O tema da liturgia deste domingo convida a refletir sobre o “caminho do
profeta”: caminho de sofrimento, de solidão, de risco, mas também caminho de
paz e de esperança, porque é um caminho onde Deus está. A liturgia de hoje
assegura ao “profeta” que a última palavra será sempre de Deus: “não temas,
porque Eu estou contigo para te salvar”.
A primeira leitura apresenta a figura do profeta Jeremias. Escolhido,
consagrado e constituído profeta por Jahwéh, Jeremias vai arrostar com todo o
tipo de dificuldades; mas não desistirá de concretizar a sua missão e de tornar
uma realidade viva no meio dos homens a Palavra de Deus.
O Evangelho apresenta-nos o profeta Jesus, desprezado pelos habitantes
de Nazaré (eles esperavam um Messias espetacular e não entenderam a proposta
profética de Jesus). O episódio anuncia a rejeição de Jesus pelos judeus e o
anúncio da Boa Nova a todos os que estiverem dispostos a acolhê-la – sejam
pagãos ou judeus.
A segunda leitura parece um tanto desenquadrada desta temática: fala do
amor – o amor desinteressado e gratuito – apresentando-o como a essência da
vida cristã. Pode, no entanto, ser entendido como um aviso ao “profeta” no
sentido de se deixar guiar pelo amor e nunca pelo próprio interesse… Só assim a
sua missão fará sentido.
1ª leitura: Jr. 1,4-5.17-19 - AMBIENTE
A atividade profética de Jeremias começa por volta de 627/626 a.C.
(quando o profeta teria pouco mais de vinte anos) e prolonga-se até depois da
queda de Jerusalém nas mãos dos Babilônios (586 a.C.). O cenário dessa
atividade é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
É uma época muito conturbada, quer a nível político, quer a nível
religioso. Judá acabou de sair dos reinados de Manassés (698-643 a.C.) e de
Amon (643-640 a.C.), reis ímpios que multiplicaram no país os altares aos
deuses estrangeiros e levaram o Povo a afastar-se de Jahwéh. Na época em que
Jeremias começa o seu ministério profético, o rei de Judá é Josias (640-609
a.C.): trata-se de um rei bom, que procura eliminar o culto aos deuses
estrangeiros e concentrar a vida litúrgica de Judá num único lugar – o Templo
de Jerusalém. No entanto, a reforma religiosa levada a cabo por Josias levanta
algumas resistências; por outro lado, é uma reforma que é mais aparente do que
real: não se pode, por decreto e de repente, corrigir o coração do Povo e
eliminar hábitos religiosos cultivados ao longo de algumas dezenas de anos.
É neste ambiente que Jeremias é chamado por Deus e enviado em missão.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto apresenta o relato que Jeremias faz do seu
chamamento por Deus. Mais do que uma reportagem do “momento” em que Deus chamou
o profeta, trata-se de uma reflexão e de uma catequese sobre esse mistério
sempre antigo e sempre novo a que chamamos “vocação”.
A vocação profética, na perspectiva de Jeremias, é, em primeiro lugar,
um encontro com Deus e com a sua Palavra (“a Palavra do Senhor foi-me
dirigida…” – v. 4). A Palavra marca, a partir daí, a vida do profeta e passa a
ser, para ele, a única coisa decisiva.
Em segundo lugar, a vocação é um desígnio divino: foi Deus que escolheu,
consagrou e constituiu Jeremias como profeta. Dizer que Deus “escolheu” o
profeta (literalmente, “conheceu” – do verbo “yada‘”) é dizer que Deus, por sua
iniciativa, estabeleceu desde sempre com ele uma relação estreita e íntima, de
forma que o profeta, vivendo na órbita de Deus, aprendesse a discernir os
planos de Deus para os homens e para o mundo. Dizer que Deus “consagrou” o
profeta significa que Deus o “reservou”, que o “pôs à parte” para o seu
serviço. Dizer que Deus “constituiu” o profeta “para as nações” significa que
Deus lhe confiou uma missão, missão que tem um alcance universal. Tudo isto, no
entanto, resulta da ação e da escolha de Deus, é iniciativa de Deus e não
escolha do homem.
Na segunda parte do texto, temos o envio formal do profeta. Ele deve ir
“dizer o que o Senhor ordenar”, sem medo nem servilismo, enfrentando os grandes
da terra, armado apenas com a força de Deus. É a definição do “caminho
profético”, percorrido no sofrimento, no risco, na solidão, no conflito com
todos os que se opõem à proposta de Deus. A leitura de hoje termina com um
convite à confiança: “não poderão vencer-te, porque Eu estou contigo para te
salvar” – vers. 19).
A vida de Jeremias realizou, integralmente, o projeto de Deus. A
propósito e a despropósito, Jeremias denunciou, criticou, demoliu e destruiu,
edificou e plantou. Não teve muito êxito: a família, os amigos, o povo de
Jerusalém, as autoridades, os sacerdotes, viraram-lhe as costas,
marginalizaram-no, perseguiram-no e maltrataram-no. No entanto, Jeremias nunca
renunciou: Deus invadiu-lhe de tal forma a vida, e a paixão pela Palavra de
Deus “apanhou-o” de tal forma, que o profeta viveu até ao fim, com a máxima
intensidade, a sua missão.
ATUALIZAÇÃO
• Os “profetas” não são uma classe de animais extintos há muitos
séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar para intervir no
mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas? Onde estão eles?
• No Batismo, fomos ungidos como profetas, à imagem de Cristo. Estamos
conscientes dessa vocação a que Deus a todos nos convocou? Temos a noção de que
somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus se dirige aos homens?
• O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus e de olhos postos
no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal diário). Vivendo em comunhão com
Deus e intuindo o projeto que Ele tem para o mundo, e confrontando esse projeto
com a realidade humana, o profeta percebe a distância que vai do sonho de Deus
à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome de Deus, para denunciar,
para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas, simultaneamente em comunhão
com Deus e atentas às realidades que desfeiam o nosso mundo?
• A denúncia profética implica, tantas vezes, a perseguição, o
sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria morte (Óscar Romero,
Luther King, Gandhi…). Como lidamos com a injustiça e com tudo aquilo que rouba
a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça, alguma vez nos
impediram de ser profetas?
• Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a exercer a
minha vocação profética?
2ª leitura: 1Cor. 12,31-13,13 - AMBIENTE
Há quem chame a este texto “o Cântico dos Cânticos da nova aliança”.
Também se lhe chama, habitualmente, o “hino ao amor”.
À primeira vista, este “elogio do amor” poderia parecer uma página
completamente desligada do contexto anterior (a discussão acerca dos carismas).
Na realidade, este texto apresenta afinidades claras, tanto a nível literário
como a nível temático, com os capítulos precedentes, bem como com os capítulos
seguintes. Ainda que possamos retirar este hino do seu contexto, sem que ele
perca o sentido, a verdade é que Paulo quer aqui dizer, sem meias palavras e de
forma clara e contundente, que só há um carisma absoluto: o amor.
MENSAGEM
Antes de mais, convém dizer que o amor de que Paulo fala aqui é o amor
(em grego, “agape”) tal como ele é entendido pelos cristãos: não é o amor
egoísta, que procura o próprio bem, mas o amor gratuito, desinteressado,
sincero, fraterno, que se preocupa com o outro, que sofre pelo outro, que
procura o bem do outro sem esperar nada em troca. Desse tipo de relacionamento,
nasce a Igreja – a comunidade dos que vivem o “agape”.
O nosso texto desenvolve-se em três estrofes. Na primeira (13,1-3),
Paulo sustenta que, sem amor, até as melhores coisas (a fé, a ciência, a
profecia, a distribuição de esmolas pelos pobres) são vazias e sem sentido. Só
o amor dá sentido a toda a vida e a toda a experiência cristã.
Na segunda estrofe (13,4-7), Paulo apresenta literariamente o amor como
uma pessoa e sugere que ele é a fonte e a origem de todos os bens e qualidades.
A propósito, Paulo enumera quinze características ou qualidades do verdadeiro
amor: sete destas qualidades são formuladas positivamente e as outras oito de
forma negativa; mas todas elas se referem a coisas simples e quotidianas, que
experimentamos e vivemos a todos os instantes, a fim de que ninguém pense que
este “amor” é algo que só diz respeito aos santos, aos sábios, aos
especialistas.
A terceira estrofe (13,8-13) estabelece uma comparação entre o amor e o resto dos carismas. A questão é: este amor de que se disseram coisas tão bonitas é algo imperfeito, temporal e caduco como o resto dos carismas? Este amor – responde Paulo – não desaparecerá nunca, não mudará jamais. Ele é a única coisa perfeita; por isso permanecerá sempre. Fica, assim, confirmada a superioridade incontestável do amor frente a qualquer outro carisma – por muito que seja apreciado pelos coríntios ou por qualquer comunidade cristã, no futuro.
A terceira estrofe (13,8-13) estabelece uma comparação entre o amor e o resto dos carismas. A questão é: este amor de que se disseram coisas tão bonitas é algo imperfeito, temporal e caduco como o resto dos carismas? Este amor – responde Paulo – não desaparecerá nunca, não mudará jamais. Ele é a única coisa perfeita; por isso permanecerá sempre. Fica, assim, confirmada a superioridade incontestável do amor frente a qualquer outro carisma – por muito que seja apreciado pelos coríntios ou por qualquer comunidade cristã, no futuro.
ATUALIZAÇÃO
• O amor cristão – isto é, o amor desinteressado que leva, por pura
gratuidade, a procurar o bem do outro – é, de acordo com Paulo, a essência da
experiência cristã. É esse o amor que me move? Quando faço algo, partilho algo,
presto algum serviço, é com essa atitude desinteressada, de puro dom?
• Desse amor partilhado nasce a comunidade de irmãos a que chamamos
Igreja. O amor que une os vários membros da nossa comunidade cristã é esse amor
generoso e desinteressado de que Paulo fala? Quando a comunidade cristã é palco
de lutas de interesses, de ciúmes, de rivalidades egoístas, que testemunho de
amor está a dar?
Evangelho: Lc. 4,21-30 - MENSAGEM
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
Naquele tempo, 4 21 Jesus estava na sinagoga e começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir”.
22 Todos lhe davam testemunho e se admiravam das palavras de graça, que procediam da sua boca, e diziam: “Não é este o filho de José?”
23 Então lhes disse: “Sem dúvida me citareis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; todas as maravilhas que fizeste em Cafarnaum, segundo ouvimos dizer, faze-o também aqui na tua pátria”.
24 E acrescentou: “Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria.
25 Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra;
26 mas a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia.
27 Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”.
28 A estas palavras, encheram-se todos de cólera na sinagoga.
29 Levantaram-se e lançaram-no fora da cidade; e conduziram-no até o alto do monte sobre o qual estava construída a sua cidade, e queriam precipitá-lo dali abaixo.
30 Ele, porém, passou por entre eles e retirou-se.
Palavra da Salvação.
Naquele tempo, 4 21 Jesus estava na sinagoga e começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir”.
22 Todos lhe davam testemunho e se admiravam das palavras de graça, que procediam da sua boca, e diziam: “Não é este o filho de José?”
23 Então lhes disse: “Sem dúvida me citareis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; todas as maravilhas que fizeste em Cafarnaum, segundo ouvimos dizer, faze-o também aqui na tua pátria”.
24 E acrescentou: “Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria.
25 Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra;
26 mas a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia.
27 Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”.
28 A estas palavras, encheram-se todos de cólera na sinagoga.
29 Levantaram-se e lançaram-no fora da cidade; e conduziram-no até o alto do monte sobre o qual estava construída a sua cidade, e queriam precipitá-lo dali abaixo.
30 Ele, porém, passou por entre eles e retirou-se.
Palavra da Salvação.
O episódio da sinagoga de Nazaré é, já o dissemos atrás, um episódio
“programático”: a Lucas não interessa descrever de forma coerente e lógica um
episódio em concreto acontecido em Nazaré por altura de uma visita de Jesus,
mas enunciar as linhas gerais do programa que o Messias vai cumprir – linhas
que o resto do Evangelho vai revelar.
O programa de Jesus é, como vimos a semana passada (o texto de Is.
61,1-2 e o comentário posterior de Jesus demonstram-no claramente), a
apresentação de uma proposta de libertação aos pobres, marginalizados e
oprimidos. No entanto, esse “caminho” não vai ser entendido e aceite pelo povo
judeu (isto é, os “da sua terra”), que estão mais interessados num Messias
milagreiro e espetacular. Os “seus” rejeitarão a proposta de Jesus e tentarão
eliminá-l’O (anúncio da morte na cruz); mas a liberdade de Jesus vence os
inimigos (alusão à ressurreição) e a evangelização segue o seu caminho
(“passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”), até atingir os que estão
verdadeiramente dispostos a acolher a salvação/libertação (alusão a Elias e
Eliseu que se dirigiram aos pagãos porque o seu próprio povo não estava
disponível para escutar a Palavra de Deus).
Neste texto programático – já o dissemos, também, a semana passada –
Lucas anuncia o caminho da Igreja: a comunidade crente toma consciência de que,
em continuidade com o caminho de Jesus, a sua missão é levar a Boa Nova aos
pobres e marginalizados – como Elias fez com uma viúva de Sarepta ou como
Eliseu fez com um leproso sírio. Se percorrer esse caminho, a Igreja viverá na
fidelidade a Cristo.
ATUALIZAÇÃO
• “Nenhum profeta é bem recebido na sua terra”. Os habitantes de Nazaré
julgam conhecer Jesus, viram-n’O crescer, sabem identificar a sua família e os
seus amigos mas, na realidade, não perceberam a profundidade do seu mistério.
Trata-se de um conhecimento superficial, teórico, que não leva a uma verdadeira
adesão à proposta de Jesus. Na realidade, é uma situação que pode não nos ser
totalmente estranha: lidamos todos os dias com Jesus, somos capazes de falar
algumas horas sobre Ele; mas a sua proposta tem impacto em nós e transforma a
nossa existência?
• “Faz também aqui na terra o que ouvimos dizer que fizestes em
Cafarnaum” – pedem os habitantes de Nazaré. Esta é a atitude de quem procura
Jesus para ver o seu espetáculo ou para resolver os seus problemazinhos
pessoais. Supõe a perspectiva de um Deus comerciante, de quem nos aproximamos
para fazer negócio. Qual é o nosso Deus? O Deus de quem esperamos espetáculo em
nosso favor, ou o Deus que em Jesus nos apresenta uma proposta séria de
salvação que é preciso concretizar na vida do dia a dia?
• Como na primeira leitura, o Evangelho propõe-nos uma reflexão sobre o
“caminho do profeta”: é um caminho onde se lida, permanentemente, com a
incompreensão, com a solidão, com o risco… É, no entanto, um caminho que Deus
nos chama a percorrer, na fidelidade à sua Palavra. Temos a coragem de seguir
este caminho? As “bocas” dos outros, as críticas que magoam, a solidão e o
abandono, alguma vez nos impediram de cumprir a missão que o nosso Deus nos
confiou?
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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