sábado, 1 de fevereiro de 2014

FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR - ANO A



      

No “Dia da Vida Consagrada”, a liturgia celebra a “Apresentação do Senhor” no Templo de Jerusalém. Esse ícone – que expressa a entrega total de Cristo, desde os primeiros momentos da sua existência terrena, nas mãos do Pai – convida todos os consagrados e consagradas a renovar a sua entrega nas mãos de Deus e a fazer da própria existência um dom de amor, um testemunho comprometido da realidade do Reino, ao serviço do projeto salvador de Deus para os homens e para o mundo.

 Profecia de Malaquias 3, 1-4

 Um “mensageiro” anônimo anuncia o “Dia do Senhor” – o “dia” em que Deus vai descer ao encontro do seu Povo para criar uma nova realidade. Nesse dia, Jahwéh vai eliminar o egoísmo e o pecado, vai purificar o coração do seu Povo, vai inaugurar o tempo novo da comunhão verdadeira entre Deus e os homens.
A Vida Consagrada é interpelação profética; interpela os homens, convida-os à conversão, anuncia e testemunha o mundo que há de vir.
Quem é o profeta Malaquias que hoje nos fala?
 O nome “malaquias” não é um nome próprio. Significa “o meu mensageiro”. É o título tomado por um profeta anónimo, sobre o qual praticamente nada sabemos e que se apresenta como “mensageiro” de Jahwéh. Atuando na Jerusalém do período posterior ao regresso da Babilónia, é um fervoroso defensor da tradição dos valores judaicos, um fervoroso pregador de reformas, um zeloso defensor do culto autêntico, favorável ao Templo já reconstruído (cf. Mal 1,10), preocupado com a pureza dos sacerdotes e dos levitas, defensor dos sacrifícios, diante de um culto que funcionava, mas de maneira imperfeita (cf. Mal 1,7-9. 12-13), contrário aos matrimónios mistos (entre judeus e não judeus).
Este quadro, posterior à restauração do Templo, situa-nos na primeira metade do séc. V a.C. (entre 480 e 450 a.C.), muito próximo da época de Esdras e Neemias.
Este “mensageiro de Deus” reage vigorosamente contra a situação em que o Povo de Judá está a cair e que veremos mais adiante. Coloca cada um diante das suas responsabilidades para com Jahwéh e para com o próximo, exige a conversão do Povo e a reforma da vida cultual.
A lógica deste mensageiro é construída numa base deuteronomista: se o Povo se obstinar em percorrer caminhos de infidelidade à Aliança, voltará a conhecer a morte e a infelicidade; mas se o Povo se voltar para Jahwéh e cumprir os mandamentos, voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus oferece àqueles que seguem os seus caminhos.
Apenas a título de exemplo, podemos ler Dt 30,15-20, para entender que a conceção da vida e da felicidade do povo de Israel depende de uma escolha, em que a escolha pelos caminhos de Jawéh conduz à vida e à felicidade, ao passo que a escolha pelas forças próprias e sobretudo contrárias a Jawéh conduz à morte e à ruína.

Qual era a situação de Jerusalém do tempo de Malaquias?

Diante de nós, temos um Povo desanimado por ver que as antigas promessas de Deus, veiculadas por Ezequiel e pelo Deutero-Isaías, não se tinham cumprido. Tinha, por isso, caído na apatia religiosa e na absoluta falta de confiança em Deus…
Duvidava do amor de Deus, da sua justiça, do seu interesse por Judá. Ora, todo este ceticismo tinha repercussões no culto, cada vez mais desleixado, e na ética, em que se multiplicavam as falhas, as injustiças, as arbitrariedades.
Nada pior que olhar para trás em situações como esta: perder o sentido da vida e pensar que o Senhor nos abandonou.
É neste contexto que a palavra de Malaquias é dirigida ao Povo, em tempos de desânimo, mas também de perversidade. Mesmo se é uma palavra dura, acaba por sê-lo também de esperança porque mostra que o Senhor reporá a ordem: vai chegar o “Dia do Senhor”, esse momento decisivo em que Deus colocará cada um diante das suas responsabilidades e retribuirá a cada um conforme os seus merecimentos (cf. Mal 2,17-3,5).
Por isto mesmo, o “Dia do Senhor” é um dos conceitos mais ambivalentes de toda a Bíblia, por quanto contém de terrível, de sinais misteriosos, associado em alguns texto, como este, ao fogo, a elementos da criação que nos metem medo; por outro lado, é sempre um conceito positivo, porque mostra que Ele não abandonou esse Povo desanimado, mas virá e entrará no seu templo.
Em última análise, a mensagem do profeta é uma mensagem de esperança!

Como será a vinda do Senhor?

A “vinda” do Senhor será precedida pela chegada de um mensageiro a “preparar o caminho”. Não se explica, no nosso texto, quem é esse “mensageiro”; contudo, mais à frente (cf. Mal 3,23), a figura que vai surgir para preparar o “Dia do Senhor” é claramente identificada com o profeta Elias. Só depois, chegará o Senhor para exercer o seu juízo sobre os pecadores. Não se diz explicitamente se este “Senhor” que vem é o próprio Deus, ou se é o seu “messias”… De qualquer forma, é muito provável haver aqui uma referência messiânica (até pela figura de Elias aqui envolvida, considerada uma figura precursora do messias).
Este “Senhor” é também designado como “o mensageiro da Aliança”; o título parece designar o mediador que estabelece as negociações para a assinatura de um compromisso.
Esta “Aliança” será a “nova Aliança” anunciada por Jeremias (cf. Jer 31,31; 32,40) e por Ezequiel (cf. Ez 16,60; 34,25; 36,26-28), a partir da qual vai nascer um Povo novo, que vive em comunhão com Deus e que cumpre os mandamentos e preceitos de Jahwéh.
A função do “Senhor” é, pois, possibilitar o aparecimento de uma “nova Aliança” que comprometa Judá com o seu Deus.

Que efeitos terá a vinda do Senhor na vida dos crentes?

O resultado dessa intervenção do Senhor será a purificação do Povo. Servindo-se de elementos muito sugestivos como o fogo ou a lixívia, o profeta descreve essa purificação. Dela resultará um novo sacerdócio (“os filhos de Levi… serão para o Senhor os que apresentam a oblação segundo a justiça” – vers. 3), que fará “a oblação de Judá e de Jerusalém” voltar a ser “agradável ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de outrora” (vers. 4).
A purificação do sacerdócio e do culto operada pelo Senhor será um sinal claro da chegada de um novo tempo – um tempo em que Deus estará com o seu Povo e em que um Povo de coração renovado prestará um culto sincero, verdadeiro, agradável a Deus.

Interpelações para nós, hoje

¨      A figura deste “mensageiro” de Deus, que prepara o caminho por onde o Senhor vai chegar, recorda-nos a dimensão profética da vida cristã, na qual se insere Vida Consagrada.
Os consagrados – chamados por Deus a serem mensageiros da sua vida e do seu projeto – são ícones vivos de Deus no meio do mundo e dos homens. Como Malaquias, eles denunciam aquilo que impede a caminhada dos homens rumo à vida verdadeira e, com a sua vida e testemunho, desafiam os homens a um permanente esforço de conversão, de renovação, de construção de vida nova.
Os consagrados, na fidelidade à sua vocação e missão, não podem conformar-se com uma sociedade tranquilamente adormecida à sombra de valores politicamente corretos, mas que potenciam uma cultura de escravidão e de morte. Mesmo enfrentando a incompreensão e sofrendo a perseguição dos fazedores de opinião, os consagrados são chamados a serem testemunhas proféticas da luz de Deus que ilumina e vence as sombras do mundo.

¨      O “mensageiro” de que nos fala a primeira leitura é a testemunha fiel e comprometida do inquestionável amor de Deus pelos homens. O Deus que este “mensageiro” anuncia e propõe é um Deus cheio de amor, que está atento aos dramas que marcam a caminhada humana, que não se conforma com a apatia, o imobilismo e o comodismo que impedem a descoberta da vida plena.
Os consagrados têm de ser testemunhas desse Deus que ama cada homem e cada mulher para além de toda a medida. Com a sua palavra, com os seus gestos, com a sua vida, eles têm de dizer a todos – especialmente aos mais pobres, aos mais débeis, aos marginalizados e abandonados – que Deus os ama com um amor sem limites e quer oferecer-lhes essa vida plena que a sociedade nem sempre lhes assegura.

¨      No nosso texto, a ação do “mensageiro” é determinante para fazer surgir uma nova realidade – o “novo céu e a nova terra” onde habitam a verdade, a justiça e a paz.
É missão dos consagrados construir e testemunhar um mundo novo, onde Deus reina, de facto. Mais, os consagrados, ao colocarem Deus no centro das suas existências, ao despojarem-se dos bens deste mundo, ao viverem em comunidades fraternas, ao renunciarem aos bens passageiros e superficiais, anunciam esse mundo futuro de vida plena e definitiva que Deus quer oferecer a todos os homens e para o qual Deus quer que toda a humanidade caminhe.

¨      Embora o nosso texto não o refira explicitamente, o “profeta” é um homem ou uma mulher que vive num diálogo permanente com Deus e que, na meditação da Palavra, na oração, na Eucaristia celebrada e adorada, na comunhão de vida com Deus, descobre os caminhos e os projetos de Deus para si próprio e para o mundo.
Será impossível a um consagrado viver fielmente a sua vocação e a sua missão profética sem esta referência a Deus e sem este diálogo orante, pessoal, íntimo e diário com Deus.
  
Epístola aos Hebreus 2, 14-18

Jesus é apresentado como o sacerdote por excelência que, ao oferecer ao Pai o sacrifício da sua vida, ao serviço do plano salvador de Deus, fez nascer o Homem Novo, livre da escravidão do pecado, promovido à categoria de “filho de Deus”. Esta “catequese” convida os discípulos a olhar para a cruz de Jesus, a interiorizar o seu significado, a seguir Jesus no dom total da vida, na entrega radical, no serviço simples e humilde aos irmãos.
A Vida Consagrada é uma forma privilegiada de viver e de testemunhar esta realidade.

Por quem e para quem é escrita a Carta aos Hebreus?

A Carta aos Hebreus é um escrito de autor anónimo, aparecido provavelmente antes do ano 70, e cujos destinatários, em concreto, desconhecemos. Com o título “aos hebreus” poderia pensar-se num escrito dirigido aos cristãos provenientes do judaísmo, pelas múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta. Mesmo se uma tal hipótese é possível, isso não é totalmente seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um património comum: todos os cristãos – quer os vindos do judaísmo quer os vindos do paganismo – assumiam esta primeira parte da Escritura Sagrada que viria a denominar-se o Antigo ou o Primeiro Testamento.
O que é certo é que se trata de cristãos em situação difícil: expostos a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… Em tal situação, o desalento e a desesperança parecem tomar conta destes nossos predecessores na fé. Por isso, facilmente perdem o fervor inicial e acabam por ceder às seduções de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos…
A mensagem do autor vai revestir-se, por isso mesmo, de um colorido de esperança, claramente numa belíssima apresentação da figura de Jesus.

O porquê desta carta

O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé, se quisermos, a reviver o tal fervor inicial a que antes se acenava. Para isso, ele expõe o mistério de Cristo, apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança, que faz a mediação entre Deus e os homens. Para tal, tem necessariamente de se servir da linguagem e imagética litúrgicas do Antigo Testamento.
Nesta linha, o autor apresenta os crentes na sua condição cristã, que deriva da missão sacerdotal de Cristo. Porque estão em relação com o Pai, por meio do Sumo Sacerdote que é Cristo, eles são inseridos nesse dinamismo e são o Povo sacerdotal. O sacerdote é, no contexto do Antigo Testamento, aquele que oferece os sacrifícios pelo Povo. Se Cristo é o Sumo Sacerdote, é Ele que oferece; mas inseridos neste dinamismo, todos os crentes são chamados a fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de ação de graças e de amor.

Uma reflexão sobre o objetivo da vinda de Cristo

Deus tem um plano: renovar a humanidade ou, para usarmos um termo querido ao Novo Testamentário, fazer nascer o Homem Novo (cf. Jo 3,3-7; Rm 6,5-6; Ef 2,15). Trata-se do homem que superou a sua condição limitada e pecadora, que se despiu do egoísmo, do orgulho e dos preconceitos e que chegou à total realização do seu ser, à situação definitiva do homem libertado, à vida verdadeira e eterna, à condição de “filho de Deus”. Este acaba por ser o próprio objetivo da vinda de Cristo, da sua Encarnação; um mistério central da nossa fé.
Jesus Cristo nasceu no meio de nós, vestiu a nossa carne mortal, solidarizou-Se com a nossa humanidade, conheceu as nossas limitações e as nossas fragilidades (a morte que acaba por ser vencida no seu mistério pascal de morte e ressurreição). Tornando-Se homem, Ele fez-Se nosso irmão; tornando-Se nosso irmão, inseriu-nos na família divina e promoveu-nos à categoria de “filhos de Deus”.
Que mensagem melhor para nos transmitir a esperança de viver num mundo que não tem a última palavra? Como poderia mostrar-se melhor que Deus ainda cuida do seu Povo e que é fiel à sua Aliança?

O Sumo-Sacerdócio de Jesus

Ao fazer-Se homem, Jesus tornou-Se “um sumo sacerdote misericordioso e fiel” (vers. 17). A função do sumo sacerdote é servir de ponte entre os homens e Deus; e, ao vir ao nosso encontro, ao fazer-Se nosso irmão, ao vencer a morte, ao associar-nos à família de Deus, Jesus refez a comunhão entre os homens e Deus. Como sumo sacerdote, Ele realizou também – diz o autor da Carta – a expiação dos pecados do povo (vers. 17), isto é, Ele introduziu na nossa débil, frágil e pecadora natureza humana dinamismos de superação dos nossos limites e falhas, dinamismos de vida nova, de vida verdadeira e eterna, de vida divina.

Desafios da nova condição de filhos no Filho

A condição de “filhos de Deus” exige, no entanto, a superação de tudo aquilo que em nós é frágil, débil, corruptível, finito…
Jesus trouxe essa mensagem de esperança, ao vencer o maior inimigo do homem, a morte (cf. 1Cor 15,26).
Enquanto gera medo, sofrimento, escravidão, a morte perpetua a nossa debilidade e fragilidade, impedindo-nos de chegar à vida plena do homem libertado. Por isso, para nos tornar “filhos de Deus”, Jesus tinha de vencer a morte. E mostrou que, numa vida de serviço e de entrega aos irmãos, coroada na morte que não é o último capítulo da sua história, Ele fez-nos ver que é possível acreditar na vida…

Interpelações para nós, hoje

¨      Esta história de um Deus que aceitou despir-Se das suas prerrogativas divinas e assumir as nossas fragilidades e limitações é uma história estranha e ilógica à luz dos critérios e padrões que hoje vestem o mundo e a história dos homens… Mas é uma história que ilustra, sem deixar margem para dúvidas, a intensidade e a radicalidade do amor de Deus por nós.
A constatação desta realidade é algo que enche o nosso coração de serenidade e de alegria e que nos permite encarar a vida, os desafios, as dificuldades, os medos, os limites da nossa existência humana, com esperança, com coragem, com confiança.
Se Deus nos ama desta forma, a nossa caminhada pela história só poderá ter um final feliz.
Aqueles que seguem Jesus Cristo na Vida Consagrada estão conscientes desta realidade; são alimentados, ao longo do seu percurso oblativo, por esta confiança; têm por missão dar testemunho diante dos homens seus irmãos, com luminosa alegria, da intensidade e da radicalidade do amor de Deus.

¨      A morte de Jesus é, naturalmente, o ponto alto dessa história de amor que Deus quis viver connosco. A cruz “apresenta”, aos homens e ao mundo, a lógica do amor de Deus, que é um amor total, ilimitado e incondicional…
Naturalmente, os discípulos de Jesus – e também aqueles discípulos que são chamados a uma especial vocação de consagração – são convidados a olhar para a cruz de Jesus, a interiorizar o seu significado, a seguir Jesus no dom total da vida, na entrega radical, no serviço simples e humilde aos irmãos.

¨      Contemplar a cruz onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude de Jesus e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que são privados de direitos e de dignidade…
Olhar a cruz de Jesus e o seu exemplo significa denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas, ideologias; significa evitar que os homens continuem a crucificar outros homens; significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor…
Viver deste jeito pode conduzir à morte. Mas o discípulo sabe que amar como Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer: o amor gera vida nova e introduz na nossa carne frágil e mortal os dinamismos da ressurreição, vivida em comunhão solidária na alegria e na esperança!

Evangelho de São Lucas 2, 22-40

Através das palavras e da catequese do evangelista Lucas, desenha-se aqui o quadro da “Apresentação de Jesus” no Templo de Jerusalém, a fim de ser “consagrado” ao Senhor.
A consagração de Cristo recorda-nos que a nossa vida se deve cumprir num “ecce venio”, numa entrega total nas mãos do Pai, ao serviço do projeto de salvação de Deus para os homens e para o mundo.

Os Evangelhos da Infância de Jesus

Não foi logo desde o início que os primeiros cristãos se interessaram por aquilo que, hoje, nós conhecemos como “Evangelhos da Infância” e de que faz parte este texto de Lucas. O interesse dos primeiros cristãos era, sobretudo, pela mensagem e proposta que Jesus fez; daí que os Evangelhos se centrem especialmente nas recordações sobre a vida pública e a paixão do Senhor.
Só num estádio posterior houve uma certa curiosidade acerca dos primeiros anos da vida de Jesus. Coligiram-se, então, escassas informações históricas sobre a infância de Jesus e amassou-se esse material com reflexões que a comunidade fazia acerca do Senhor. Partindo de algumas indicações históricas e desenvolvendo uma reflexão teológica para explicar quem é Jesus, Lucas apresenta a história da Infância de Jesus.
O objetivo de Lucas é responder à pergunta fundamental: quem é este Jesus?

O interesse do Evangelho pela apresentação de Jesus ao Templo

Lucas propõe-nos o quadro da apresentação de Jesus no Templo. Segundo a Lei de Moisés, todos os primogênitos, tanto dos homens como dos animais, pertenciam a Jahwéh e deviam ser oferecidos a Jahwéh (cf. Ex 13,1-2. 11-16). O costume de oferecer os primogênitos aos deuses é um costume cananeu. No entanto, Israel transformou-o no que dizia respeito aos primogênitos dos homens… Estes não deviam ser oferecidos em sacrifício, mas resgatados por um animal, imolado ao Senhor (vers. 23-24).
De acordo com Lv 12,2-8, quarenta dias após o nascimento de uma criança, esta devia ser apresentada no Templo, onde a mãe oferecia um ritual de purificação. Nessa cerimônia
, devia ser oferecido um cordeiro de um ano (para as famílias mais abastadas) ou então duas pombas ou duas rolas (para as famílias de menores recursos), tradição a que o nosso texto faz referência (vers. 24). É neste contexto que este passo do Evangelho nos situa.
Na linha da apresentação de todas as histórias da infância de Jesus, também com esta Lucas pretende mostrar quem é Jesus e qual a sua missão no mundo. Ao sublinhar repetidamente a fidelidade da família de Jesus à Lei do Senhor (vers. 22. 23. 24), Lucas quer deixar claro que Jesus, desde o início da sua caminhada entre os homens, viveu na escrupulosa fidelidade aos mandamentos e aos projetos do Pai. Desde o início da sua existência terrena, Ele entregou a sua vida nas mãos do Pai, numa adesão absoluta ao plano do Pai. A missão de Jesus no mundo passa por aí, pelo cumprimento rigoroso da vontade e do projeto do Pai.

Simeão e Ana

As duas personagens que acolhem Jesus no templo, Simeão e Ana, representam o Israel fiel que esperava ansiosamente a sua libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu Povo.
De Simeão diz-se que era um homem “justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel” (vers. 25). As palavras e os gestos de Simeão são particularmente sugestivos… Simeão toma Jesus nos braços e apresenta-O ao mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus quer oferecer “a todos os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel” (vers. 28-32).
Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como esse Messias libertador e salvador, a quem Deus enviou – não só ao seu povo, mas a todos os povos da terra.
Aqui desponta um tema muito querido a Lucas: o da universalidade da salvação de Deus… Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para todos os povos, independentemente da sua raça, da sua cultura, das suas fronteiras, dos seus esquemas religiosos.
As palavras que Simeão dirige a Maria (“este menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; e uma espada trespassará a tua alma” – vers. 34-35) aludem, provavelmente, à divisão que a proposta de Jesus provocará em Israel e ao resultado dessa divisão – o drama da cruz.

Ana é também uma figura do Israel pobre e sofredor (“viúva”), que se manteve fiel a Jahwéh (não se voltou a casar, após a morte do marido – vers. 37), que espera a salvação de Deus. Depois de reconhecer em Jesus a salvação anunciada por Deus, ela “falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém” (vers. 38).
A palavra utilizada por Lucas para falar de libertação é a palavra grega “lustrosis” (“resgate”), utilizada no Êxodo para falar da libertação da escravidão do Egito (cf. Ex 13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16).
Jesus é, assim, apresentado por Lucas como o Messias libertador, que vai conduzir o seu Povo do domínio da escravidão para o domínio da liberdade. A apresentação no Templo de um primogénito celebrava precisamente a libertação do Egito e a passagem da escravidão para a liberdade (cf. Ex 13, 11-16).

Nas figuras de Ana e Simeão, desse Israel antigo e fiel, esperançoso nas promessas de Deus, vemos um mundo que crê no Deus da Aliança e da Paz e, sobretudo, na fidelidade de Deus às suas promessas.
Mesmo quando não se vê o modo de sair de uma crise, quando Deus parece mais longínquo, talvez esquecido de nós, eis que Ele vem ao Templo, numa figura frágil, de um Menino, “sinal de contradição”, mas também, e sobretudo, sinal de redenção, de libertação para todos os que ainda ousam crer e esperar num mundo segundo a ordem de Deus, em que a “sabedoria” e a “graça” que habitavam a pessoa de Jesus possam ser os fundamentos de uma “civilização do amor”.

O Menino que crescia: sabedoria e graça estavam com ele

O texto termina com uma referência ao resto da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” e “graça”. Trata-se de atributos que lhe vêm do Pai e que atestam, portanto, a sua divindade (vers. 40).
Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens com uma missão que lhe foi confiada pelo Pai. O objetivo de Jesus é cumprir integralmente o projeto do Pai… E esse projeto passa por levar os homens da escravidão para a liberdade e em apresentar a proposta de salvação de Deus a todos os povos da terra, mesmo àqueles que não pertencem tradicionalmente à comunidade do Povo de Deus.

Interpelações para nós, hoje

¨      A Festa da “Apresentação do Senhor” coincide com a celebração do Dia da Vida Consagrada. Ao olhar para o mistério da consagração aqui expresso, os consagrados são convidados a revisitar os fundamentos da sua consagração, vivida no seguimento de Jesus, por amor do Reino.
Poderíamos dizer que se celebra hoje em toda a Igreja um singular “ofertório”, no qual os homens e as mulheres consagradas renovam espiritualmente o dom de si. Agindo desta forma, ajudam as comunidades eclesiais a crescer na dimensão oblativa que as constitui intimamente, as edifica e as estimula a testemunhar Jesus pelos caminhos do mundo.

¨      A “apresentação do Senhor” no Templo de Jerusalém revela que, desde o início da sua caminhada entre os homens, Jesus escolheu um caminho de total fidelidade aos mandamentos e aos projetos do Pai. Ao oferecer-Se a Deus em oblação, ao ser “consagrado” ao Pai, Jesus manifesta a sua disponibilidade para cumprir fiel e incondicionalmente o plano salvador do Pai até às últimas consequências, até ao dom total da própria vida em favor dos homens.
O “ecce venio” de Jesus é o modelo da doação e da entrega de todos os consagrados, chamados a seguir Jesus mais de perto, numa oblação total a Deus e ao Reino. A vocação de consagrados concretiza-se na entrega de toda a existência nas mãos do Pai, na fidelidade absoluta à sua vontade e aos seus planos.
Que valor e que importância tem na sua vida o projeto de Deus? Procuram identificar a vontade de Deus e com ela conformar a sua vida, em total doação e entrega, ou deixam que sejam os seus projetos e esquemas pessoais a ditar as suas opções e as coordenadas da sua vida?

¨      Jesus é-nos apresentado, neste texto, como “a salvação colocada ao alcance de todos os povos”, a “luz para se revelar às nações e a glória de Israel”, o messias com uma proposta de libertação para todos os homens.
Que eco tem esta “apresentação” de Jesus no coração dos consagrados? Jesus é, de facto, a luz que ilumina as suas vidas e que os conduz pelos caminhos do mundo? Ele é o caminho certo e inquestionável para a salvação, para a vida verdadeira e plena? É n’Ele que colocam a sua ânsia de libertação e de vida nova? Este Jesus aqui apresentado tem real impacto na sua vida, nas suas opções, nos passos que dão no seu caminho de consagração, ou é apenas uma figura decorativa de um certo cristianismo de fachada?

¨   Simeão e Ana são, na cena evangélica que nos é proposta, figuras do Israel fiel, que foi preparado desde sempre para reconhecer e para acolher o messias de Deus. Na verdade, quando Jesus aparece, eles estão suficientemente despertos para reconhecer naquele bebé o messias libertador que todos esperavam e apresentam-n’O formalmente ao mundo.
Hoje, os consagrados – discípulos que acolheram Jesus como a sua luz e que aceitaram segui-l’O – têm a responsabilidade de O apresentar ao mundo e de O tornar uma proposta questionadora, libertadora, iluminadora, salvadora, para os homens nossos irmãos.
É isso que acontece? Através do seu anúncio – feito com palavras, com gestos, com atitudes, com a fidelidade aos votos religiosos – Jesus é apresentado ao mundo e questiona os homens seus irmãos?
Se tantos homens ignoram a “luz” libertadora que Jesus veio acender ou não se sentem interpelados pelo projeto de Jesus, a culpa não será, um pouco, de um certo imobilismo e instalação, de algum “cinzentismo” na vivência da fé, da forma pouco entusiasta como é testemunhada na Vida Consagrada?

¨      A Vida Consagrada é chamada a refletir de maneira particular a luz de Cristo. Olhando as pessoas consagradas, que procuram viver ao estilo das Bem-aventuranças, os homens e mulheres do nosso tempo têm de ver o “fermento” de esperança para a humanidade, o “sal” que dá sabor ao mundo, uma “luz” que se acende na escuridão do mundo e que indica caminhos de verdade e de liberdade, a “porta” entreaberta para o Reino de Deus e para os “novos céus e a nova terra” que Deus quer apresentar à humanidade.
É preciso que os consagrados sejam luz e conforto para cada pessoa, velas acesas que ardem com o próprio amor de Cristo, luz que ilumina as sombras do mundo e que profeticamente anuncia a aurora de uma nova realidade.
É isso que acontece? O seu testemunho interpela positivamente os homens e mulheres que todos os dias com eles se cruzam nos caminhos do mundo e aponta-lhes a realidade do Reino?

¨      Os desafios de Deus, os seus planos, revelam-se, de forma privilegiada, na Palavra de Deus…
Que importância é que a Palavra de Deus assume na vida dos cristãos e dos consagrados e das nossas comunidades cristãs e religiosas? Procuram viver na escuta da Palavra, numa progressiva sensibilidade à Palavra de Deus, a fim de discernir os desafios de Deus? Encontram tempo, individualmente e a nível comunitário, para se reunirem à volta da Palavra de Deus, para partilhar a Palavra de Deus, para se deixarem questionar pela Palavra de Deus?

¨      Pobreza, castidade e obediência são as características distintivas do homem redimido, interiormente resgatado da escravidão do egoísmo.
Livres para amar, livres para servir: assim são os homens e as mulheres que renunciam a si mesmos pelo Reino dos Céus. Seguindo Cristo, crucificado e ressuscitado, os consagrados vivem esta liberdade como solidariedade, assumindo os pesos espirituais e materiais dos seus irmãos.
Os votos são assumidos pelos consagrados como elemento desta entrega total nas mãos de Deus – a exemplo de Cristo – para o serviço do Reino e da humanidade, ou são vistos como uma carga insuportável que os limita e os torna infelizes?

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