A liturgia
de hoje fala-nos (outra vez) de um Deus que ama e cujo amor nos desafia a
ultrapassar as nossas escravidões para chegar à vida nova, à ressurreição.
A primeira
leitura apresenta-nos o Deus libertador, que acompanha com solicitude e
amor a caminhada do seu Povo para a liberdade. Esse “caminho” é o paradigma
dessa outra libertação que Deus nos convida a fazer neste tempo de Quaresma e
que nos levará à Terra Prometida onde corre a vida nova.
A segunda
leitura é um desafio a libertar-nos do “lixo” que impede a descoberta do
fundamental: a comunhão com Cristo, a identificação com Cristo, princípio da
nossa ressurreição.
O Evangelho diz-nos
que, na perspectiva de Deus, não são o castigo e a intolerância que resolvem o
problema do mal e do pecado; só o amor e a misericórdia geram ativamente vida e
fazem nascer o homem novo. É esta lógica – a lógica de Deus – que somos
convidados a assumir na nossa relação com os irmãos.
1º leitura: Is. 43,16–21 - AMBIENTE
O
Deutero-Isaías (autor deste texto) é um profeta anônimo, da escola de Isaías,
que cumpriu a sua missão profética entre os exilados. Estamos no séc. VI a.C.,
na Babilônia. Os judeus exilados estão frustrados e desorientados, pois a
libertação tarda e Deus parece ter-Se esquecido do seu Povo. Sonham com um novo
êxodo, no qual Jahwéh Se manifeste, outra vez, como o Deus libertador.
Na primeira
parte do “livro da consolação” (Is. 40-48), o profeta anuncia a iminência da
libertação e compara a saída da Babilônia e a volta à Terra Prometida com o
êxodo do
Egito. É
neste contexto que deve ser enquadrada a primeira leitura de hoje.
MENSAGEM
Este oráculo
de salvação começa por recordar a “mãe de todas as libertações” (a libertação
da escravidão do Egito). Mas evocar essa realidade não pode ser uma fuga
nostálgica para o passado, um repousar inerte na saudade, um refúgio contra o
medo do presente (se assim for, esse passado vai obscurecer a perspectiva do
Povo, impedindo-o de reconhecer os sinais que já se manifestam e que anunciam
um futuro de liberdade e de vida nova)… A lembrança do passado é válida quando
alimenta a esperança e prepara para um futuro novo. Na ação libertadora de Deus
em favor do Povo oprimido pelo faraó, o judeu crente descobre um padrão: o Deus
que assim agiu é o Deus que não tolera a opressão e que está do lado dos
oprimidos; por isso, não deixará de Se manifestar em circunstâncias análogas,
operando a salvação do Povo escravizado.
De fato –
diz o profeta – o Deus libertador em quem acreditamos e em quem esperamos não
demorará a atuar. Aproxima-se o dia de um novo êxodo, de uma nova libertação.
No entanto, esse novo êxodo será algo de grandioso, que eclipsará o antigo
êxodo: o Povo libertado percorrerá um caminho fácil no regresso à sua Terra e não
conhecerá o desespero da sede e da falta de comida porque Jahwéh vai fazer
brotar rios na paisagem desolada do deserto. A atuação de Deus manifestará, de
forma clara, o amor e a solicitude de Deus pelo seu Povo. Diante da ação de
Jahwéh, o Povo tomará consciência de que é o Povo eleito e dará a resposta
adequada: louvará o seu Deus pelos dons recebidos.
ATUALIZAÇÃO
♦ O
nosso Deus é o Deus libertador, que não Se conforma com qualquer escravidão que
roube a vida e a dignidade do homem e que nos pede, permanentemente, que
lutemos contra todas as formas de sujeição. Quais são as grandes formas de
escravidão que impedem, hoje, a liberdade e a vida? Neste tempo de
transformação e de mudança, o que posso eu fazer para que a escravidão e a
injustiça não mais destruam a vida dos homens meus irmãos?
♦ A
vida cristã é uma caminhada permanente, rumo à Páscoa, rumo à ressurreição.
Neste tempo
de Quaresma, somos convidados a deixar definitivamente para trás o passado e a
aderir à vida nova que Deus nos propõe. Cada Quaresma é um abalo que nos
desinstala, que põe em causa o nosso comodismo, que nos convida a olhar para o
futuro e a ir além de nós mesmos, na busca do Homem Novo. O que é que, na minha
vida, necessita de ser transformado? O que é que ainda me mantém alienado,
prisioneiro e escravo? O que é que me impede de imprimir à minha vida um novo
dinamismo, de forma que o Homem Novo se manifeste em mim?
2º leitura: Fl. 3,8–14 - AMBIENTE
A carta aos
Filipenses é uma carta “afetuosa e terna” que Paulo escreve da prisão aos seus
amigos de Filipos. Os cristãos desta cidade, preocupados com a situação de
Paulo, enviaram-lhe dinheiro e um membro da comunidade (Epafrodito), que cuidou
de Paulo e o acompanhou na solidão do cárcere. Com o coração cheio de afeto,
Paulo agradece aos seus queridos filhos de Filipos; e, por outro lado, avisa-os
para que não se deixem levar pelos “cães”, pelos “maus obreiros” (Fl. 3,2) que,
em Filipos como em todo o lado, semeiam a dúvida e a confusão. Quem são estes?
São ainda esses “judaizantes”, “os da mutilação” (Fl. 3,2), que proclamavam a
obrigatoriedade da circuncisão e da obediência à Lei de Moisés.
O texto que
nos é proposto insere-se nesse discurso de polêmica contra os adversários
“judaizantes” (cf. Fl. 3). Paulo pede aos Filipenses que não se deixem enganar
por esses falsos pregadores, super-entusiastas, que se apresentam com títulos
de glória e que parecem esquecer que só Cristo é importante.
MENSAGEM
Ao exemplo e
à pregação desses “judaizantes”, que alardeiam os mais diversos títulos de glória,
Paulo contrapõe o seu próprio exemplo. Ele tem mais razões do que os outros
para apresentar títulos (ele que foi circuncidado com oito dias; que é hebreu
genuíno, filho de hebreus, da tribo de Benjamim; que foi fariseu e que viveu
irrepreensivelmente como filho da Lei – cf. Fl. 3,5-6); mas a única coisa que
lhe interessa – porque é a única coisa que tem eficácia salvadora – é conhecer Jesus
Cristo. É claro que os termos conhecer econhecimento devem
ser aqui entendidos no mais genuíno sentido da tradição bíblica, quer dizer, no
sentido de “entrar em comunhão de vida e de destino” com uma pessoa. Aquilo que
ele procura agora e que é o fundamental é identificar-se com Cristo, a fim de
com Ele ressuscitar para a vida nova.
Os
Filipenses – e, claro, os crentes de todas as épocas – farão bem em imitar
Paulo e esquecer tudo o resto (a circuncisão, os ritos da Lei, os títulos de
glória são apenas “prejuízo” ou “lixo” – v. 8). Só a identificação com Cristo,
a comunhão de vida e de destino com Cristo é importante; só uma vida vivida na
entrega, no dom, no amor que se faz serviço aos outros, ao jeito de Cristo,
conduz à ressurreição, à vida nova.
Mais um dado
importante: Paulo está consciente que partilhar a vida e o destino de Cristo
implica um esforço diário, nunca terminado; é, até, possível o fracasso, pois o
nosso orgulho e egoísmo estão sempre à espreita e o caminho da entrega e do dom
da vida é exigente. Mas é o único caminho possível, o único que faz sentido,
para quem descobre a novidade de Cristo se apaixona por ela. Quem quer chegar à
vida nova, à ressurreição, tem de seguir esse caminho.
ATUALIZAÇÃO
♦ Neste
tempo favorável à conversão, é importante revermos aquilo que dá sentido à
nossa vida. É possível que detectemos no centro dos nossos interesses algum
desse “lixo” de que Paulo fala (interesses materiais e egoístas, preocupações
com honras ou com títulos humanos, apostas incondicionais em pessoas ou
ideologias…); mas Paulo convida a dar prioridade ao que é importante – a uma
vida de comunhão com Cristo, que nos leve a uma identificação com o seu amor, o
seu serviço, a sua entrega. Qual é o “lixo” que me impede de nascer, com
Cristo, para a vida nova?
♦ É
preciso, igualmente, ter consciência de que este caminho de conversão a Cristo
é um caminho que está, permanentemente, a fazer-se. O cristão está consciente
de que, enquanto caminha neste mundo, “ainda não chegou à meta”. A
identificação com Cristo deve ser, pois, um desafio constante, que exige um
empenho diário, até chegarmos à meta do Homem Novo.
Evangelho – Jo 8,1-11 - AMBIENTE
Esta pequena
unidade literária não pertencia, inicialmente, ao Evangelho de João: ela rompe
o contexto de Jo. 7-8, não possui as características do estilo joânico e o seu
conteúdo não se encaixa neste Evangelho (que não se interessa por problemas
deste gênero). Além disso, é omitida pela maior parte dos manuscritos antigos; e
as referências dos Padres da Igreja a este episódio são muito escassas. Outros
manuscritos colocam-no dentro do Evangelho, mas em sítios diversos, por
exemplo, no final do mesmo – como fazem algumas versões modernas da Bíblia.
Numa série de manuscritos, encontramo-la no Evangelho de Lucas (após Lc.
21,38), que seria um dos lugares mais adequados, dado o interesse de Lucas em
destacar a misericórdia de Jesus. Trata-se de uma tradição independente que, no
entanto, foi considerada pela Igreja como inspirada por Deus: não há dúvida que
deve ser vista como “Palavra de Deus”.
Seja como
for, o cenário de fundo coloca-nos frente a uma mulher apanhada a cometer
adultério. De acordo com Lv. 20,10 e Dt. 22,22-24, a mulher devia ser morta. A
Lei deve ser aplicada? É este problema que é apresentado a Jesus.
MENSAGEM
Temos,
portanto, diante de Jesus uma mulher que, de acordo com a Lei, tinha cometido
uma falta que merecia a morte. Para os escribas e fariseus, trata-se de uma
oportunidade de ouro para testar a ortodoxia de Jesus e a sua fidelidade às
exigências da Lei; para Jesus, trata-se de revelar a atitude de Deus frente ao
pecado e ao pecador.
Apresentada
a questão, Jesus não procura branquear o pecado ou desculpabilizar o
comportamento da mulher. Ele sabe que o pecado não é um caminho aceitável, pois
gera infelicidade e rouba a paz… No entanto, também não aceita pactuar com uma
Lei que, em nome de Deus, gera morte. Porque os esquemas de Deus são diferentes
dos esquemas da Lei, Jesus fica em silêncio durante uns momentos e escreve no
chão, como se pretendesse dar tempo aos participantes da cena para perceber
aquilo que estava em causa. Finalmente, convida os acusadores a tomar
consciência de que o pecado é uma consequência dos nossos limites e
fragilidades e que Deus entende isso: “quem de vós estiver sem pecado, atire a
primeira pedra”. E continua a escrever no chão, à espera que os acusadores da
mulher interiorizem a lógica de Deus – a lógica da tolerância e da compreensão.
Quando os escribas e fariseus se retiram, Jesus nem sequer pergunta à mulher se
ela está ou não arrependida: convida-a, apenas, a seguir um caminho novo, de
liberdade e de paz (“vai e não tornes a pecar”).
A lógica de
Deus não é uma lógica de morte, mas uma lógica de vida; a proposta que Deus faz
aos homens através de Jesus não passa pela eliminação dos que erram, mas por um
convite à vida nova, à conversão, à transformação, à libertação de tudo o que
oprime e escraviza; e destruir ou matar em nome de Deus ou em nome de uma
qualquer moral é uma ofensa inqualificável a esse Deus da vida e do amor, que
apenas quer a realização plena do homem.
O episódio
põe em relevo, por outro lado, a intransigência e a hipocrisia do homem, sempre
disposto a julgar e a condenar… os outros. Jesus denuncia, aqui, a lógica
daqueles que se sentem perfeitos e auto-suficientes, sem reconhecerem que
estamos todos a caminho e que, enquanto caminhamos, somos imperfeitos e
limitados. É preciso reconhecer, com humildade e simplicidade, que necessitamos
todos da ajuda do amor e da misericórdia de Deus para chegar à vida plena do Homem
Novo. A única atitude que faz sentido, neste esquema, é assumir para com os
nossos irmãos a tolerância e a misericórdia que Deus tem para com todos os
homens.
Na atitude
de Jesus, torna-se particularmente evidente a misericórdia de Deus para com
todos aqueles que a teologia oficial considerava marginais. Os pecadores
públicos, os proscritos, os transgressores notórios da Lei e da moral encontram
em Jesus um sinal do Deus que os ama e que lhes diz: “Eu não te condeno”. Sem
excluir ninguém, Jesus promoveu os desclassificados, deu-lhes dignidade,
tornou-os pessoas, libertou-os, apontou-lhes o caminho da vida nova, da vida
plena. A dinâmica de Deus é uma dinâmica de misericórdia, pois só o amor
transforma e permite a superação dos limites humanos. É essa a realidade do
Reino de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O
nosso Deus – di-lo de forma clara o Evangelho de hoje – funciona na lógica da
misericórdia e não na lógica da Lei; Ele não quer a morte daquele que errou,
mas a libertação plena do homem. Nesta lógica, só a misericórdia e o amor se
encaixam: só eles são capazes de mostrar o sem sentido da escravidão e de
soprar a esperança, a ânsia de superação, o desejo de uma vida nova. A força de
Deus (essa força que nos projeta para a vida em plenitude) não está no castigo,
mas está no amor.
♦ No
nosso mundo, o fundamentalismo e a intransigência falam frequentemente mais
alto do que o amor: mata-se, oprime-se, escraviza-se em nome de Deus;
desacredita-se, calunia-se, em razão de preconceitos; marginaliza-se em nome da
moral e dos bons costumes… Esta lógica (bem longe da misericórdia e do amor de
Deus) leva-nos a algum lado? A intolerância alguma vez gerou alguma coisa, além
de violência, de morte, de lágrimas, de sofrimento?
♦ Quantas
vezes nas nossas comunidades cristãs (ou religiosas) a absolutização da lei
causa marginalização e sofrimento. Quantas vezes se atiram pedras aos outros,
esquecendo os nossos próprios telhados de vidro… Quantas vezes marcamos os
outros com o estigma da culpa e queimamos a pessoa em “julgamentos sumários”
sem direito a defesa… Esta é a lógica de Deus? O que nos interessa: a
libertação do nosso irmão, ou o seu afundamento?
♦ Neste
caminho quaresmal, há duas coisas a considerar: Deus desafia-nos à superação de
todas as realidades que nos escravizam e sublinha esse desafio com o seu amor e
a sua misericórdia; e convida-nos a despir as roupagens da hipocrisia e da
intolerância, para vestir as do amor.
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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