Primeira
leitura: Sabedoria 9,13-19
PRECE
PARA OBTER A SABEDORIA E A PRUDÊNCIA
Este
é, na ordem cronológica, o último livro do Antigo Testamento. Foi escrito em
grego provavelmente na segunda metade do século II a.C. Seu autor é um judeu
piedoso da Alexandria, capital cultural do helenismo e grande reduto dos judeus
dispersos. Esta comunidade sentiu necessidade de inculturar a fé judaica,
assimilando os valores positivos da cultura grega, sem abandonar o núcleo
central da fé professada.
O livro da Sabedoria é fruto deste desejo. Ele é
atribuído a Salomão, mas não passa de um artifício, pois busca basear o
repensamento da fé naquele que era considerado o protótipo da sabedoria, para
que a busca dela fosse um estímulo e um encorajamento para a comunidade.
Quando
este livro surgiu havia influências filosóficas e cosmopolitas do helenismo.
Daí o desejo da comunidade hebraica da diáspora de conciliar as idéias
tradicionais da Torá com as perspectivas do saber humano helenista. Conseguiria
a comunidade judaica de Alexandria, vivendo num contexto de valores tão
diferentes dos seus, longe das mediações religiosas que lhe eram próprias,
manter-se fiel ao núcleo central da fé judaica? O texto nos expõe as
dificuldades, critica o endeusamento da filosofia grega e aponta sua
incapacidade de perscrutar o que existe no céu (vv.15-16). Era difícil
discernir o projeto de Deus nesta situação tão diversificada.
O
autor fala da dificuldade e incapacidade da filosofia de perscrutar as coisas
do céu e afirma que a sabedoria que vem de Deus, e que é fundamentalmente a
Lei, tem força para conhecer os desígnios de Deus e dar a salvação. Porém, o
autor vai além da simples sabedoria identificada com a Lei de Moisés e fala do
Espírito derramado nos corações e de uma nova Aliança já anunciada por Ezequiel
36,26-29 e Jeremias 31,31ss.
Todo
o capítulo 9 deste livro se inspira em um texto do Antigo Testamento muito
apreciado pela piedade judaica, ou seja, a oração que Salomão fez a Deus no
início do seu reinado. Os hebreus liam esta oração em 1Reis 3, 6-9, onde se
reconhece que a sabedoria é um dom de Deus, é a origem de toda a obra divina da
criação e só ela pode guiar o homem para entender a vontade de Deus.
Salomão,
que nasceu como um simples mortal (Sabedoria 7,1-6), foi enriquecido pela
sabedoria porque a pediu a Deus (Sabedoria 7,7-12). Ele pede para conhecer tudo
aquilo que é conforme aos mandamentos de Deus e cumpri-lo. O homem, com suas
capacidades, não consegue conhecer o pensamento e a vontade de Deus e por isso
cai na perdição, mas pode ser salvo se Deus lhe conceder sua sabedoria, ou
seja, se lhe enviar o seu Espírito. A oração de Salomão, começando com duas
perguntas retóricas, afirma que ninguém pode conhecer o desígnio de Deus
(Isaías 40,12-14; Jeremias 23,18; Jó 15,8).
Segunda
leitura: Filémon 1,9b-10.12-17
INTERCESSÃO
DE PAULO EM FAVOR DE ONÉSIMO
Este
trecho faz parte do livro mais curto do Novo Testamento. Filêmon foi convertido
por Paulo em Colossos, onde morava e tinha sua casa como uma pequena igreja
onde os fiéis se reuniam (v.2). Ele tinha um escravo chamado Onésimo,
nome que significa útil. Este fugiu para Roma e ali se encontrou com Paulo.
Dali Onésimo saiu convertido por Paulo. O apóstolo o mandou de volta para seu
patrão com um bilhete, no qual explicitou as exigências cristãs. O bilhete é
breve: tem apenas 25 versículos. Este escrito paulino não foi levado em
consideração pelos antigos comentaristas. São Jerônimo chegou a afirmar que ele
não tem nada que “aedificare possit”. Nos últimos tempos foi muito
valorizado, porque mostra a força da libertação da escravidão.
O
núcleo central do bilhete são os versículos 8-20. Neles Paulo pede a Filêmon
que não apenas poupe Onésimo da punição, mas o receba não como um escravo, mas
como um irmão caríssimo. No versículo 15, Paulo acena com muita delicadeza para
a fuga de Onésimo: “Separou-se de você por um momento”. Parece que Paulo
considerava aquela fuga um acontecimento que reverteu em um bem para todos.
Assim, o apóstolo se comporta numa dimensão distante da sociologia e do direito
da época, superando a estrutura social da escravidão. Aceitar Onésimo como
irmão implicava que Filêmon fizesse refeições com ele, rezasse em comum e desse
o beijo da fraternidade nas celebrações eucarísticas, ou seja, perdesse um
escravo e ganhasse um irmão.
Evangelho:
Lucas 14,25-33
RENUNCIAR
A TUDO PARA SEGUIR JESUS
O
trecho faz parte da grande viagem de Jesus a Jerusalém (Lucas 9,51-19,28),
onde consumará a sua missão. É neste caminho que as pessoas vão se posicionando
a favor de Jesus ou contra ele. O trecho mostra que para seguir Jesus é preciso
sair do anonimato e comprometer-se com sua pessoa. É uma resposta ao
afrouxamento de algumas comunidades cristãs, que julgavam que bastava pertencer
à comunidade para estar comprometido com Jesus. Seguir Jesus exige disposição
para as provações: “O Filho do homem não tem uma pedra para pousar a cabeça” (Lucas
9,57-58). É preciso estar disposto a deixar tudo (Lucas 9,59-60),
fazer uma opção para sempre. “Quem coloca a mão no arado e olha para trás
não é apto para o reino de Deus” (Lucas 9,62). Fazer uma opção por
Deus: “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Lucas 16,13).
Nosso
texto continua apresentando as exigências de seu seguimento. Deve-se romper os
laços que ligam a certos interesses, por mais nobres que sejam.
Mateus
10,37 tem uma sentença semelhante à de Lucas, mas a expressa com uma linguagem
menos áspera: “Quem amar o pai, a mãe, o filho ou a filha mais do que a mim não
é digno de mim”. Lucas, ao invés, fala que quem não odiar “pai, mãe, mulher,
filhos, irmãos, irmãs e por fim a própria vida não pode ser meu discípulo”.
Odiar, no sentido semítico, significa amar menos. Com isso Jesus não pretende
abolir o 4º mandamento, mas estabelecer uma hierarquia de valores, pondo o
primado em sua pessoa.
Na
segunda sentença, Jesus fala em “carregar a própria cruz”. Mateus 10,38
fala: “Quem não toma sua cruz e não me segue não é digno de mim”. Lucas
14,27, ao invés, diz: “Quem não carrega sua própria cruz e me segue não pode
ser meu discípulo”. Carregar implica uma situação de padecimento muito
maior que tomar.
Em
seguida são narradas duas parábolas: a da torre a ser construída e a da guerra
que pode terminar em derrota. Elas procuram prolongar a reflexão sobre a
seriedade do seguimento de Cristo, pois segui-lo é fruto de uma decisão
ponderada e coerente até o fim. Quem decide segui-lo deve ser realista como o
arquiteto e prudente como o rei, evitar ilusões fáceis, acreditando que basta a
boa vontade. Por outro lado, precisa ser suficientemente sábio e criativo para apostar
tudo e enfrentar os riscos que esse compromisso comporta. Por isso, ser cristão
comporta decisões e riscos que determinam toda a vida de quem fez esta opção.
REFLEXÃO
A
sabedoria é um dom que vem de Deus. Ela pertence à esfera do amor, da gratuidade
e da amizade. Por isso é preciso pedi-la, como fez Salomão.
Até
pouco tempo a palavra “cristão” era usada como sinônimo de “pessoa humana”, com
uma nuança de afeto e respeito. Dizia-se “comportar-se como cristão”, ou seja,
corretamente. Esta palavra percorreu um longo caminho desde que foi cunhada em
Antioquia, na Síria (Atos dos Apóstolos 11,16). No período das perseguições
romanas, “christianus” era sinônimo de perseguição aos cristãos, e estes o
exibiam como um titulo de glória muito alta. Quando as perseguições terminaram
expandiu-se rapidamente, perdendo primeiro o sentido negativo e mais tarde
também o positivo, quando se acreditava que todo mundo podia ser cristão.
Jesus
nos pede para “carregar a cruz e ir atrás dele” no sentido de dizer não a tudo que
pode tornar menor nossa liberdade. Como diz João Paulo II nas encíclicas
“Vanitatis esplendor” e “Evangelium vitae”, nenhum mandamento “negativo”
tem por objetivo a mortificação da vida. Ao contrário, cada proibição, cada
“não” contido em um mandamento deve ser lido como um “sim”, como um passo
autêntico em direção à própria realização.
Jesus
nos adverte que para segui-lo é necessária uma decisão consciente. Ser cristão
não é uma questão de nascimento, cultura ou ambiente, mas de opção. Hoje
existem cristãos incoerentes que defendem o aborto, o divórcio, a exploração, a
eutanásia, que não hesitam em poluir a biosfera, contanto que isso satisfaça as
exigências do consumismo.
Muitos
concílios regulamentaram a escravidão na Igreja, até que foi proibida por um
decreto de Gregório XVI no ano 40 do século XIX. Porém muitos lutaram em defesa
dos oprimidos, como os dominicanos São Domingos e Bartolomeu de Las Casas, o
jesuíta Pedro Claver...
Não
faltaram no século XVII muitos teóricos da escravidão, apresentando-a como um
bem. Basta lembrar Malovet em “Mémoire sur l’esclavage des nègres e Linguet
em Theories des lois civiles”. Eles sustentaram que antes do Colonialismo
reinava na África o caos social, e com a chegada dos brancos o estilo de vida
da população melhorou. Escreveram que seu traslado para a América foi um
progresso.
Jesus
nos ensina no Evangelho de hoje que quando se assume uma tarefa é preciso
avaliar as possibilidades e os recursos disponíveis para levá-la adiante. Ser
discípulo de Jesus é um grande empreendimento na vida. Para isso precisamos
conhecer bem os meios que possuímos, como os bons empresários, que fazem com
freqüência um balanço de seus negócios, examinando lucros e perdas,
identificando as causas de um mau negócio.
Para
isso é útil fazer no final do dia um balanço de nossas atividades e atitudes,
um exame de consciência, não buscando uma visão superficial e rotineira, mas
uma revisão igual à de um “bom banqueiro que computa todos os dias suas perdas
e ganhos. Ele não pode fazer isso com detalhe se não registrar tudo num livro
de contabilidade e assim um olhar a todas e a cada uma das anotações lhe mostra
a situação de todo dia” (são João Clímaco).
Para
construir a torre que Deus espera de nós, para travar a batalha contra o
inimigo da alma, devemos ter consciência de nossos recursos, das ajudas de que
precisamos, dos flancos que deixamos desguarnecidos à mercê do inimigo, dos
defeitos que conhecemos e devemos corrigir, das inspirações que nos convidam a
fazer o bem e servir o outro e que ficaram sem resposta, da mediocridade
espiritual etc. Devemos estar prevenidos contra o demônio, que tentará nos
fechar as portas da verdade para que não vejamos nossas fraquezas, encarando-as
como detalhes de pouca importância, e assim caiamos nas malhas da apatia ou da
tibieza.
Para
sair desta situação nebulosa precisamos ter a coragem de perguntar: Onde está o
meu coração? Quais são as razões que me levam a comportar-me assim? Em que
coisas a minha mente e imaginação está habitualmente? Por isso, nosso exame de
consciência diário deve ser um diálogo entre nossa alma e Deus e não uma
simples reflexão sobre nosso comportamento durante o dia. Portanto, para
fazê-lo são necessários recolhimento e espírito de oração, pedindo ao Senhor: “Domine,
ut videam!” - “Senhor, que eu veja!”.
Pedir
ao Senhor luzes para perceber nossos erros, para ver o que deve ser arrancado
de nossa vida e o que deve ser melhorado: caráter, trabalho, otimismo,
apostolado, alegria, compreensão...
Depois
disso é preciso contrição pelos pecados e daí brotarão alguns propósitos, obras
de retificação que agradarão a Deus, propostas concretas como sorrir para
alguém que é antipático, fazer uma pequena mortificação, rezar com mais
atenção, guardar melhor a vista. Serão propósitos decididos para os quais se
deve pedir a ajuda de Deus, porque, sendo pequenos, sem sua ajuda nada
conseguiremos. Só assim teremos nossa alma cheia de paz e alegria e o
entusiasmo de progredir no nosso caminho em direção a Deus e ao nosso próximo.
padre
José Antonio Bertolin, OSJ
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