia pôr em prática nessa terra da qual iria, em breve, tomar posse. Uma dessas leis pedia que fossem oferecidos ao Senhor os primeiros frutos da terra e que o israelita fiel proclamasse, nesse contexto, a sua “confissão de fé”. Provavelmente, o costume é de inspiração cananeia: cada ano, por ocasião da recolha dos produtos da terra, o cananeu celebrava uma festa em honra de Baal, divindade da fecundidade e da vegetação, agradecendo-lhe os dons da terra. Israel, no entanto, sabia que não era a Baal mas a Jahwéh que devia agradecer tudo; a sua confissão de fé centrava-se, então, na ação de Deus em favor do seu Povo, sublinhando sobretudo a libertação do Egito, os acontecimentos da marcha pelo deserto, a eleição e o dom da Terra.
 
MENSAGEM
 
O gesto de oferecer os primeiros produtos da terra era, portanto, acompanhado de uma “confissão de fé”. No fundo, todo este “credo” que recapitula as antigas intervenções do Senhor em favor do seu Povo (eleição dos patriarcas, êxodo, dom da terra) tem como objetivo último afirmar e reconhecer que essa Terra Boa onde Israel construiu a sua existência é um dom de Deus; e não só a terra, mas tudo o que cresce sobre ela, é produto do amor de Deus em favor do seu Povo. É isso que significavam e simbolizavam as primícias que o israelita depositava sobre o altar, por meio do sacerdote.
Estas profissões de fé que os israelitas estavam obrigados a pronunciar periodicamente na liturgia faziam parte da pedagogia divina, que queria prevenir o Povo contra a tentação da idolatria. Por um lado, Israel era convidado a reconhecer quem era o seu Senhor e que tudo era um dom do amor de Jahwéh – não de outros deuses; por outro lado, Israel era convidado a libertar-se do orgulho, do egoísmo, da auto-suficiência e a reconhecer que tudo o que era e que tinha não era fruto das conquistas humanas, mas provinha de Jahwéh. Israel era, assim, convidado a reconhecer que só no amor e na acção de Deus encontrava a vida e a felicidade.
 
ATUALIZAÇÃO
 
• Uma das tentações frequentes na vida do homem moderno é colocar a sua vida, a sua esperança e a sua segurança nas mãos dos falsos deuses: o dinheiro, o poder, o êxito social ou profissional, a ciência ou a técnica, os partidos, os líderes e as ideologias ocupam com frequência nas nossas vidas o lugar de Deus. Quais são os deuses diante dos quais o mundo se prostra? Quais são os deuses que, tantas vezes, impedem que Deus ocupe, na minha vida, o primeiro lugar?
• O orgulho, o egoísmo, a auto-suficiência também levam o homem a prescindir de Deus. Os êxitos e as realizações são atribuídas exclusivamente ao esforço e ao gênio humano, como se o homem se bastasse a si próprio… Deus chega mesmo a ser visto, não como a referência última da nossa história e da nossa vida, mas como um estorvo que impede o homem de ser livre e de seguir o seu caminho de busca de felicidade. Onde nos leva um mundo que prescinde de Deus? Os caminhos que o homem constrói longe de Deus são caminhos onde encontramos mais humanidade, mais alegria, mais amor, mais liberdade, mais respeito pela justiça e pela dignidade do homem? Porquê?
• Tudo o que recebemos é de Deus e não nosso. Somos apenas administradores dos dons que Deus colocou à disposição de todos os homens. A nossa relação com os bens – mesmo os mais fundamentais – não pode, pois, ser uma relação fechada e egoísta: tudo pertence a Deus, o Pai de todos os homens e deve, portanto, ser partilhado. Como nos situamos face a isto? Os bens que Deus colocou à nossa disposição servem apenas para nosso benefício exclusivo, ou são vistos como dons de Deus para todos?
 
2ª leitura: Rm. 10,8-13 - AMBIENTE
 
A carta aos Romanos é considerada, por alguns exegetas, a “carta da reconciliação”. Estamos nos anos 57/58; a convivência entre judeo-cristãos e pagano-cristãos apresenta algumas dificuldades, dadas as diferenças sociais, culturais e religiosas subjacentes aos dois grupos. A comunidade cristã corre o risco de radicalizar as incompatibilidades e de se dividir… Nesta situação, Paulo escreve para sublinhar aquilo que a todos une. O centro da carta seria, de acordo com esta perspectiva, 15,7: “Acolhei-vos, pois, uns aos outros, como Cristo vos acolheu, para glória de Deus”.
O texto da segunda leitura pertence à primeira parte da carta (Rm. 1-11); o título desta parte pode ser: o Evangelho de Jesus é a força que congrega e que salva todo o crente (judeus e pagãos). Depois de demonstrar que todos os homens vivem mergulhados num ambiente de pecado (Rm. 1,18-3,20), mas que a “justiça de Deus” dá a vida a todos sem distinção (Rm. 3,21-5,11) e que é em Jesus que essa vida se comunica (Rm. 5,12-8,39), Paulo reflete sobre o desígnio de Deus a respeito de Israel (Rm. 9,1-11,36).
Neste texto, em concreto, Paulo põe em relevo aquilo que une judeus e gregos: a mesma fé em Jesus Cristo e na proposta de salvação que Ele traz.
 
MENSAGEM
 
Nos versículos anteriores (cf. Rm. 9,30-10,4), Paulo havia criticado o orgulho e a auto-suficiência dos judeus, que pensavam chegar à salvação à custa das obras que praticavam: se cumprissem as obras da Lei, Deus não teria outro remédio senão salvá-los. Ora, na perspectiva de Paulo, a salvação não é uma conquista humana, mas um dom gratuito de Deus que, na sua bondade, “justifica” o homem.
Essa auto-suficiência dos judeus levou-os a desprezar a salvação de Deus, oferecida gratuitamente em Jesus Cristo. Os pagãos, ao contrário, com simplicidade e humildade, acolheram a proposta de salvação que Jesus trouxe.
Então, tudo estará perdido para os judeus? Não. Basta-lhes acolher Jesus como “o Senhor” e aceitar a sua condição de ressuscitado: isso significa aceitar que Ele veio de Deus e que a proposta de salvação por Ele apresentada tem o selo de Deus.
Dessa forma nascerá um povo único, sem distinções de raça, cor ou estatuto social. O que é decisivo é acolher a proposta de salvação que Deus faz através de Jesus e aderir a essa comunidade de irmãos, “justificados” pela bondade e pelo amor de Deus.
 
ATUALIZAÇÃO
 
• O orgulho e a auto-suficiência aparecem sempre como algo que fecha aos homens o caminho para Deus. Conduzem o homem ao fechamento em si próprio e a prescindir de Deus e dos outros. Os orgulhosos e auto-suficientes correspondem aos “ricos” das bem-aventuranças: são os que estão instalados nas suas certezas, no seu comodismo, no seu egoísmo e não estão disponíveis para se deixar desafiar por Deus e para acolher, em cada instante, a novidade e o amor de Deus. Por isso, são “malditos”: se não estiverem dispostos a abrir o seu coração a Deus, recusam a salvação que Deus tem para oferecer.
• Como nos situamos face a isto? A nossa religião é um cumprir escrupulosamente as regras para assegurar o “lugarzinho no céu”, ou é um aderir na fé à pessoa de Jesus e à proposta gratuita de salvação que, através d’Ele, Deus nos faz?
• Quando nos reunimos em assembléia e proclamamos Jesus como o nosso “Senhor”, somos uma verdadeira comunidade de irmãos, sem “judeu nem grego”, ou continuamos a ser uma comunidade dividida, com amigos e inimigos, ricos e pobres, negros e brancos, santos e pecadores, superiores e inferiores?
 
 
Evangelho: Lc. 4,1-13 - AMBIENTE
 
Estamos no começo da atividade pública de Jesus. Ele acabou de ser batizado por João Baptista e recebeu o Espírito para a missão (cf. Lc. 3,21-22). Agora, confronta-Se com uma proposta de atuação messiânica que pretende subverter a proposta do Pai.
Também aqui não estamos diante de uma reportagem histórica, feita por um jornalista que presenciou o desafio entre Jesus e o diabo, algures no deserto… Estamos, sim, diante de uma página de catequese, cujo objetivo é ensinar-nos que Jesus, como nós, sentiu a mordedura das tentações. Ele também sentiu a tentação de prescindir de Deus e de seguir um caminho humano de êxitos, de aplausos, de poder e de riqueza; no entanto, Ele soube dizer não a todas essas propostas que O afastavam do plano do Pai.
 
MENSAGEM
 
Lucas (como já o havia feito Mateus) vai apresentar a catequese sobre as opções de Jesus, em três episódios ou “parábolas”. O relato constrói-se em torno de um diálogo em que tanto o diabo como Jesus citam a Escritura em apoio da sua opinião.
A primeira “parábola” sugere que Jesus poderia ter optado por um caminho de facilidade e de riqueza, utilizando a sua divindade para resolver qualquer necessidade material… No entanto, Jesus sabia que “nem só de pão vive o homem” e que o caminho do Pai não passa pela acumulação egoísta de bens. A resposta de Jesus cita Dt 8,3, sugerindo que o seu alimento – a sua prioridade – é a Palavra do Pai.
 
A segunda “parábola” sugere que Jesus poderia ter escolhido um caminho de poder, de domínio, de prepotência, ao jeito dos grandes da terra. No entanto, Jesus sabe que esses esquemas são diabólicos e que não entram nos planos do Pai; por isso, citando Dt. 6,13, diz que só o Pai é o seu “absoluto” e que não se deve adorar mais nada: adorar o poder que corrompe e escraviza não tem nada a ver com o projeto de Deus.
A terceira “parábola” sugere que Jesus poderia ter construído um caminho de êxito fácil, mostrando o seu poder através de gestos espetaculares e sendo admirado e aclamado pelas multidões (sempre dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático dos super-heróis). Jesus responde a esta proposta citando Dt. 6,16, que manda “não tentar” o Senhor Deus: aqui, “tentar” significa “não utilizar os dons de Deus ou a bondade de Deus com um fim egoísta e interesseiro”.
Apresentam-se, portanto, diante de Jesus, dois caminhos. De um lado, está a proposta do diabo: que Jesus realize o seu papel na história da salvação como um Messias triunfante, ao jeito dos homens. Do outro, está a escolha de Jesus: um caminho de obediência ao Pai e de serviço aos homens, que elimina qualquer concepção do messianismo como poder.
 
ATUALIZAÇÃO
 
• Frente a frente estão, hoje, a lógica de Deus e a lógica dos homens. A catequese que o Evangelho nos apresenta neste primeiro Domingo da Quaresma ensina que Jesus pautou cada uma das suas escolhas pela lógica de Deus. E nós, cristãos, seguidores de Jesus? É essa a nossa lógica, também?
• Deixar-se conduzir pela tentação dos bens materiais, do acumular mais e mais, do olhar apenas para o seu próprio conforto e comodidade, do fechar-se à partilha e às necessidades dos outros, é seguir o caminho de Jesus? Pagar salários de miséria aos operários e malbaratar fortunas em noitadas de jogo ou em coisas supérfluas (enquanto os irmãos, ao lado, gemem a sua miséria), é seguir o caminho de Jesus?
• Dentro de cada pessoa, existe o impulso de dominar, de ter autoridade, de prevalecer sobre os outros. Por isso – às vezes na Igreja – os pobres, os débeis, os humildes têm de suportar atitudes de prepotência, de autoritarismo, de intolerância, de abuso. A catequese de hoje sugere que este “caminho” é diabólico e não tem nada a ver com o serviço simples e humilde que Jesus propôs nas suas palavras e nos seus gestos.
• Podemos, também, ceder à tentação de usar Deus ou os dons de Deus para brilhar, para dar espetáculo, para levar os outros a admirar-nos e a bater-nos palmas. A isto Jesus responde de forma determinada: não utilizarás Deus em proveito da tua vaidade e do teu êxito pessoal.
 
 
 
 
 
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho

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