A França sabe muito bem o que pode lhe trazer a paz. E certamente não é a capa de um jornal blasfemo.
"O assassino continua solto" e, para os ateus do semanário satírico Charlie Hebdo, a culpa é de Deus.
"A primeira que quer a paz é a Igreja". Foi o que respondeu São João
Paulo II a uma turba de sandinistas que tentava atrapalhar a celebração
da Missa Papal,
durante viagem do então pontífice à Nicarágua, em 1983.
O episódio ficou marcado na história recente do cristianismo como um
dos mais incisivos confrontos entre a Igreja e as ideologias
anticlericais.
O anticlericalismo sempre buscou associar a guerra à religião. Foram os
intelectuais iluministas quem primeiro espalharam o mito de que a Idade
Média havia sido um período de trevas e de barbárie. Com a Revolução
Francesa, essa mentalidade equivocada tornou-se ainda mais popular,
provocando uma maior hostilidade às religiões monoteístas, sobretudo
àquela fundada sobre o madeiro da cruz. O dogma cristão, para os
anticlericais da época, seria uma ameaça aos, vejam só, preceitos
revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade.
Na última semana,
o jornal francês Charlie Hebdo resolveu fazer coro a esse mesmo anticlericalismo de que falávamos acima.
O semanário satírico publicou uma edição especial sobre os atentados
terroristas que mataram 12 pessoas dentro de sua redação, em 7 de
janeiro do ano passado. Mas na capa, o jornal trazia a imagem não de
Maomé, mas do Deus cristão carregando um fuzil, ao lado dos dizeres "Um
ano depois, o assassino continua solto". A mídia do mundo inteiro
publicou matérias a respeito. O Vaticano também se pronunciou; só que
para lamentar a associação blasfema — e preconceituosa — que a edição
especial do satírico fez sobre as mortes de seus funcionários.
A atitude da Santa Sé justifica-se por duas razões.
Primeiro, a capa de
Charlie Hebdo, como o editorial assinado pelo diretor Laurent Sourisseau,
confunde a prática comum entre um grupo de extremistas islâmicos com a
fé de mais de um bilhão de pessoas. O jornal coloca uma suspeita sobre
todos os religiosos, como se a única maneira de se viver a paz e a
liberdade fosse pela adesão aos princípios do laicismo. Isso é
inaceitável. A história mostra que os regimes ateus foram, e ainda são,
capazes de cometer as piores barbáries.
Segundo, a generalização do jornal, ao invés de ajudar a pôr um fim ao
problema, atacando os verdadeiros responsáveis pelo crime, cria ainda
mais dificuldades para uma nação cujos fundamentos parecem esfacelar-se
irreversivelmente. Estes fundamentos são os dogmas católicos que
Sourisseau e o seu jornal tanto desprezam.
Laurent Sourisseau escreve: "Víamos a França como uma ilhota laica,
onde era possível brincar, desenhar, rir, sem se preocupar com dogmas".
Notem que Sourisseau estabelece um vínculo direto entre "brincar",
"desenhar", "rir" e laicismo. A religião, por sua vez, seria uma ameaça a
essas coisas. Sourisseau parece desconhecer a história de seu próprio
país. É preciso esclarecer, em primeiro lugar, que a laicidade exaltada
pelo diretor do
Charlie Hebdo tem origem em um período bastante
sangrento para a França. A aclamada Revolução Francesa matou milhares na
guilhotina, principalmente aqueles que ousavam "brincar", "desenhar" ou
"rir" das ideias dela. E julgava fazer isso para trazer liberdade e
dignidade às pessoas contra a "intolerância" da Igreja romana. Ocorre
que foi justamente dessa religião que não só os franceses, mas todo o
Ocidente, colheram os verdadeiros princípios norteadores para o respeito
à dignidade da pessoa humana e para a paz entre os povos. Destruir essa
religião significa, portanto, cortar o galho da árvore em que se está
sentado. O tombo é certo.
Recentemente, a
Comissão Teológica Internacional publicou um estudo bastante profundo sobre a ligação entre as religiões monoteístas e a violência. Esse estudo, além de refutar os velhos chavões anticlericais, faz a seguinte declaração:
“Não parece ser obra do acaso que a postura polêmica que leva alguns a se afastarem e entrarem em conflito com o cristianismo, [...] venha acompanhada de um enfraquecimento [...] do respeito pela vida, pela intimidade da consciência, pela salvaguarda da igualdade, [...] e pelo respeito da autêntica consciência religiosa." [1]
A competente historiadora Régine Pernoud ajuda-nos a entender a
questão, olhando para como eram as relações internacionais na Idade
Média [2]. Durante esse período, escreve a autora, o Ocidente não era
muito diferente do que vemos hoje em termos de diversidade étnica. Havia
vários povos, de diferentes culturas e costumes, os quais se viam
frequentemente em conflitos por territórios e poder político. Coube à
Igreja o papel de assegurar a "tranquilidade da ordem", como diria Santo
Agostinho [3]. Isso foi possível devido à convicção cristã de que, pela
graça de Deus, todos os povos pertencem, ou devem pertencer, a uma
mesma família: o Corpo Místico de Cristo. Pernoud explica: "A unidade
doutrinária, tão viva na época, ajudava na união dos povos. Carlos Magno
compreendeu tão bem isso que, para conquistar a Saxe enviou primeiro os
missionários, antes dos exércitos, e não por ambição, mas por
convicção. A história se repete no Império Germânico, na dinastia dos
Othos."
A autoridade espiritual da Igreja reunia todos os poderes temporais sob
um único propósito, de maneira tal que mesmo nações inimigas uniam-se
ao chamado do Papa. Régine Pernoud não nega, ingenuamente, que "tenha
havido abusos da parte da Santa Sé como da parte do poder temporal". "É
incontestável, a história das disputas entre o Papado e o Império
comprova", lembra a autora. "Mas no conjunto", prossegue, "pode-se dizer
que esta tentativa audaciosa de unir os dois gládios, o espiritual e o
temporal, pelo bem comum, foi um sucesso". Prova disso são as
determinações papais conhecidas como
Paz de Deus — em que se fazia a justa distinção entre o forte e
o fraco, com a proibição de maltrato às mulheres, às crianças, aos
camponeses e aos clérigos — e Trégua de Deus — quando, por ordem da Igreja, se cessava todo conflito durante o Tempo do Natal, da Quaresma e da Páscoa.
Ademais, o mandamento do amor ao próximo e ao inimigo educou os
cavaleiros para a piedade. "Aquele que lutava por amor das grandes
proezas, da violência ou da pilhagem, virou o defensor dos fracos",
escreve Pernoud. Ela continua: "O soldado tem doravante um papel a
cumprir, e os inimigos que ele é convidado a combater são, justamente,
aqueles em quem subsiste o desejo pagão do massacre, de orgia e de
pilhagem." Vemos tais exemplos nos
Templários, cuja valentia livrou o Ocidente das incursões árabes. Na época das Cruzadas
— frequentemente condenadas pelos professores de História — toda a
Europa levantou-se em uníssono contra os então terroristas. Hoje, a França encontra-se dividida, sem saber para que rumo caminhar, diante dos ataques que se repetem.
Uma nota particular sobre a I Guerra Mundial deve ser lembrada também
para comprovar ainda mais o poder pacificador do cristianismo. Foi
durante o Natal de 1914 que aconteceu o que parecia improvável: na
frente ocidental, os soldados ingleses e alemães depuseram as armas para
comemorar o nascimento do Deus menino. Conta-se que houve canções,
troca de presentes e até uma partida de futebol.
O episódio ficou conhecido como Trégua de Natal.
Os atentados terroristas contra o jornal
Charlie Hebdo merecem nosso repúdio e condenação. Mas a
vitória contra essa perversidade não virá de pensamentos — igualmente
fanáticos, é preciso dizer — como os do senhor Laurent Sourisseau.
Colocar todos os crentes dentro do mesmo "carro bomba" para desacreditar
as religiões — principalmente aquela à qual o seu país deve a própria
existência — é um grande equívoco. A França sabe muito bem o que pode
lhe trazer a paz. E certamente não é a capa de um jornal blasfemo. "Se
não é o Senhor quem educa a casa, trabalham inutilmente aqueles que a
constroem" (Sl 126, 1).
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- Comissão Teológica Internacional, O monoteísmo cristão contra a violência (6 de dezembro de 2013), n. 13.
- PERNOUD, Reginé. As relações internacionais no Medievo. In: Lumière du Moyen Age, Editions B. Grasset, Paris, 1944, cap. 6.
- Santo Agostinho, De Civitate Dei, XIX, 13 (PL 41, 640).
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