A liturgia de hoje apresenta a imagem do casamento como imagem que
exprime de forma privilegiada a relação de amor que Deus (o marido) estabeleceu
com o seu Povo (a esposa). A questão fundamental é, portanto, a revelação do
amor de Deus.
A primeira leitura define o amor de Deus como um amor inquebrável e
eterno, que continuamente renova a relação e transforma a esposa, sejam quais
forem as suas falhas passadas. Nesse amor nunca desmentido, reside a alegria de
Deus.
O Evangelho apresenta, no contexto de um casamento (cenário da
“aliança”), um “sinal” que aponta para o essencial do “programa” de Jesus:
apresentar aos homens o Pai que os ama, e que com o seu amor os convoca para a
alegria e a felicidade plenas.
A segunda leitura fala dos “carismas” – dons, através dos quais continua
a manifestar-se o amor de Deus. Como sinais do amor de Deus, eles destinam-se
ao bem de todos; não podem servir para uso exclusivo de alguns, mas têm de ser
postos ao serviço de todos com simplicidade. É essencial que na comunidade
cristã se manifeste, apesar da diversidade de membros e de carismas, o amor que
une o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
1ª leitura: Is. 62,1-5 - AMBIENTE
Este texto pertence a esse bloco (cap. 56-66 do Livro de Isaías) que se
convencionou chamar Trito-Isaías: uma coleção de textos anônimos, redigidos em
Jerusalém ao longo dos séc. VI e V a.C. (embora alguns considerem que este
texto pode ser do Deutero-Isaías, pelos pontos de contacto que o poema
apresenta com os capítulos 49, 51, 52 e 54 do Livro de Isaías).
Estamos em Jerusalém, na época pós-exílica. Ainda se notam em todos os
cantos da cidade as marcas da destruição. Os poucos habitantes da cidade vivem
em condições de extrema pobreza; perseguidos pelo fantasma da humilhação
passada, acossados pelos inimigos, esperam a restauração do Templo e sonham com
uma Jerusalém nova, outra vez bela e cheia de “filhos”, que viva, finalmente,
em paz.
MENSAGEM
Retoma-se a conhecida apresentação da cidade como esposa de Jahwéh. A
imagem do amor do marido pela esposa é uma imagem que define de forma muito
feliz o imenso amor, o amor nunca desmentido de Deus pelo seu Povo.
É verdade que Jerusalém, a esposa, abandonou Jahwéh e correu atrás de
outros deuses; aqui, no entanto, não se sublinha a reconciliação da esposa e do
marido desavindos (como acontece noutros textos proféticos), mas as novas
núpcias, o começo de algo novo. A situação antiga de Jerusalém é evocada
discretamente (“abandonada”, “devastada”); mas a preocupação essencial do
profeta/poeta é sublinhar o rejuvenescimento operado por Deus na esposa, a
novidade inesgotável do amor de Deus que, sem se mostrar marcado pelo passado,
“desposa” a cidade/noiva e passa a chamar-lhe “minha preferida”. A nota mais
marcante vai para a apresentação de um Deus que não esquece o seu amor e que,
apesar das falhas da esposa no passado, continua a amar… É esse amor nunca
quebrado que vai rejuvenescer a relação, que vai possibilitar um novo casamento
e que vai transformar a “esposa” infiel numa “coroa esplendorosa”, num “diadema
real” que brilha nas mãos do rei/Deus.
Também é de sublinhar a “alegria” de Deus pelo refazer da relação: o
Deus da “aliança” quer, com toda a força do seu amor, fazer caminho ao lado do
seu Povo; e só está feliz quando o homem aceita esse amor que Deus quer
partilhar e que enche o coração do homem de paz, de vida e de felicidade.
ATUALIZAÇÃO
• O amor de Deus pelo seu Povo é um amor que nada consegue quebrar: nem
o nosso afastamento, nem o nosso egoísmo, nem as nossas recusas. Ele está
sempre lá, à espera, de forma gratuita, convidando ao reencontro, ao refazer da
relação; e esse amor gera vida nova, alegria, festa, felicidade em todos
aqueles que são atingidos por ele. Como lidamos com um Deus cuja “alegria” é
amar e cujo amor, quando é acolhido, nos renova continuamente?
• Viver em relação com o Deus-amor implica também dar testemunho, ser
“profeta do amor”. Somos sinais vivos de Deus, com o amor que transparece nos
nossos gestos? As nossas famílias são um reflexo do amor de Deus? As nossas
comunidades anunciam ao mundo, de forma concreta, o amor que Deus tem pelos
homens?
2ª leitura: 1Cor. 12,4-11 - AMBIENTE
Os capítulos 12-14 da primeira Carta de Paulo aos Coríntios constituem
uma secção consagrada ao bom uso dos “carismas”. “Carisma” é uma palavra
tipicamente paulina (aparece 14 vezes nas cartas de Paulo e só uma vez no resto
do Novo Testamento) que, num sentido amplo, designa qualquer graça (“kharis”)
ou dom concedido por Deus, independentemente do posto que a pessoa ocupa dentro
da hierarquia eclesial. Num sentido mais restrito e mais técnico, passou a
significar certos “dons especiais” concedidos pelo Espírito a determinadas
pessoas ou grupos, em benefício da comunidade. O testemunho dos escritos
neo-testamentários é que as primeiras comunidades cristãs conheciam de forma
especial estes dons do Espírito. Isso também acontecia, segundo parece, em
Corinto.
Apesar de se destinarem ao bem da comunidade, os “carismas” podiam ser
mal usados. Por um lado, podiam conduzir a uma espécie de divinização do
indivíduo que os possuía colocando-o, com frequência, em confronto com a
comunidade; por outro lado, nem todos possuíam carismas extraordinários e era fácil,
neste contexto, serem considerados “cristãos de segunda”. Depreende-se ainda
deste texto que haveria alguma discussão acerca da importância de cada
“carisma” e, portanto, da posição que cada um destes “carismáticos” devia
ocupar na hierarquia comunitária.
Ora, a comunidade de Corinto estava preocupada com esta questão. Estamos
diante de uma comunidade com graves problemas de conflitos e de desarmonias
onde, facilmente, as experiências “carismáticas” eram sobrevalorizadas em
benefício próprio. Criavam, pois, com frequência, individualismo e divisão no
seio da comunidade.
É a este problema que Paulo procura responder.
MENSAGEM
Neste texto, Paulo enumera diferentes tipos de “carismas”; no entanto,
deixa bem claro que, apesar da diversidade, todos eles se reportam ao mesmo
Deus, ao mesmo Senhor e ao mesmo Espírito.
Mais: cada um dos crentes possui o Espírito e, portanto, de diverso modo
e medida, recebe “carismas”. O que é fundamental é que esses “carismas” não
sejam usados de forma egoísta, mas estejam sempre ao serviço do bem comum.
Não faz qualquer sentido, pois, discutir qual é o “carisma” mais
importante. Também não faz sentido que os possuidores de “carismas” se
considerem “iluminados” e se confrontem com o resto da comunidade. Faz ainda
menos sentido considerar que há cristãos de primeira e cristãos de segunda… É o
mesmo Deus uno e trino que a todos une; a comunidade tem de ser o espelho dessa
comunidade divina, da comunidade trinitária.
ATUALIZAÇÃO
• A comunidade cristã tem de ser o reflexo da comunidade trinitária,
dessa comunidade de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito. As nossas
comunidades paroquiais, as nossas comunidades religiosas são espaços de
comunhão e de fraternidade, onde o amor e a solidariedade dos diversos membros
refletem o amor que une o Pai, o Filho e o Espírito?
• Como cristãos, somos todos membros de um único corpo, com diversidade
de funções e de ministérios. A diversidade de “dons” não pode ser um fator de
divisão ou de conflito, mas de riqueza para todos. Os “dons” que Deus nos
concede são sempre postos ao serviço do bem comum, ou servem para nos
auto-promover, para ganharmos prestígio aos olhos dos outros?
• Como consideramos “os outros” – aqueles que têm “dons” diferentes ou,
até, aqueles que se apresentam de forma discreta, sem se imporem, sem “darem
nas vistas”? Eles são vistos como membros legítimos do mesmo corpo que é a
comunidade, ou como cristãos de segunda, massa amorfa a que não damos muita
importância?
• A consciência de que determinado dom que possuímos é fundamental na
estruturação da vida comunitária pode degenerar em arrogância e em abuso de
poder. É necessário ter bem presente que os “carismas” são sempre um dom
gratuito de Deus, que não depende dos nossos méritos pessoais. É necessário,
também, ter consciência de que o mais importante, aquilo a que devem
subjugar-se os interesses pessoais é sempre o bem da comunidade.
Evangelho: Jo. 2,1-11 - AMBIENTE
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo João.
2 1 Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus.
2 Também foram convidados Jesus e os seus discípulos.
3 Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Eles já não têm vinho.
4 Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, isso compete a nós? Minha hora ainda não chegou”.
5 Disse, então, sua mãe aos serventes: “Fazei o que ele vos disser”.
6 Ora, achavam-se ali seis talhas de pedra para as purificações dos judeus, que continham cada qual duas ou três medidas.
7 Jesus ordena-lhes: “Enchei as talhas de água”. Eles encheram-nas até em cima.
8 “Tirai agora”, disse-lhes Jesus, e levai ao chefe dos serventes. E levaram.
9 Logo que o chefe dos serventes provou da água tornada vinho, não sabendo de onde era (se bem que o soubessem os serventes, pois tinham tirado a água), chamou o noivo
10 e disse-lhe: “É costume servir primeiro o vinho bom e, depois, quando os convidados já estão quase embriagados, servir o menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora”.
11 Este foi o primeiro milagre de Jesus; realizou-o em Caná da Galiléia. Manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele.
Palavra da Salvação.
2 1 Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus.
2 Também foram convidados Jesus e os seus discípulos.
3 Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Eles já não têm vinho.
4 Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, isso compete a nós? Minha hora ainda não chegou”.
5 Disse, então, sua mãe aos serventes: “Fazei o que ele vos disser”.
6 Ora, achavam-se ali seis talhas de pedra para as purificações dos judeus, que continham cada qual duas ou três medidas.
7 Jesus ordena-lhes: “Enchei as talhas de água”. Eles encheram-nas até em cima.
8 “Tirai agora”, disse-lhes Jesus, e levai ao chefe dos serventes. E levaram.
9 Logo que o chefe dos serventes provou da água tornada vinho, não sabendo de onde era (se bem que o soubessem os serventes, pois tinham tirado a água), chamou o noivo
10 e disse-lhe: “É costume servir primeiro o vinho bom e, depois, quando os convidados já estão quase embriagados, servir o menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora”.
11 Este foi o primeiro milagre de Jesus; realizou-o em Caná da Galiléia. Manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele.
Palavra da Salvação.
Este texto pertence à “secção introdutória” do Quarto Evangelho (que vai
de 1,19 a 3,36). Nessa seção, o autor apresenta um conjunto de cenas (com
contínuas entradas e saídas de personagens, como se estivéssemos no palco de um
teatro), destinadas a apresentar Jesus e o seu programa.
O autor declara explicitamente (cf. Jo. 2,11) que o episódio pertence à
categoria dos “signos” (“semeiôn”): trata-se de ações simbólicas, de sinais
indicadores, que nos convidam a procurar, para além do episódio concreto, uma
realidade mais profunda para a qual aponta o fato narrado. O importante, aqui,
não é que Jesus tenha transformado a água em vinho; mas é apresentar o programa
de Jesus: trazer à relação entre Deus e o homem o vinho da alegria, do amor e
da festa.
MENSAGEM
O episódio narrado é, pois, uma ação simbólica que aponta para algo mais
importante do que o próprio fenômeno concreto descrito. Que realidade é essa?
O cenário de fundo é o de um casamento. Ora, o cenário das bodas ou do
noivado é (como vimos na primeira leitura) um quadro onde se reflecte a relação
de amor entre Jahwéh e o seu Povo. Dito de outra forma, estamos no contexto da
“aliança” entre Israel e o seu Deus.
A essa “aliança” vem, em certa altura, a faltar o vinho. O “vinho”,
elemento indispensável na “boda”, é símbolo do amor entre o esposo e a esposa
(cf. Cant. 1,2;4,10;7,10;8,2. Recordar, a propósito, como Isaías compara a
“aliança” com uma vinha plantada pelo Senhor, que não produziu frutos – cf. Is.
5,1-7), bem como da alegria e da festa (cf. Sir. 40,20; Qoh 10,19).
Constata-se, portanto, a realidade da antiga “aliança”: tornou-se uma relação
seca, sem alegria, sem amor e sem festa, que já não potencia o encontro amoroso
entre Israel e o seu Deus. Esta realidade de uma “aliança” estéril e falida é
representada pelas “seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus”.
O número seis evoca a imperfeição, o incompleto; a “pedra” evoca as tábuas de
pedra da Lei do Sinai e os corações de pedra de que falava o profeta Ezequiel
(cf. Ez 36,26); a referência à “purificação” evoca os ritos e exigências da
antiga Lei que revelavam um Deus susceptível, zeloso, impositivo, que guarda
distâncias: ora, um Deus assim pode-se temer, mas não amar… As talhas estão
“vazias”, porque todo este aparato era inútil e ineficaz: não servia para
aproximar o homem de Deus, mas sim para o afastar desse Deus difícil e
distante.
Detenhamo-nos, agora, nas personagens apresentadas. Temos, em primeiro
lugar, a “mãe”: ela “estava lá”, como se pertencesse à boda; por outro lado, é
ela que se apercebe do intolerável da situação (“não têm vinho”): representa o
Israel fiel, que já se tinha apercebido da realidade e que esperava que o
Messias pusesse cobro à situação.
Temos, depois, o “chefe de mesa”: representa os dirigentes judeus,
instalados comodamente, que não se apercebem – ou não estão interessados em
entender – que a antiga “aliança” caducou.
Os “serventes” são os que colaboram com o Messias, que estão dispostos a
fazer tudo “o que Ele disser” (cf. Ex. 19,8) para que a “aliança” seja
revitalizada.
Temos, finalmente, Jesus: é a Ele que o Israel fiel (a “mulher”/mãe) se dirige no sentido de dar nova vida a essa “aliança” caduca; mas o Messias anuncia que é preciso deixar cair essa “aliança” onde falta o vinho do amor (“que temos nós com isso?”). A obra de Jesus não será preservar as instituições antigas, mas apresentar uma radical novidade… Isso acontecerá quando chegar a “Hora” (a “Hora” é, em João, o momento da morte na cruz, quando Jesus derramar sobre a humanidade essa lição do amor total de Deus).
Temos, finalmente, Jesus: é a Ele que o Israel fiel (a “mulher”/mãe) se dirige no sentido de dar nova vida a essa “aliança” caduca; mas o Messias anuncia que é preciso deixar cair essa “aliança” onde falta o vinho do amor (“que temos nós com isso?”). A obra de Jesus não será preservar as instituições antigas, mas apresentar uma radical novidade… Isso acontecerá quando chegar a “Hora” (a “Hora” é, em João, o momento da morte na cruz, quando Jesus derramar sobre a humanidade essa lição do amor total de Deus).
O episódio das “bodas de Caná” anuncia, portanto, o programa de Jesus:
trazer à relação entre Deus e os homens o vinho da alegria, do amor e da festa.
Este programa – que Jesus vai cumprir paulatinamente ao longo de toda a sua
vida – realizar-se-á em plenitude no momento da “Hora” – da doação total por
amor.
ATUALIZAÇÃO
• Quando a relação com Deus assenta num jogo intrincado de ritos
externos, de regras e de obrigações que é preciso cumprir, a religião torna-se
um pesadelo insuportável que tiraniza e oprime. Ora, Jesus veio revelar-nos
Deus como um Pai bondoso e terno, que fica feliz quando pode amar os seus
filhos. É esse o “vinho” que Jesus veio trazer para alegrar a “aliança”: o
“vinho” do amor de Deus, que produz alegria e que nos leva à festa do encontro
com o Pai e com os irmãos. A nossa “religião” é isto mesmo – o encontro com o
Jesus que nos dá o vinho do amor?
• O que é que os nossos olhos e os nossos lábios revelam aos outros: a
alegria que brota de um coração cheio de amor, ou o medo e a tristeza que
brotam de uma religião de pesadelo, de leis e de medo?
• Com qual das personagens que participam da “boda” nos identificamos:
com o chefe de mesa, comodamente instalado numa religião estéril, vazia e
hipócrita, com a “mulher”/mãe que pede a Jesus que resolva a situação, ou com
os “serventes” que vão fazer “tudo o que Ele disser” e colaborar com Jesus no
estabelecimento da nova realidade?
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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