Célebre relato medieval do milagre de Teófilo ensina que o perdão, mediado por Nossa Senhora, jamais é impossível.
Aconteceu na Sicília, Itália, e deu origem à famosa lenda que
inspirou o auto sacramental “O milagre de Teófilo”, um dos mais célebres
da literatura medieval.
Foi escrito pelo clérigo Eutiquiano de Constantinopla, testemunha
ocular do fato, confirmado por São Pedro Damião, São Bernardo, São
Boaventura e Santo Antônio, entre outros.
E qual foi o caso de Teófilo?
Vigário da igreja de Adanas, na Sicília, ele dirigira durante muito
tempo, com dedicação e acerto, os bens eclesiásticos, facilitando a seu
bispo a direção das almas. Veio o dia, porém, de o prelado entregar a
alma ao Criador, para grande desconsolo e tristeza dos fiéis.
Quem ocuparia a sede vacante? Não havia dúvida: Teófilo, dizia-se por
toda parte. O povo o estimava e o queria para bispo, dignidade que ele,
por humildade, recusou, respondendo que a sua vocação era continuar
exercendo as funções de vigário. Por fim, outro bispo ocupou a sede
vacante.
O novo prelado não confiava em Teófilo e, algum tempo depois,
removeu-o de seu cargo. A desolação invadiu então a alma do
eclesiástico. Enquanto vagava pela cidade, o demônio lhe sussurrava:
— Perder o cargo! A carreira! Como foram fazer isso a ti, Teófilo? Isso não pode ficar assim!
Foi nesse estado que o infeliz sacerdote bateu à porta de um feiticeiro. Este, porém, negava-lhe uma solução fácil:
— Há só uma saída: invocar a ajuda dos infernos.
Teófilo vacilou por um instante. Mas o ressentimento lhe corroía o
coração e acabou aceitando a proposta. Invocado pelo feiticeiro, o diabo
apareceu em toda a sua hediondez.
Com gritos, blasfêmias e palavrões, foi ditando a Teófilo os termos
dos atos a ser escritos em pergaminho com o próprio sangue do ex-vigário
e selados com seu anel. Ele devia renunciar à fé, à Igreja, à
Santíssima Virgem e a nosso Senhor Jesus Cristo. Ajoelhando-se, o
ex-vigário prestou vassalagem ao demônio.
No dia seguinte, o novo bispo reconheceu a falsidade das acusações
contra Teófilo e pediu-lhe perdão, restituindo-lhe o cargo que ocupara. A
fortuna e o prazer lhe sorriam, mas um profundo mal-estar o atormentava
no interior. Chorava sem cessar, tendo a consciência dilacerada de
remorso pelo enorme pecado que havia cometido. Era como se uma mão o
prendesse pelo coração. Ademais, só ao pensar que a sua felicidade havia
um dia de terminar, tornava-se sumamente infeliz. Enchia-o de terror,
acima de tudo, saber de quem era servo!
Não podendo suportar mais a situação, entrou um dia na igreja e,
lançando-se aos pés de uma imagem da Santíssima Virgem, chorou
amargamente e lhe disse:
— Ó Mãe de Deus, não quero desesperar-me. Ainda Vós me restais, Vós que sois tão compassiva e poderosa para me ajudar!
Fez a mesma coisa durante quarenta dias, renovando sempre suas
súplicas e pedindo perdão. Uma noite, apareceu-lhe a Mãe de Misericórdia
e lhe disse:
— Que fizeste, Teófilo? Renunciaste à minha amizade e à de Meu Filho e te entregaste àquele que é teu e meu inimigo!
Teófilo, sem deixar de chorar, implorou a misericórdia da Mãe de
Deus. Recordando o exemplo de outros pecadores, como o profeta-rei Davi,
Santa Maria Madalena e São Pedro, terminou por dizer:
— Senhora, haveis de me perdoar e de me obter o perdão de Vosso Filho!
Ela respondeu que lhe perdoaria tê-la negado, mas não poderia perdoar a negação de Seu Filho:
— Consola-te, que vou rogar a Deus por ti.
Após ouvir estas palavras, reanimado, redobrou Teófilo as lágrimas,
as preces e as penitências, conservando-se sempre aos pés da imagem de
Maria. Reapareceu-lhe a Mãe de Deus, que, amavelmente, lhe disse:
— Teófilo, enche-te de consolação. Apresentei a Deus tuas lágrimas e
orações. De hoje em diante, guarda-lhe gratidão e fidelidade.
O infeliz replicou:
— Senhora minha, ainda não estou plenamente consolado. Ainda conserva
o demônio o ímpio documento em que renunciei a Vós e a vosso Filho.
Podeis fazer que o restitua?
Compadecida, Ela mesma ofereceu-se para ir buscar o pergaminho no
inferno. Durante três dias Teófilo aguardou prostrado em terra, ao cabo
dos quais reapareceu a Virgem trazendo o pacto maldito, que entregou a
Teófilo como símbolo do seu perdão.
No dia seguinte, foi Teófilo à igreja, e, ajoelhando-se aos pés do
bispo, que naquele momento oficiava, contou-lhe por entre soluços tudo
quanto lhe havia acontecido.
Entregou-lhe o ímpio documento, que o bispo fez queimar imediatamente
diante dos fiéis presentes, enquanto choravam todos de alegria,
exaltando a bondade de Deus e a misericórdia de Maria para com aquele
pobre pecador. Teófilo voltou à igreja de Nossa Senhora e, ao fim de
três dias, morreu contente, cheio de gratidão para com Jesus e sua Mãe
Santíssima.
Uma escultura medieval representa o fato na catedral de Notre-Dame:
nela, bem se pode ver o auge de bondade de Maria. Enquanto o vigário
arrependido ora fervorosamente, a Santíssima Virgem obriga, espada em
mão, o demônio a devolver-lhe o pergaminho. Três fisionomias marcam a
cena: confiança e calma em Teófilo; proteção maternal e força em Nossa
Senhora; cinismo e desespero no demônio.
Revista Catolicismo, nº 320, setembro de 1977
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