Fonte: Revista Veja
O biólogo americano Francis Collins é um
dos cientistas mais notáveis da atualidade.Diretor do Projeto Genoma, bancado pelo governo
americano, foi um dos responsáveis por
um feito espetacular da ciência moderna: o mapeamento do DNA humano, em
2001.
Veja
– No livro A
Linguagem de Deus, o senhor conta que era um “ateu insolente” e,
depois, se converteu ao cristianismo. O que o fez mudar suas
convicções?
Francis Collins – Houve um período em minha vida em que
era conveniente não acreditar em Deus. Eu era jovem, e a física, a química e a
matemática pareciam ter todas as
respostas para os mistérios da vida. Reduzir tudo a equações era uma forma de
exercer total controle sobre meu mundo.
Percebi que a
ciência não substitui a religião quando ingressei na faculdade de
medicina. Vi pessoas sofrendo de males terríveis. Uma delas, depois de me
contar sobre sua fé e como conseguia forças para lutar contra a doença,
perguntou-me em que eu acreditava. Disse a ela que não acreditava em nada.
Pareceu-me uma resposta vaga, uma frase feita de um cientista ingênuo que se
achava capaz de tirar conclusões sobre um assunto tão profundo e negar a
evidência de que existe algo maior do que equações. Eu tinha 27 anos. Não passava de um rapaz
insolente. Estava negando a
possibilidade de haver algo capaz de explicar questões para as quais nunca
encontramos respostas, mas que movem o mundo e fazem as pessoas superar
desafios.
Veja – Que questões são
essas para as quais não encontramos
respostas?
Collins – Falo de questões filosóficas que transcendem a
ciência, que fazem parte da existência humana. Os cientistas que se dizem ateus têm uma visão empobrecida
sobre perguntas que todos nós, seres humanos, nos fazemos todos os dias.
“O que acontece depois da morte?” ou “Qual é o motivo de eu estar aqui?”.
Não é certo
negar aos seres humanos o direito de acreditar que a vida não é um simples
episódio da natureza, explicado cientificamente e sem um sentido maior.
Esse lado filosófico da fé, na minha opinião, é uma das facetas mais importantes
da religião. A busca por Deus sempre esteve presente na história e foi
necessária para o progresso. Civilizações que tentaram suprimir a fé e
justificar a vida exclusivamente por meio da ciência – como, recentemente, a
União Soviética de Stalin e a China de Mao – falharam. Precisamos da
ciência para entender o mundo e usar esse conhecimento para melhorar as
condições humanas. Mas a ciência deve
permanecer em silêncio nos assuntos
espirituais.
Veja – A maioria dos cientistas argumenta que a crença em Deus é
irracional e incompatível com as descobertas científicas. O zoólogo Richard
Dawkins, com quem o senhor trava um embate filosófico sobre o tema, diz que a
religião é a válvula de escape do homem, o vírus da mente. Como o senhor
responde a isso?
Collins – Essa perspectiva de Dawkins é cheia de
presunção. Eu acredito que o ateísmo é
a mais irracional das escolhas. Os cientistas ateus, que acreditam
apenas na teoria da evolução e
negam todo o resto, sofrem de excesso de confiança. Na visão desses cientistas,
hoje adquirimos tanta sabedoria a respeito da evolução e de como a vida se
formou que simplesmente não precisamos
mais de Deus.
O que deve ficar
claro é que as sociedades necessitam tanto da religião como da ciência. Elas não
são incompatíveis, mas sim complementares. A ciência investiga o mundo
natural. Deus pertence a outra esfera. Deus está fora do mundo natural. Usar as ferramentas da ciência para discutir
religião é uma atitude imprópria e equivocada.
No ano passado foram lançados vários livros de cientistas
renomados, como Dawkins, Daniel Dennett e Sam Harris, que atacam a religião sem
nenhum propósito. É uma ofensa àqueles que têm fé e respeitam a ciência. Em vez
de blasfemarem, esses cientistas deveriam trabalhar para elucidar os mistérios
que ainda existem. É o que nos cabe.
Veja – O senhor afirma que as sociedades precisam da religião,
mas como justificar as barbaridades cometidas em nome de Deus através da
história?
Collins – Apesar de tudo o que já aconteceu, coisas
maravilhosas foram feitas em nome da religião. Pense em Madre Teresa de Calcutá
ou em William Wilberforce, o cristão inglês que passou a vida lutando contra a
escravatura. O problema é que a água
pura da fé religiosa circula nas veias defeituosas e enferrujadas dos seres
humanos, o que às vezes a torna turva. Isso não significa que os
princípios estejam errados, apenas que determinadas pessoas usam esses princípios de
forma inadequada para justificar suas ações. A religião é um veículo da
fé – essa, sim, imprescindível para a humanidade.
Veja – O senhor diz que a ciência e a religião convergem, mas
devem ser tratadas separadamente. Como vê o movimento do “design inteligente”,
em que cientistas usam a religião para explicar fatos da natureza que permanecem
um mistério para a ciência?
Collins – Essa abordagem é um grande erro. Os cientistas
não podem cair na armadilha a que chamo de “lacuna divina”. Lamento que o
movimento do design inteligente tenha caído nessa cilada ao usar o argumento de
que a evolução não explica estruturas tão complicadas como as células ou o olho
humano. É dever de todos os cientistas, inclusive dos que têm fé, tentar
encontrar explicações racionais para tudo o que existe. Todos os sistemas
complexos citados pelo design inteligente – o mais citado é o “bacterial
flagellum”, um pequeno motor externo que permite à bactéria se mover nos
líquidos – são um conjunto de trinta proteínas. Podemos juntar artificialmente
essas trinta proteínas, que nada vai acontecer. Isso porque esses mecanismos se
formaram gradualmente através do recrutamento de outros componentes. No curso de
longos períodos de tempo, as máquinas moleculares se desenvolveram por meio do
processo que Darwin vislumbrou, ou seja, a evolução.
Veja – Qual a sua
leitura da Bíblia?
Collins – Santo Agostinho, no ano 400, alertou para o
perigo de se achar que a interpretação que cada um de nós dá à Bíblia é
a única correta, mas a advertência foi logo esquecida. Agostinho já dizia que
não há como saber exatamente o que significam os seis dias da criação. Um
exemplo de que uma interpretação unilateral da Bíblia é equivocada é
que há duas histórias sobre a criação no livro do Gênesis 1 e 2 – e elas são
discordantes.
Isso deixa claro que esses textos não foram concebidos como um livro
científico, mas para nos ensinar sobre a natureza divina e nossa relação
com Ele. Muitas pessoas que crêem em Deus foram levadas a acreditar que, se não
levarmos ao pé da letra todas as passagens da Bíblia, perderemos nossa
fé e deixaremos de acreditar que Cristo morreu e ressuscitou. Mas ninguém pode afirmar que a Terra tem menos
de 10 000 anos a não ser que se rejeitem todas as descobertas fundamentais da
geologia, da cosmologia, da física, da química e da
biologia.
Veja – O senhor acredita na Ressurreição?
Collins – Sim. Também acredito na Virgem Maria e em
milagres.
Veja – Não é uma contradição que um cientista acredite em dogmas
e milagres?
Collins – A questão dos milagres está relacionada à forma
como se acredita em Deus. Se uma pessoa crê e reconhece que Ele estabeleceu as leis da
natureza e está pelo menos em parte fora dessa natureza, então é totalmente
aceitável que esse Deus seja capaz de intervir no mundo natural. Isso
pode aparecer como um milagre, que seria uma suspensão temporária ou um
adiamento das leis que Deus criou.
Eu não acredito que Deus faça isso com freqüência – nunca
testemunhei algo que possa classificar como um milagre. Se Deus quis mandar uma
mensagem para este mundo na figura de seu filho, por meio da Ressurreição e da
Virgem Maria, e a isso chamam milagre, não vejo motivo para colocar esses dogmas
como um desafio para a ciência. Quem é
cristão acredita nesses dogmas – ou então não é cristão. Faz parte do
jogo.
Veja – É possível acreditar nas teorias de Darwin e em Deus ao
mesmo tempo?
Collins – Com certeza. Se no começo dos tempos Deus
escolheu usar o mecanismo da evolução para criar a diversidade de vida que
existe no planeta, para produzir criaturas que à sua imagem tenham
livre-arbítrio, alma e capacidade de discernir entre o bem e o mal, quem somos
nós para dizer que ele não deveria ter criado o mundo dessa
forma?
Veja – Alguns cientistas
afirmam que a religião e certas características ligadas à crença em Deus, como o
altruísmo, são ferramentas inerentes ao ser humano para garantir a evolução e a
sobrevivência. O senhor concorda?
Collins – Esses argumentos podem parecer plausíveis, mas
não há provas de que o altruísmo seja uma característica do ser humano que
permite sua sobrevivência e seu progresso, como sugerem os evolucionistas. Eles
querem justificar tudo por meio da ciência, e isso acaba sendo usado para
difundir o ateísmo.
Veja – Mas o altruísmo é visto hoje pela genética do
comportamento como uma característica herdada pelos genes, assim como a
inteligência. O senhor, como geneticista, discorda da genética comportamental?
Collins – Há muitas teorias interessantes nessa área,
mas são insuficientes para
explicar os nobres atos altruístas que admiramos. O recado da evolução para cada
um de nós é propagar o nosso DNA e tudo o que está contido nele. É a nossa
missão no planeta. Mas não é assim, de forma tão lógica, que entendo o mundo,
muito menos o altruísmo e a religiosidade.
Penso em Oskar Schindler, que se sacrificou por um longo
período para salvar judeus, e não pessoas de sua própria fé. Por que coisas
desse tipo acontecem? Se estou caminhando à beira de um rio, vejo uma pessoa se
afogar e decido ajudá-la mesmo pondo em risco a minha vida, de onde vem esse
impulso? Nada na teoria da evolução pode explicar a noção de certo e errado, a
moral, que parece ser exclusiva da espécie humana.
Veja – Muitas religiões são contrárias ao uso de técnicas
científicas que poderiam salvar vidas, como a do uso de células-tronco. Como o
senhor se posiciona nessa polêmica?
Collins – Temos de ser sensíveis e respeitar as
diferentes religiões no que diz respeito aos avanços científicos. Mas
interromper as pesquisas científicas ou impedir que uma pessoa com uma doença
terrível tenha uma vida melhor só porque a religião não aceita determinado
tratamento é antiético. Por outro lado, existem fronteiras que a ciência não deve
transpor, como a clonagem humana, que além de tudo não serviria para nada a não
ser para nos repugnar. Cada caso tem de ser avaliado
isoladamente.
Veja – Os geneticistas
são muitas vezes acusados de brincar de Deus. Como o senhor encara essas
críticas?
Collins – Se todos brincássemos de Deus como Deus
gostaria, com esperança e amor, ninguém se abateria muito com comentários do
gênero. Mas somos seres humanos e temos propensão ao egoísmo e aos julgamentos
equivocados. O importante é não reagir de forma exagerada à perspectiva de que
as pessoas possam vir a fazer mau uso das descobertas da genética, mas sim focar
o lado bom dessa “brincadeira”.
A maior parte das pesquisas genéticas busca a cura de
doenças como câncer, problemas cardíacos, esquizofrenia. São objetivos
louváveis. Para evitar o uso impróprio da ciência, o Projeto Genoma Humano apóia
um programa que visa a preservar a
ética nas pesquisas genéticas e certificar-se de que todas as nossas descobertas
beneficiarão as pessoas e a sociedade.
Veja – O que esperar das
pesquisas genéticas no futuro?
Collins – Nos próximos dois ou três anos vamos descobrir
os fatores genéticos que criam a propensão ao câncer, ao diabetes e às doenças
cardiovasculares. Isso possibilitará que as pessoas saibam que provavelmente vão
desenvolver esses males e tomem medidas preventivas contra eles, com a ajuda do
médico. Mais à frente, as descobertas das relações entre o genoma e as doenças
farão com que os tratamentos e os remédios sejam personalizados, tornando-os
mais eficientes e com menos efeitos colaterais.
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