sábado, 23 de março de 2013

RAMOS E PAIXÃO DO SENHOR - BENDITO O QUE VEM EM NOME DO SENHOR.

 
 
A liturgia deste último domingo da Quaresma convida-nos a contemplar esse Deus que, por amor, desceu ao nosso encontro, partilhou a nossa humanidade, fez-Se servo dos homens, deixou-Se matar para que o egoísmo e o pecado fossem vencidos. A cruz (que a liturgia deste domingo coloca no horizonte próximo de Jesus) apresenta-nos a lição suprema, o último passo desse caminho de vida nova que, em Jesus, Deus nos propõe: a doação da vida por amor.
 
A primeira leitura apresenta-nos um profeta anônimo, chamado por Deus a testemunhar no meio das nações a Palavra da salvação. Apesar do sofrimento e da perseguição, o profeta confiou em Deus e concretizou, com teimosa fidelidade, os projetos de Deus. Os primeiros cristãos viram neste “servo” a figura de Jesus.
A segunda leitura apresenta-nos o exemplo de Cristo. Ele prescindiu do orgulho e da arrogância, para escolher a obediência ao Pai e o serviço aos homens, até ao dom da vida. É esse mesmo caminho de vida que a Palavra de Deus nos propõe.
O Evangelho convida-nos a contemplar a paixão e morte de Jesus: é o momento supremo de uma vida feita dom e serviço, a fim de libertar os homens de tudo aquilo que gera egoísmo e escravidão. Na cruz revela-se o amor de Deus, esse amor que não guarda nada para si, mas que se faz dom total.
 
1ª leitura: Is. 50,4-7 - AMBIENTE
 
No livro do Deutero-Isaías (Is. 40-55), encontramos quatro poemas que se destacam do resto do texto (cf. Is. 42,1-9;49,1-13;50,4-11;52,13-53,12). Apresentam-nos uma figura enigmática de um “servo de Jahwéh”, que recebeu de Deus uma missão. Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem caráter universal; concretiza-se no sofrimento, na dor e no abandono incondicional à Palavra e aos projetos de Deus. Apesar de a missão terminar num aparente insucesso, a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; do seu sofrimento resulta o perdão para o pecado do povo. Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários.
 
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a ser um testemunho de Deus no meio do sofrimento em que vive? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Jahwéh”.
 
MENSAGEM
 
O texto dá a palavra a um personagem anônimo, que fala do seu chamamento por Deus para a missão. Ele não se intitula “profeta”; porém, narra a sua vocação, com os elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.
Em primeiro lugar, a missão que este “profeta” recebe de Deus tem claramente a ver com o anúncio da Palavra. O profeta é o homem da Palavra, através de quem Deus fala; a proposta de redenção que Deus faz a todos aqueles que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. O profeta é inteiramente modelado por Deus e não opõe resistência nem ao chamamento, nem à Palavra que Deus lhe confia; mas tem de estar, continuamente, numa atitude de escuta de Deus, para que possa depois apresentar – com fidelidade – essa Palavra de Deus para os homens.
 
Em segundo lugar, a missão profética realiza-se no sofrimento e na dor. É um tema sobejamente conhecido da literatura profética: o anúncio das propostas de Deus provoca resistências que, para o profeta, se consubstanciam quase sempre em dor e perseguição. No entanto, o profeta não se demite: a paixão pela Palavra sobrepõe-se ao sofrimento.
Em terceiro lugar, vem a expressão de confiança no Senhor, que não abandona aqueles a quem chama. A certeza de que não está só, mas que tem a força de Deus, torna o profeta mais forte do que a dor e o sofrimento. Por isso, o profeta “não será confundido”.
 
ATUALIZAÇÃO
 
¨ Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Jahwéh”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a libertação/salvação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera vida nova.
 
Jesus, o “servo” sofredor que faz da sua vida um dom por amor, mostra aos seus seguidores o caminho: a vida, quando é posta ao serviço da libertação dos pobres e dos oprimidos, não é perdida mesmo que pareça, em termos humanos, fracassada e sem sentido. Temos a coragem de fazer da nossa vida uma entrega radical ao projeto de Deus e à libertação dos nossos irmãos? O que é que ainda entrava a nossa aceitação de uma opção deste tipo? Temos consciência de que, ao escolher este caminho, estamos a gerar vida nova para nós e para os nossos irmãos?
¨ Temos consciência de que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o nosso mundo?
 

2ª leitura: Fl. 2,6-11 - AMBIENTE
 
A cidade de Filipos era uma cidade próspera, com uma população constituída majoritariamente por veteranos romanos do exército. Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das províncias locais e dependia diretamente do imperador; gozava, por isso, dos mesmos privilégios das cidades de Itália. A comunidade cristã, fundada por Paulo, era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2Cor. 8,1-5), por quem Paulo nutria um afeto especial. Apesar destes sinais positivos, não era, no entanto, uma comunidade perfeita… O desprendimento, a humildade e a simplicidade não eram valores demasiado apreciados entre os altivos patrícios que compunham a comunidade.
 
É neste enquadramento que podemos situar o texto que esta leitura nos apresenta. Paulo convida os Filipenses a encarnar os valores que marcaram a trajetória existencial de Cristo; para isso, utiliza um hino pré-paulino, recitado nas celebrações litúrgicas cristãs: nesse hino, ele expõe aos cristãos de Filipos o exemplo de Cristo.
 
MENSAGEM
 
Cristo Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim – constitui o motivo do hino. Dado que os filipenses são cristãos, quer dizer, dado que Cristo é o protótipo a cuja imagem estão configurados, têm a iniludível obrigação de comportar-se como Cristo. Como é o exemplo de Cristo?
O hino começa por aludir subtilmente ao contraste entre Adão (o homem que reivindicou ser como Deus e lhe desobedeceu – cf. Gn. 3,5.22) e Cristo (o Homem Novo que, ao orgulho e revolta de Adão responde com a humildade e a obediência ao Pai). A atitude de Adão trouxe fracasso e morte; a atitude de Jesus trouxe exaltação e vida.
 
Em traços precisos, o hino define o “despojamento” (“kenosis”) de Cristo: Ele não afirmou com arrogância e orgulho a sua condição divina, mas aceitou fazer-Se homem, assumindo com humildade a condição humana, para servir, para dar a vida, para revelar totalmente aos homens o ser e o amor do Pai. Não deixou de ser Deus; mas aceitou descer até aos homens, fazer-Se servidor dos homens, para garantir vida nova para os homens. Esse “abaixamento” assumiu mesmo foros de escândalo: Ele aceitou uma morte infamante – a morte de cruz – para nos ensinar a suprema lição do serviço, do amor radical, da entrega total da vida.
 
No entanto, essa entrega completa ao plano do Pai não foi uma perda nem um fracasso: a obediência e entrega de Cristo aos projetos do Pai resultaram em ressurreição e glória. Em consequência da sua obediência, do seu amor, da sua entrega, Deus fez d’Ele o “Kyrios” (“Senhor” – nome que, no Antigo Testamento, substituía o nome impronunciável de Deus); e a humanidade inteira (“os céus, a terra e os infernos”) reconhece Jesus como “o senhor” que reina sobre toda a terra e que preside à história.
É óbvio o apelo à humildade, ao desprendimento, ao dom da vida que Paulo faz aos Filipenses e a todos os crentes: o cristão deve ter como exemplo esse Cristo, servo sofredor e humilde, que fez da sua vida um dom a todos; esse caminho não levará ao aniquilamento, mas à glorificação, à vida plena.
 
ATUALIZAÇÃO
 
¨ Os valores que marcaram a existência de Cristo continuam a não ser demasiado apreciados em muitos dos nossos ambientes contemporâneos. De acordo com os critérios que presidem ao nosso mundo, os grandes “ganhadores” não são os que põem a sua vida ao serviço dos outros, com humildade e simplicidade, mas são os que enfrentam o mundo com agressividade, com auto-suficiência e fazem por ser os melhores, mesmo que isso signifique não olhar a meios para passar à frente dos outros. Como pode um cristão (obrigado a viver inserido neste mundo e a ser competitivo) conviver com estes valores?
 
¨ Paulo tem consciência de que está a pedir aos seus cristãos algo realmente difícil; mas é algo que é fundamental, à luz do exemplo de Cristo. Também a nós é pedido, nestes últimos dias antes da Páscoa, um passo em frente neste difícil caminho da humildade, do serviço, do amor: será possível que, também aqui, sejamos as testemunhas da lógica de Deus?
 

 
Evangelho: Lc. 22,14-23,56 (longa) ou Lc. 23,1-49 (breve) - 
 
Leitor 1: Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo + segundo Lucas.
Naquele tempo, 1toda a multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos. 2Começaram então a acusá-lo, dizendo:
Ass.: “Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o Rei”.
Leitor 1: 3Pilatos o interrogou:
Leitor 2: “Tu és o rei dos judeus?”
Leitor 1: Jesus respondeu, declarando:
Pres.: “Tu o dizes!”
Leitor 1: 4Então Pilatos disse aos sumos sacerdotes e à multidão:
Leitor 2: “Não encontro neste homem nenhum crime”.
Leitor 1: 5Eles, porém, insistiam:
Ass.: “Ele agita o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui”.
Leitor 1: 6Quando ouviu isto, Pilatos perguntou:
Leitor 2: “Este homem é galileu?”
Leitor 1: 7Ao saber que Jesus estava sob a autoridade de Herodes, Pilatos enviou-o a este, pois também Herodes estava em Jerusalém naqueles dias. 8Herodes ficou muito contente ao ver Jesus, pois havia muito tempo desejava vê-lo. Já ouvira falar a seu respeito e esperava vê-lo fazer algum milagre. 9Ele interrogou-o com muitas perguntas. Jesus, porém, nada lhe respondeu.
10Os sumos sacerdotes e os mestres da Lei estavam presentes e o acusavam com insistência. 11Herodes, com seus soldados, tratou Jesus com desprezo, zombou dele, vestiu-o com uma roupa vistosa e mandou-o de volta a Pilatos. 12Naquele dia Herodes e Pilatos ficaram amigos um do outro, pois antes eram inimigos.
13Então Pilatos convocou os sumos sacerdotes, os chefes e o povo, e lhes disse:
Leitor 2: 14“Vós me trouxestes este homem como se fosse um agitador do povo. Pois bem! Já o interroguei diante de vós e não encontrei nele nenhum dos crimes de que o acusais; 15nem Herodes, pois o mandou de volta para nós. Como podeis ver, ele nada fez para merecer a morte. 16Portanto, vou castigá-lo e o soltarei”.
Leitor 1: 18Toda a multidão começou a gritar:
Ass.: “Fora com ele! Solta-nos Barrabás!”
Leitor 1: 18Barrabás tinha sido preso por causa de uma revolta na cidade e por homicídio. 20Pilatos falou outra vez à multidão, pois queria libertar Jesus. 21Mas eles gritaram:
Ass.: “Crucifica-o! Crucifica-o!”
Leitor 1: 22E Pilatos falou pela terceira vez:
Leitor 2: “Que mal fez este homem? Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte. Portanto, vou castigá-lo e o soltarei”.
Leitor 1: 23Eles, porém, continuaram a gritar com toda a força, pedindo que fosse crucificado. E a gritaria deles aumentava sempre mais. 24Então Pilatos decidiu que fosse feito o que eles pediam. 25Soltou o homem que eles queriam — aquele que fora preso por revolta e homicídio — e entregou Jesus à vontade deles.
26Enquanto levavam Jesus, pegaram um certo Simão, de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para carregá-la atrás de Jesus. 27Seguia-o uma grande multidão do povo e de mulheres que batiam no peito e choravam por ele. 28Jesus, porém, voltou-se e disse:
Pres.: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! 29Porque dias virão em que se dirá: ‘Felizes as mulheres que nunca tiveram filhos, os ventres que nunca deram à luz e os seios que nunca amamentaram’. 30Então começarão a pedir às montanhas: ‘Cai sobre nós! e às colinas: ‘Escondei-nos!’ 31Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?”
Leitor 1: 32Levavam também outros dois malfeitores para serem mortos junto com Jesus. 33Quando chegaram ao lugar chamado “Calvário”, ali crucificaram Jesus e os malfeitores: um à sua direita e outro à sua esquerda. 34Jesus dizia:

Pres.: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!”
Leitor 1: Depois fizeram um sorteio, repartindo entre si as roupas de Jesus. 35O povo permanecia lá, olhando. E até os chefes zombavam, dizendo:
Ass.: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!”
Leitor 1: 36Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, 37e diziam:
Ass.: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!”
Leitor 1: 38Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus”. 39Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo:
Leitor 3: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”
Leitor 1: 40Mas o outro o repreendeu, dizendo:
Leitor 4: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? 41Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal”.
Leitor 1: 42E acrescentou:
Leitor 4: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”.
Leitor 1: 43Jesus lhe respondeu:
Pres.: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.
Leitor 1: 44Já era mais ou menos meio-dia e uma escuridão cobriu toda a terra até as três horas da tarde, 45pois o sol parou de brilhar. A cortina do santuário rasgou-se pelo meio, 46e Jesus deu um forte grito:
Pres.: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
Leitor 1: Dizendo isso, expirou.
(Aqui todos se ajoelham e faz-se uma pausa.)
Leitor 1: 47O oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus, dizendo:
Leitor 5: “De fato! Este homem era justo!”
Leitor 1: 48E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido e voltaram para casa, batendo no peito. 49Todos os conhecidos de Jesus, bem como as mulheres que o acompanhavam desde a Galileia, ficaram a distância, olhando essas coisas.
  
 
 
AMBIENTE
 
Com a chegada de Jesus a Jerusalém e os acontecimentos da semana santa, chegamos ao fim do “caminho” começado na Galileia. Tudo converge, no Evangelho de Lucas, para aqui, para Jerusalém: é aí que deve irromper a salvação de Deus. Em Jerusalém, Jesus vai realizar o último acto do programa enunciado em Nazaré: da sua entrega, do seu amor afirmado até à morte, vai nascer esse Reino de homens novos, livres, onde todos serão irmãos no amor; e, de Jerusalém, partirão as testemunhas de Jesus, a fim de que esse Reino se espalhe por toda a terra e seja acolhido no coração de todos os homens.
 
MENSAGEM
 
A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto daquilo que foi a sua vida. Desde cedo, Jesus apercebeu-Se de que o Pai O chamava a uma missão: anunciar a Boa Nova aos pobres, sarar os corações feridos, pôr em liberdade os oprimidos. Para concretizar este projeto, Jesus passou pelos caminhos da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a proximidade de um mundo novo, de vida, de liberdade, de paz e de amor para todos. Ensinou que Deus era amor e que não excluía ninguém, nem mesmo os pecadores; ensinou que os leprosos, os paralíticos, os cegos não deviam ser marginalizados, pois não eram amaldiçoados por Deus; ensinou que eram os pobres e os excluídos os preferidos de Deus e aqueles que tinham o coração mais disponível para acolher o Reino; e avisou os “ricos”, os poderosos, os instalados, de que o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, o fechamento só podiam conduzir à morte.
 
O projeto libertador de Jesus entrou em choque – como era inevitável – com a atmosfera de egoísmo, de má vontade, de opressão que dominava o mundo. As autoridades políticas e religiosas sentiram-se incomodadas com a denúncia de Jesus: não estavam dispostas a renunciar a esses mecanismos que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios; não estavam dispostos a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão proposta por Jesus. Por isso, prenderam Jesus, julgaram-n’O, condenaram-n’O e pregaram-n’O na cruz.
 
A morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do Reino: resultou das tensões e resistências que a proposta do “Reino” provocou entre os que dominavam este mundo.
Podemos também dizer que a morte de Jesus é o culminar da sua vida; é a afirmação última, porém mais radical e mais verdadeira (porque marcada com sangue), daquilo que Jesus pregou com palavras e com gestos: o amor, o dom total, o serviço.
 
Na cruz de Jesus, vemos aparecer o Homem Novo, o protótipo do homem que ama radicalmente e que faz da sua vida um dom para todos. Porque ama, este Homem Novo vai assumir como missão a luta contra o pecado, isto é, contra todas as causas objectivas que geram medo, injustiça, sofrimento, exploração, morte. Assim, a cruz contém o dinamismo de um mundo novo – o dinamismo do Reino.
Para além da reflexão geral sobre o sentido da paixão e morte de Jesus, convém ainda notar alguns dados que são exclusivos da versão lucana da paixão:
 
· No relato da instituição da Eucaristia, só Lucas põe Jesus a dizer: “fazei isto em memória de Mim” (cf. Lc. 22,19). A expressão não quer só dizer que os discípulos devem celebrar o ritual da última ceia e repetir as palavras de Jesus sobre o pão e sobre o vinho; mas quer, sobretudo, dizer que os discípulos devem repetir a entrega de Jesus, a doação da vida por amor.
· Só Lucas coloca no contexto da última ceia a discussão acerca de qual dos discípulos seria o “maior” e a resposta de Jesus (cf. Lc. 22,24-27). Jesus avisa os seus que “o maior” é “aquele que serve”; e apresenta o seu próprio exemplo de uma vida feita serviço e dom. Estas palavras soam a “testamento” e convocam os discípulos para fazerem da sua vida um serviço aos irmãos, ao jeito de Jesus.
 
· No jardim das Oliveiras, só Lucas faz referência ao aparecimento do anjo e ao “suor de sangue” (cf. Lc. 22,42-44). Esta cena acentua a fragilidade humana de Jesus que, no entanto, não condiciona a sua submissão total ao projeto do Pai; e sublinha a presença de Deus, que não abandona nos momentos de prova aqueles que acolhem, na obediência, a sua vontade.
 
· Também no relato da paixão aparece a ideia fundamental que perpassa pela obra de Lucas: Jesus é o Deus que veio ao nosso encontro, a fim de manifestar a todos os homens, em gestos concretos, a bondade e a misericórdia de Deus. Essa ideia está presente no gesto de curar o guarda ferido por Pedro no Jardim do Getsemani (cf. Lc. 22,51); está também presente nas palavras de Jesus na cruz: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” – Lc. 23,34 (é desconcertante o amor de um Filho de Deus que morre na cruz pedindo desculpa ao Pai para os seus assassinos); está, ainda, presente nas palavras que Jesus dirige ao criminoso que morre numa cruz, ao seu lado: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso” – Lc. 23,43 (é desconcertante a bondade de um Deus que faz de um assassino o primeiro santo canonizado da sua Igreja).
 
· Todos os sinópticos falam da requisição de Simão de Cirene para levar a cruz de Jesus (cf. Mt. 27,32; Mc. 15,21); no entanto, só Lucas refere que Simão transporta a cruz “atrás de Jesus” (cf. Lc. 23,26). Este dado serve a Lucas para apresentar o modelo do discípulo: é aquele que toma a cruz de Jesus e O segue no seu caminho de entrega e de dom da vida (“se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e siga-Me” – Lc. 9,23; cf. 14,27).
 
ATUALIZAÇÃO
 
Celebrar a paixão e morte de Jesus é abismar-se na contemplação de um Deus a quem o amor tornou frágil… Por amor, Ele veio ao nosso encontro, assumiu os nossos limites, experimentou a fome, o sono, o cansaço, conheceu a mordedura das tentações, tremeu perante a morte, suou sangue antes de aceitar a vontade do Pai; e, estendido no chão, esmagado contra a terra, atraiçoado, abandonado, incompreendido, continuou a amar. Desse amor resultou vida plena, que Ele quis repartir conosco “até ao fim dos tempos”: esta é a mais espantosa história de amor que é possível contar; ela é a boa notícia que enche de alegria o coração dos crentes. 
 
Contemplar a cruz onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que são privados de direitos e de dignidade… Significa denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas, ideologias. Significa evitar que os homens continuem a crucificar outros homens. Significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor… Viver deste jeito pode conduzir à morte; mas o cristão sabe que amar como Jesus é viver a partir de um dinâmica que a morte não pode vencer: o amor gera vida nova e introduz na nossa carne os dinamismos da ressurreição.
 
 
 
 
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho

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