A liturgia deste domingo coloca no
centro da nossa reflexão a Palavra de Deus: ela é, verdadeiramente, o centro à
volta do qual se constrói a experiência cristã. Essa Palavra não é uma doutrina
abstrata, para deleite dos intelectuais; mas é, primordialmente, um anúncio
libertador que Deus dirige a todos os homens e que encarna em Jesus e nos
cristãos.
Na primeira leitura, exemplifica-se
como a Palavra deve estar no centro da vida comunitária e como ela, uma vez
proclamada, é geradora de alegria e de festa.
No Evangelho, apresenta-se Cristo como
a Palavra que se faz pessoa no meio dos homens, a fim de levar a libertação e a
esperança às vítimas da opressão, do sofrimento e da miséria. Sugere-se, também,
que a comunidade de Jesus é a comunidade que anuncia ao mundo essa Palavra
libertadora.
A segunda leitura apresenta a
comunidade gerada e alimentada pela Palavra libertadora de Deus: é uma família
de irmãos, onde os dons de Deus são repartidos e postos ao serviço do bem comum,
numa verdadeira comunhão e solidariedade.
LEITURA I – Ne 8,2-4a.5-6.8-10
O Livro de Neemias (com o de
Esdras com o qual, inicialmente, formava uma unidade) pertence ao período que se
segue ao regresso dos exilados judeus da Babilônia.
Estamos nos séculos V/IV a.C.;
para os habitantes de Jerusalém, é ainda um tempo de miséria e desolação, com a
cidade sem muralhas e sem portas, uma sombra negra da cidade bela que tinha
sido. Neemias, um alto funcionário do rei Artaxerxes, entristecido pelas
notícias recebidas de Jerusalém, obtém do rei autorização para se instalar na
capital judia. Neemias vai começar a sua atividade com a reconstrução da muralha
(cf. Ne 3-4) e com o combate às injustiças cometidas pelos ricos contra os
pobres (cf. Ne 5). Depois, procura restaurar o culto (cf. Ne 8-9).
É neste contexto de preocupação
com a restauração do culto que podemos situar o trecho que nos é proposto:
Neemias reúne todo o Povo “na praça que fica diante da Porta das Águas”, a fim
de escutar a leitura da Lei. Trata-se de recordar ao Povo o compromisso
fundamental que Israel assumiu com o seu Deus: só assim será possível preparar
esse futuro novo que Neemias sonha para Jerusalém e para o Povo de Deus.
A questão fundamental sugerida
pelo texto tem a ver com a importância que a Palavra de Deus deve assumir na
vida de uma comunidade. Todos os pormenores apontam nesse sentido.
Em primeiro lugar, o autor do
texto sublinha a convocação de toda a comunidade para escutar a Palavra: os
homens, as mulheres e as crianças em idade “de compreender”. A Palavra de Deus
dirige-se a todos sem exceção, a todos interpela e questiona.
Em segundo lugar, atente-se na
questão dos preparativos: há um estrado de madeira feito de propósito que coloca
o leitor em plano superior; depois, o Livro da Lei é aberto de forma solene e
todos se levantam, em atitude de respeito e veneração pela Palavra… É o exemplo
de uma comunidade onde a Palavra de Deus está no centro e onde tudo se conjuga
em função do lugar especial que a Palavra ocupa na vida da comunidade.
Em terceiro lugar, temos a
descrição do rito: a Palavra é aclamada pela assembleia; depois, os levitas lêem
clara e distintamente; finalmente, explicam ao povo a Palavra, de modo
acessível, “de maneira que se pudesse compreender a leitura”. Temos aqui um
autêntico manual de como deve processar-se uma verdadeira “celebração da
Palavra”.
Em quarto lugar, temos a
resposta do Povo: confrontados com a Palavra, choram. A atitude do Povo revela,
certamente, uma comunidade que se deixa interpelar pela Palavra, que confronta a
sua vida com a Palavra proclamada e que sente, na sequência, a urgência da
conversão. A Palavra é eficaz e provoca a transformação da vida.
Finalmente, tudo termina numa
grande festa: o dia “consagrado ao Senhor” é um dia de alegria e de festa para a
comunidade que se alimentou da Palavra.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as
seguintes questões:
• Que lugar ocupa a Palavra de
Deus na vida de cada um de nós e na vida das nossas comunidades? A Palavra é o
centro à volta do qual tudo se articula? Encontramos espaço para ler, para
refletir, para partilhar a Palavra?
• Aqueles a quem é confiada a
missão de proclamar a Palavra: preparam convenientemente o ambiente? Proclamam a
Palavra clara e distintamente? Refletem a Palavra e explicam-na de forma
acessível, de forma que ela toque a assembleia que escuta? Têm a preocupação de
adaptá-la à vida?
• Nas nossas assembleias
comunitárias, a Palavra é acolhida com veneração e respeito, ou aproveitamos o
momento em que ela é proclamada para acender velinhas ao santo da nossa devoção,
para rezar o terço ou para “controlar” quem está ao nosso lado?
• A Palavra interpela-nos,
leva-nos à conversão, à mudança de vida, ou a Palavra é só para os outros
(“grande recado que o padre está a mandar à dona…”)?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 B
(19)
Refrão: As vossas palavras,
Senhor,
são espírito e vida.
A lei do Senhor é
perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são
firmes,
dão sabedoria aos
simples.
Os preceitos do Senhor são
rectos
e alegram o coração;
os mandamentos do Senhor são
claros
e iluminam os olhos.
O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente;
os juízos do Senhor são
verdadeiros,
todos eles são rectos.
Aceitai as palavras da minha
boca
e os pensamentos do meu
coração
estejam na vossa
presença:
Vós, Senhor, sois o meu amparo
e redentor.
LEITURA II – 1 Cor 12,12-30
A segunda leitura vem na
sequência da que lemos no domingo passado. Paulo está preocupado porque, na
Igreja de Corinto, os “carismas” (dons de Deus para benefício de toda a
comunidade), utilizados em benefício próprio, geravam individualismo, divisão,
luta pelo poder, desprezo pelos que aparentemente não possuíam dons especiais. É
uma situação intolerável: aquilo que devia beneficiar todos é usurpado por
alguns e está a pôr em causa a unidade e a comunhão desta Igreja.
Para tornar mais clara a
mensagem, Paulo utiliza uma comparação muito conhecida no mundo greco-romano
(onde é usada para falar dos deveres comunitários): a fábula do corpo e dos seus
membros.
Paulo compara a comunidade
cristã a um corpo. Esse corpo é constituído por uma pluralidade diversificada de
membros, cada um com a sua tarefa, isto é, com o seu “carisma” peculiar. Não
basta que os membros sejam vários: é preciso que sejam variados, que sejam
distintos: é a riqueza da variedade que permite a sobrevivência de todo o
conjunto. Além disso, são membros que necessitam uns dos outros e que se
preocupam uns com os outros. A unidade fundamental deve, pois, ir de mãos dadas
com o pluralismo carismático e com a preocupação pelo bem comum.
No entanto, o mais interessante
e mais original (a fábula em si não é original) é a identificação deste corpo
com Cristo: a comunidade cristã é o corpo de Cristo (vós sois corpo de Cristo e
seus membros” – vers. 27). É também esta identificação com Cristo a parte mais
questionadora da parábola… Neste corpo tem de manifestar-se o Cristo total. Ora,
pode Cristo estar dividido? Pode o corpo de Cristo identificar-se com conflitos
e rivalidades? É possível que o corpo de Cristo dê ao mundo um testemunho de
egoísmo, de individualismo, de orgulho, de auto-suficiência, de desprezo pelos
pobres e débeis?
O corpo de Cristo (a Igreja) é,
pois, uma comunidade de irmãos, que de Cristo recebem e partilham a vida que os
une; sendo uma pluralidade de membros, com diversas funções, respeitam-se,
apoiam-se, são solidários uns com os outros e amam-se. Palavras-chave para
definir a teia de relações que liga este corpo de Cristo são “solidariedade”,
“participação”, “co-responsabilidade”.
Na parte final do texto, Paulo
apresenta uma espécie de hierarquia dos “carismas”. Obviamente, os “carismas”
apresentados em primeiro lugar são os que dizem respeito à Palavra, ao anúncio
da Boa Nova (“apóstolos”, “profetas”, “doutores”). Isso significa que o corpo de
Cristo é, verdadeiramente, a comunidade que nasce da Palavra e que se alimenta
da Palavra: tudo o resto passa para segundo plano, diante da Palavra criadora e
vivificadora que Deus dirige à comunidade.
No entanto, também aqui não
podemos esquecer o que Paulo disse atrás: todos os membros do corpo desempenham
funções importantes para o equilíbrio e harmonia do conjunto e para a consecução
do bem comum.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e a partilha,
considerar os seguintes elementos:
• A Igreja é o corpo de Cristo
onde se manifesta, na diversidade de membros e de funções, a unidade, a
partilha, a solidariedade, o amor, que são inerentes à proposta salvadora que
Cristo nos apresentou. A nossa comunidade cristã é, para nós, uma família de
irmãos, que vivem em comunhão, que se respeitam e que se amam, ou é o campo onde
se enfrentam as invejas e os interesses egoístas e mesquinhos?
• Usamos os “carismas” que Deus
nos confia para o serviço dos irmãos e para o crescimento do corpo, ou para a
nossa promoção pessoal e social?
• Nesse corpo, os vários
membros vivem em inter-dependência. É efectiva a nossa solidariedade com os
membros da comunidade? Os dramas e os sofrimentos, as alegrias e as esperanças
dos nossos irmãos são sentidos por todos os membros desse corpo?
• Sentimo-nos co-responsáveis
na construção dessa comunidade da qual somos membros e desempenhamos, com
sentido de responsabilidade, o nosso papel, ou remetemo-nos a uma situação de
passividade e de comodismo, esperando que sejam os outros a fazer tudo?
ALELUIA – Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor enviou-me a anunciar a
boa nova aos pobres,
a proclamar aos cativos a
redenção.
EVANGELHO – Lc 1,1-4;4,14-21
O Evangelho de hoje é
constituído por dois textos diferentes.
No primeiro (1,1-4), temos um
prólogo literário onde Lucas, imitando o estilo dos escritores helénicos da
altura, apresenta o seu trabalho: trata-se de uma investigação cuidada dos
“factos que se realizaram entre nós”, a fim de que os crentes de língua grega (a
quem o Evangelho de Lucas se dirige) verifiquem “a solidez da doutrina em que
foram instruídos”. Estamos na década de 80 quando, desaparecidas já as
“testemunhas oculares” de Cristo, o cristianismo começa a defrontar-se com uma
série de heresias e de desvios doutrinais, que põem em causa a identidade
cristã. Era, pois, necessário, recordar aos crentes as suas raízes e a solidez
dessa doutrina recebida de Jesus, através do testemunho legítimo que é a
tradição transmitida pelos apóstolos.
Na segunda parte (4,14-21),
apresenta-se o início da pregação de Jesus, que Lucas coloca em Nazaré. O
cenário de fundo é o do culto sinagogal, no sábado. O serviço litúrgico
celebrado na sinagoga consistia em orações e leituras da Lei e dos Profetas, com
o respectivo comentário. Os leitores eram membros instruídos da comunidade ou,
como no caso de Jesus, visitantes conhecidos pelo seu saber na explicação da
Palavra de Deus. O centro do relato está na proclamação de um texto do
Trito-Isaías (cf. Is 61,1-2) que descreve como é que o Messias concretizará a
sua missão.
A finalidade da obra de Lucas
é, como dissemos, recordar aos crentes das comunidades de língua grega as suas
raízes e a sua referência a Jesus. Neste texto em concreto, Lucas vai apresentar
o programa que Jesus Se propõe realizar no meio dos homens, como uma proposta de
libertação dirigida a todos os oprimidos.
O ponto de partida é a leitura
do texto de Is 61,1-2. Esse texto apresenta o profeta anónimo que, em Jerusalém,
consola os exilados, como um “ungido de Deus”, que possui o Espírito de Deus; a
sua missão consiste em gritar a “boa notícia” de que a libertação chegou ao
coração e à vida de todos os prisioneiros do sofrimento, da opressão, da
injustiça, do desânimo, do medo. O que é mais significativo, no entanto, é a
“atualização” que Jesus faz desta profecia: Ele apresenta-Se como o “profeta”
que Deus ungiu com o seu Espírito, a fim de concretizar essa missão
libertadora.
O projeto libertador de Deus em
favor dos homens prisioneiros do egoísmo, da injustiça e do pecado começa,
portanto, a cumprir-se na ação de Jesus (“cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da
Escritura que acabais de ouvir” – vers. 21). Na sequência, Lucas vai descrever a
atividade de Jesus na Galileia como o anúncio (em palavras e em gestos) de uma
“boa notícia” dirigida preferencialmente aos pobres e marginalizados (aos
leprosos, aos doentes, aos publicanos, às mulheres), anunciando-lhes que chegou
o fim de todas as escravidões e o tempo novo da vida e da liberdade para
todos.
Lucas anuncia também, neste
texto programático, o caminho futuro da Igreja e as condições da sua fidelidade
a Cristo. A comunidade crente toma consciência, através deste texto, de que a
sua missão é a mesma de Cristo e consiste em levar a “boa notícia” da libertação
aos mais pobres, débeis e marginalizados do mundo. Ungida pelo Espírito para
levar a cabo esta missão, a Igreja cumpre o seguimento de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, podem
considerar-se os seguintes elementos:
• No Evangelho de Lucas e neste
texto em particular, Jesus manifesta de forma bem nítida a consciência de que
foi investido do Espírito de Deus e enviado para pôr cobro a tudo o que rouba a
vida e a dignidade do homem. A nossa civilização, há vinte e um séculos que
conhece Cristo e a essência da sua proposta. No entanto, o nosso mundo continua
a multiplicar e a refinar as cadeias opressoras. Porque é que a proposta
libertadora de Jesus ainda não chegou a todos? Que situações hoje, à minha
volta, me parecem mais dramáticas e exigem uma ação imediata (pensar na situação
de tantos imigrantes de leste ou das ex-colônias; pensar na situação de tantos
idosos, sem amor e sem cuidados, que sobrevivem com pensões de miséria; pensar
nas crianças de rua e nos sem abrigo que dormem nos recantos das nossas cidades;
pensar na situação de tantas famílias, destruídas pela droga e pelo
álcool…)?
• A fidelidade ao “caminho”
percorrido por Cristo é a exigência fundamental do ser cristão. Ao longo dos
séculos, tem sido a defesa da dignidade do homem a preocupação fundamental da
Igreja de Jesus? Preocupa-nos a libertação dos nossos irmãos escravizados? Que
posso eu fazer, em concreto, para continuar no meio deles a missão libertadora
de Cristo?
• Repare-se, neste texto, como
Jesus “atualiza” a Palavra de Deus proclamada e a torna um anúncio de libertação
que toca de muito perto a vida dos homens. Os que proclamam a Palavra, que a
explicam nas homilias, têm esta preocupação de a tornar uma realidade “tocante”
e um anúncio verdadeiramente transformador e libertador, que atinge a vida
daqueles que os escutam?
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