Primeira leitura: Eclesiástico 3,19-21.30-31
DOÇURA E HUMILDADE: DUREZA DO CORAÇÃO
Este livro faz parte da bíblia grega. Não aparece
no cânon hebraico e, portanto, é um livro deuterocanônico aceito pela Igreja
católica. Originalmente foi escrito em hebraico, do qual foram recuperados aproximadamente
três terços. Foi escrito aproximadamente no ano 190-180 a.C. por Jesus Ben
Sirac. Possui um gênero sapiencial e trata de diferentes temas sem uma ordem
estabelecida.
A razão disso é que no início do século II a.C. os hebreus
passaram do domínio dos Ptolomeus (Egito) para o dos Selêucidas (Síria), os
quais, a fim de reduzir os conflitos externos a que o império estava exposto,
promoveram uma política de assimilação e procuraram impor aos povos dominados a
cultura, a religião e os costumes gregos. Era um imperialismo cultural, que
começou a ameaçar e destruir a identidade cultural e religiosa dos judeus.
Entre os judeus surgiu uma corrente disposta a se abrir ao espírito grego,
desejando adaptar o judaísmo a uma civilização mais universal. Outra ala,
porém, se opôs a isso, procurando salvaguardar a vocação e a fé de Israel.
Diante disto, Ben Sirac escreveu este livro, uma
espécie de meditação sobre a fidelidade hebraica, procurando reavivar a memória
e a consciência histórica do seu povo, a fim de mostrar sua identidade própria
e o valor perene de suas tradições. O texto original hebraico desapareceu no
século XI a.C. e foi recuperado em parte em 1900 nas grutas de Qunran.
O tema do nosso texto situa-se no contexto do
imperialismo cultural selêucida. De fato, o texto coloca frente a frente duas
atitudes: a dos “humildes” dominados e a dos “orgulhosos” que tentam impor sua
religião, cultura e costumes. O autor exorta a comportar-se com humildade,
mansidão e docilidade, pois o Senhor gosta daqueles que não se ensoberbecem com
seu ranking social. Fazer-se pequeno é confiar em Deus. São pessoas desse tipo
que Deus glorifica (Lucas 1,48-49). Por que considerar-se grande? Só Deus é
grande (v.20). Portanto, fazer-se pequeno é reconhecer a grandeza de Deus, pois
o orgulho decorre da auto-suficiência, criando um deus à sua imagem e
semelhança. O orgulhoso se absolutiza, assim como absolutiza coisas, culturas
etc. A verdadeira humildade consiste em reconhecer-se limitado, e isto é
condição para obter a graça de Deus.
Por fim, o autor convida o povo a valorizar os
provérbios sábios, pois estes dão força aos humildes para conseguir a fé.
Destaca também a possibilidade de os homens apagarem seus pecados, mediante
gestos concretos de atenção aos pobres. Isto evidencia que o pecado, além de
ser uma ruptura com Deus, é também uma ruptura com o próximo. Restaurando-se o
equilíbrio com o próximo, restaura-se também o equilíbrio com Deus.
Segunda leitura: Hebreus 12,18-19.22-24a
AS DUAS ALIANÇAS
Esta carta é dirigida aos cristãos que perderam o
sentido da vocação cristã. É dirigida, portanto, a um grupo de cristãos em
crise. Nela, o autor explicita a superioridade da nova Aliança sobre a velha.
Esclarece o modo como Israel experimentou Deus no passado: ele fez experiência
de um Deus distante, e na Aliança do Sinai o povo não pôde se aproximar da
montanha. Mas, por meio da morte e ressurreição de Jesus, o povo se aproximou
da Jerusalém celeste. Em Jesus Deus tornou-se íntimo dos homens.
Nos versículos 18-19 o autor, usando expressões do
Êxodo e do Deuteronômio, evoca a Aliança do Sinai, faz uma descrição rica em
elementos teofânicos que significam a presença de Deus, uma presença percebida
como terrificante. O autor usa imagens veterotestamentárias, mais acessíveis
aos destinatários, para poder descrever a novidade cristã (montanha santa,
cidade de Deus, Jerusalém celeste, anjos...). O monte Sião era a parte mais
alta da Jerusalém davídica, a Acrópole, o lugar que Javé havia escolhido para
morar com o seu povo (Salmo 48,2-4).
Em suma, para o autor havia dois modos de
experimentar Deus:
- um do passado no deserto, onde Deus se mostrou no
Sinai;
- outro por meio de Jesus Cristo, que veio morar em
nosso meio. Jesus faz dos cristãos uma assembléia de primogênitos, ou seja, de consagrados,
cujos nomes estão inscritos nos céus.
Evangelho: Lucas 14,1.7-14
LIÇÃO DE HUMILDADE: ESCOLHER O ÚLTIMO LUGAR
O texto destaca uma conversa sapiencial de Jesus
com os fariseus. Era um sábado, dia marcado pela piedade judaica, dia sagrado
para ser dedicado a Deus (culto, orações, estudo da Lei...), e entre os
convidados deste homem de posse estavam pessoas selecionadas. Na cena, como que
por encanto, apareceu um hidrópico e com ele apresentou-se o problema da
legitimidade ou não de estar no banquete festivo, pois a doença era sempre um
sinal da maldição de Deus e por isso causa de rejeição (Levítico 21,16-24).
Jesus se encontrava no banquete como convidado de
honra e observou o modo como alguns se colocavam ao lado do dono da festa (v.7).
Era costume entre os fariseus reivindicar os primeiros lugares como intérpretes
da lei, o que os equiparava a Deus (Lucas 11,43; 2,46). Como todos o estivessem
observando, Jesus propôs uma parábola, que na prática foi uma lição de
humildade. Nela destacou a necessidade de se ocupar os últimos lugares. Parece
ser uma recomendação de etiqueta para as grandes ocasiões. Na prática, as
condições de acesso aos banquetes (abaixar-se para ser elevado) são as mesmas
para fazer parte do Reino de Deus: exige-se conversão, troca do modo de pensar.
Por fim, Jesus dá um conselho às elites sobre como fazer para entrar na
dinâmica do Reino.
Na primeira parte do texto há um ensinamento
sapiencial que se conclui com a frase: “Quem se exalta será humilhado”. Na
segunda parte o ensinamento diz respeito aos pobres, os quais, quando
agraciados e não tendo como retribuir, obtêm que Deus dê o prêmio pelo bem que
receberam.
O ensinamento deste texto nos remete ao texto de
Provérbios 25,6-7. É um ensinamento de caráter sapiencial que exprime a
necessidade de se ter uma atitude interior de humildade. O ensinamento de Jesus
nesta parábola não é formalizado de tal maneira que, ao chegar a uma refeição,
a pessoa deva logo escolher um lugar inferior àquele que lhe cabe com o
objetivo de ser chamada para frente. Comportar-se assim seria um formalismo que
estimularia o orgulho e não a humildade. Ele deve ser tomado como uma exortação
que se dirige ao coração e se traduz em atitude concreta, pois Jesus falava ao
ver a atitude dos fariseus soberbos e orgulhosos. Por isso Jesus disse: “Aquele
que for o maior entre vocês se humilhe” (Mateus 23,11-12; Ezezquiel 17,24;
21,31; Tiago 4,10) .
O conselho de Jesus é para que as lideranças entrem
na dinâmica do Reino e não para que dêem com o objetivo de receber em troca,
pois o Reino de Deus não é comércio, mas possui relações de solidariedade e
gratuidade.
De fato, no tempo de Jesus os aleijados, os cegos,
os doentes, os leprosos... eram discriminados devido a suas condições físicas.
Mas a nova dinâmica inaugurada por Jesus inverteu as posições, privilegiando os
pobres, embora o Deuteronômio (14,28-29) estipulasse que no fim de cada triênio
devessem ser reservados dez por cento aos pobres e Tobias, no capítulo 2,1-2,
também apresentasse este exemplo de solidariedade.
Na dinâmica do Reino, a temática da humildade é a
manifestação da verdadeira grandeza do homem. Não se trata de uma regra de boa
educação, mas de indicações pertinentes ao relacionamento com Deus e com os
outros.
REFLEXÃO
A primeira leitura deste domingo nos ensina que a
humildade se contrapõe ao orgulho, pois o humilde é sábio e quem pratica esta
virtude obtém a benevolência de Deus e a estima dos homens, porque o humilde se
abre para Deus e para os homens. A humildade, tida como sabedoria, é proclamada
no Magnificat e nas palavras e ações de Jesus, que veio para servir, lavando os
pés dos discípulos.
Santo Agostinho dizia em seu 59º Sermão: “Você quer
ser grande de verdade? Comece a ser bem pequeno. Você pensa em edificar um
edifício da maior altura? Comece colocando o fundamento da humildade”.
A humildade consiste em ser pequeno. Deus não é
pequeno, nem se sente pequeno, mas se fez pequeno (kenosis), e fez isso
não por interesse, mas para servir. Portanto, a humildade é basilar. Quando ela
falta ao nosso edifício cristão, falta o fundamento.
A humildade e a mansidão parecem virtudes
monásticas, porém Ben Sirac as recomenda a todos. Não é uma escolha
facultativa, mas uma exigência para todos, e as leituras de hoje nos oferecem
uma reflexão aprofundada sobre esta virtude. Pascal dizia: “Jesus Cristo é um
Deus de quem se aproxima sem orgulho e sob o qual se humilha sem desespero”. E
Santo Agostinho dizia que o “homem é um mendigo de Deus: precisamos reconhecer
que não somos nada e que Deus é tudo”. Também Popini disse que “o homem, para
elevar-se, deve colocar-se de joelhos”. E Tomás de Aquino buscava o segredo da
humildade em três condições:
01) tudo o que recebemos de bom vem de Deus;
02) outros em nosso lugar e com as graças que
recebemos teriam progredido muito mais;
03) se nos fossem concedidos somente os dons
que muitos de nossos irmãos receberam, estaríamos muito mais atrás deles.
Ruisbroek, o maior e mais agudo místico alemão, que
é colocado em cena por Goethe na segunda parte do Fausto, assumiu em seu
mosteiro a função de carregar estrumes. Muita gente ilustre vinha procurá-lo e
o encontrava no estábulo ou com um balaio de estrume nas mãos. Ele tinha esta
máxima: “A alma que não procura honrarias se eleva na mais alta adoração”.
Bloon descreve a humildade a partir de sua base
etimológica: o termo latino hummus quer dizer terra fértil. A humildade é a
condição da terra. Ela está sempre ali e é pisada por todos. A terra é o lugar
que recolhe todo tipo de rejeição, de resto. Está ali silenciosa, aceita tudo e
transforma em riqueza todo lixo em decomposição. Consegue inclusive transformar
o que é corruptível em vida nova, é receptiva ao sol e à chuva, está pronta a
receber qualquer semente...
No Evangelho de hoje Jesus nos propõe duas atitudes
para ter o Reino de Deus: a humildade e o amor desinteressado ao próximo. Na
primeira parte da parábola, Jesus propõe aos convidados não uma simples norma
de educação ou um estratagema para ser bem visto, mas uma atitude religiosa que
diz respeito ao lugar no banquete do Reino. A segunda parte do Evangelho é uma
instrução do fariseu que convidou Jesus para a refeição na qual Jesus
explicitou que a escolha dos convidados deve excluir o cálculo interesseiro,
porque a dinâmica do Reino é o amor sem fatura. Ele ensinou categoricamente: “Todo
aquele que se eleva será rebaixado e aquele que se rebaixa será exaltado” (Lucas
14,11).
Para o exegeta J. Jeremias, a origem deste dito (loguion)
de Cristo é provavelmente um provérbio do rabino Hallel (por volta do ano 20
a.C.), mas o enfoque que Jesus lhe dá se converte em “um sinal escatológico que
tem em vista o banquete celestial e chama a renunciar, diante de Deus, à
própria justiça e convida à humildade, à estima de si mesmo”. A insistência com
que este dito de Jesus se repete parece indicar que era uma das normas de vida
nas comunidades apostólicas do início.
Humildade deriva do latim “humilis”, que por
sua vez provém de “hummus” (terra). Humilde é, portanto, aquele que se
move perto da terra. É aquele que reconhece com sabedoria a distância que o
separa do seu criador. Jesus nos mostra hoje a prática através do
reconhecimento de nossas limitações, da partilha com os demais.
Para os homens, o primeiro lugar sempre atrai o
olhar e o desejo de todos, porque o êxito dos vencedores se converteu em padrão
de conduta. Os próprios discípulos de Jesus ambicionaram os primeiros lugares
no reino messiânico político de Jesus. Porém Jesus se humilhou com seu próprio
exemplo, escolhendo o último lugar, por isso foi exaltado (Filipenses 2,6ss.)
Uma conduta humilde no estilo de Jesus é incômoda e
chocante, indigna do homem atual que idolatra sua própria imagem, sua
autonomia, prestígio, dignidade. Infelizmente, todos nós temos o mesmo
pensamento. Ninguém quer ser o último da fila e não entra em nossa cabeça que a
humildade é uma atitude religiosa mais própria do homem diante de Deus. Ela não
o diminui, mas o coloca em seu lugar. É o estilo mais social que possibilita a
relação humana em alteridade com seus semelhantes. Mas, para entender isso, precisamos
ser “pobres de espírito” diante de Deus, ou seja, vazios de nós mesmos para
podermos ser plenos dele.
A humildade não deve ser apenas uma disposição
pessoal, mas também social e eclesial, pois a convivência humana não se
constrói sobre interesses individuais, mas sobre relacionamentos fraternos
entre iguais.
O ensinamento de Jesus sobre a humildade na
parábola de hoje nos lembra a necessidade de ocuparmos nosso lugar, de
evitarmos que a ambição nos cegue e nos leve a fazer de nossa vida uma corrida
louca visando postos mais altos. São João Crisóstomo nos pergunta: “Por que
você ambiciona os primeiros lugares? Para estar acima dos outros?“. A
verdadeira humildade não se opõe ao desejo legítimo de progredir na vida
social, de gozar o devido prestígio profissional, de receber louvor e honra.
Tudo isso é compatível com a humildade, mas quem é humilde não se exibe. No
posto que ocupa sabe que seu objetivo não é brilhar e ser considerado, mas
cumprir uma missão.
A virtude da humildade não tem nada a ver com timidez,
pusilanimidade ou mediocridade. É ter plena consciência dos talentos recebidos
para fazê-los render. Ela impede que nos jactemos deles e caiamos na presunção.
Leva-nos a dizer como o salmista: “Non nobis, Domine, non nobis. Sed nomine
tuo da gloriam” - “Não a nós, Senhor, não a nós, mas a ti seja dada toda a
glória” (Sl. 113,1).
A humildade faz com que reconheçamos que nossos
talentos vêm de Deus. São bondade divina, para que nos coloquemos em nosso
lugar, pois “somos como um jumento que o servo, quando quer, carrega com
tesouros de grande valor” (Ut iumentum factus sum apud te, Domine). Por
isso, para crescer na virtude da humildade, é necessário que reconheçamos e
admiremos os dons com que Deus nos presenteou, pois, “apesar de nossas misérias
pessoais, somos portadores de essências divinas de valor inestimável”.
Somos instrumentos de Deus para que ele atue no
mundo. Portanto, a humildade elimina o complexo de inferioridade, que com
freqüência é causa da soberba e nos torna alegres e serviçais.
Mas, para poder caminhar pelas sendas da humildade,
temos que saber aceitar as humilhações externas que nos atingem, sem nos deixar
abater. Devemos também aprender a voltar atrás quando necessário, pois nem
sempre as questões humanas têm uma única solução. Os outros também podem ter
razão, podem ver o mesmo assunto de um ponto de vista diferente, com outra luz,
outra sombra ou outros contornos. Além disso, voltar atrás quando se erra não é
só uma questão de humildade, mas de honradez elementar.
Como praticar essa virtude? Todos os dias, nas
muitas ocasiões. Sendo dóceis aos conselhos de quem nos orienta, acolhendo de
bom grado as correções que nos fazem, lutando contra a vaidade, reprimindo a
vontade de dizer sempre a última palavra, procurando não ser o centro das
atenções, reconhecendo nossos erros, esforçando-nos para ver nosso próximo
sempre com uma visão positiva...
Existe, porém, uma falsa humildade que nos leva a
dizer que não somos nada, mas sentiríamos muito se nos tomassem ao pé da letra.
Em sentido contrário, fingimos esconder-nos e fugir para que nos procurem e
perguntem por nós, damos a entender que preferimos ser os últimos e nos
situamos num canto da mesa, para que nos dêem a cabeceira. A verdadeira
humildade procura não dar mostras de sê-lo, nem usa muitas palavras para
proclamá-la (São Francisco de Sales). A verdadeira humildade está cheia de
simplicidade e brota do mais fundo do coração: “Não abaixemos nunca os olhos,
mas humilhemos nossos corações. Não demos a entender que queremos ser os
últimos, quando desejamos ser os primeiros”.
Com a humildade cultivamos inúmeros bens.
Combatemos a soberba, que é um obstáculo que se interpõe entre nós e Deus. Ela
nos atrai o amor de Deus e o apreço dos outros (Eclesiástico 3,19-21; 30-31).
Quem é humilde compreende melhor a vontade divina e
sabe o que Deus lhe pede em cada circunstância. O soberbo, ao contrário, só tem
olhos para seus gostos, suas ambições, a realização de seus caprichos. O
humilde respeita o outro, suas opiniões e coisas. Possui uma fortaleza especial,
pois se apóia em Deus: “Quando sou fraco, é então que sou forte” (2 Coríntios
12,10).
padre José
Antonio Bertolin, OSJ
www.santuariosaojose.com.br
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