No “Dia da Vida Consagrada”, a liturgia celebra a “Apresentação do
Senhor” no Templo de Jerusalém. Esse ícone – que expressa a entrega total de
Cristo, desde os primeiros momentos da sua existência terrena, nas mãos do Pai
– convida todos os consagrados e consagradas a renovar a sua entrega nas mãos
de Deus e a fazer da própria existência um dom de amor, um testemunho
comprometido da realidade do Reino, ao serviço do projeto salvador de Deus para
os homens e para o mundo.
Profecia de Malaquias 3, 1-4
Um “mensageiro” anônimo anuncia
o “Dia do Senhor” – o “dia” em que Deus vai descer ao encontro do seu Povo para
criar uma nova realidade. Nesse dia, Jahwéh vai eliminar o egoísmo e o pecado,
vai purificar o coração do seu Povo, vai inaugurar o tempo novo da comunhão
verdadeira entre Deus e os homens.
A Vida Consagrada é interpelação profética; interpela os homens,
convida-os à conversão, anuncia e testemunha o mundo que há de vir.
Quem é o profeta Malaquias que hoje nos fala?
O nome “malaquias” não é um
nome próprio. Significa “o meu mensageiro”. É o título tomado por um profeta
anónimo, sobre o qual praticamente nada sabemos e que se apresenta como
“mensageiro” de Jahwéh. Atuando na Jerusalém do período posterior ao regresso
da Babilónia, é um fervoroso defensor da tradição dos valores judaicos, um
fervoroso pregador de reformas, um zeloso defensor do culto autêntico,
favorável ao Templo já reconstruído (cf. Mal 1,10), preocupado com a pureza dos
sacerdotes e dos levitas, defensor dos sacrifícios, diante de um culto que
funcionava, mas de maneira imperfeita (cf. Mal 1,7-9. 12-13), contrário aos
matrimónios mistos (entre judeus e não judeus).
Este quadro, posterior à restauração do Templo, situa-nos na primeira
metade do séc. V a.C. (entre 480 e 450 a.C.), muito próximo da época de Esdras
e Neemias.
Este “mensageiro de Deus” reage vigorosamente contra a situação em que
o Povo de Judá está a cair e que veremos mais adiante. Coloca cada um diante
das suas responsabilidades para com Jahwéh e para com o próximo, exige a
conversão do Povo e a reforma da vida cultual.
A lógica deste mensageiro é construída numa base deuteronomista: se o
Povo se obstinar em percorrer caminhos de infidelidade à Aliança, voltará a
conhecer a morte e a infelicidade; mas se o Povo se voltar para Jahwéh e
cumprir os mandamentos, voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus
oferece àqueles que seguem os seus caminhos.
Apenas a título de exemplo, podemos ler Dt 30,15-20, para entender que
a conceção da vida e da felicidade do povo de Israel depende de uma escolha, em
que a escolha pelos caminhos de Jawéh conduz à vida e à felicidade, ao passo
que a escolha pelas forças próprias e sobretudo contrárias a Jawéh conduz à
morte e à ruína.
Qual era a situação de Jerusalém do tempo de Malaquias?
Diante de nós, temos um Povo desanimado por ver que as antigas
promessas de Deus, veiculadas por Ezequiel e pelo Deutero-Isaías, não se tinham
cumprido. Tinha, por isso, caído na apatia religiosa e na absoluta falta de
confiança em Deus…
Duvidava do amor de Deus, da sua justiça, do seu interesse por Judá.
Ora, todo este ceticismo tinha repercussões no culto, cada vez mais desleixado,
e na ética, em que se multiplicavam as falhas, as injustiças, as
arbitrariedades.
Nada pior que olhar para trás em situações como esta: perder o sentido
da vida e pensar que o Senhor nos abandonou.
É neste contexto que a palavra de Malaquias é dirigida ao Povo, em
tempos de desânimo, mas também de perversidade. Mesmo se é uma palavra dura,
acaba por sê-lo também de esperança porque mostra que o Senhor reporá a ordem:
vai chegar o “Dia do Senhor”, esse momento decisivo em que Deus colocará cada
um diante das suas responsabilidades e retribuirá a cada um conforme os seus
merecimentos (cf. Mal 2,17-3,5).
Por isto mesmo, o “Dia do Senhor” é um dos conceitos mais ambivalentes
de toda a Bíblia, por quanto contém de terrível, de sinais misteriosos,
associado em alguns texto, como este, ao fogo, a elementos da criação que nos
metem medo; por outro lado, é sempre um conceito positivo, porque mostra que
Ele não abandonou esse Povo desanimado, mas virá e entrará no seu templo.
Em última análise, a mensagem do profeta é uma mensagem de esperança!
Como será a vinda do Senhor?
A “vinda” do Senhor será precedida pela chegada de um mensageiro a
“preparar o caminho”. Não se explica, no nosso texto, quem é esse “mensageiro”;
contudo, mais à frente (cf. Mal 3,23), a figura que vai surgir para preparar o
“Dia do Senhor” é claramente identificada com o profeta Elias. Só depois,
chegará o Senhor para exercer o seu juízo sobre os pecadores. Não se diz
explicitamente se este “Senhor” que vem é o próprio Deus, ou se é o seu
“messias”… De qualquer forma, é muito provável haver aqui uma referência
messiânica (até pela figura de Elias aqui envolvida, considerada uma figura
precursora do messias).
Este “Senhor” é também designado como “o mensageiro da Aliança”; o
título parece designar o mediador que estabelece as negociações para a
assinatura de um compromisso.
Esta “Aliança” será a “nova Aliança” anunciada por Jeremias (cf. Jer
31,31; 32,40) e por Ezequiel (cf. Ez 16,60; 34,25; 36,26-28), a partir da qual
vai nascer um Povo novo, que vive em comunhão com Deus e que cumpre os
mandamentos e preceitos de Jahwéh.
A função do “Senhor” é, pois, possibilitar o aparecimento de uma “nova
Aliança” que comprometa Judá com o seu Deus.
Que efeitos terá a vinda do Senhor na vida dos crentes?
O resultado dessa intervenção do Senhor será a purificação do Povo.
Servindo-se de elementos muito sugestivos como o fogo ou a lixívia, o profeta
descreve essa purificação. Dela resultará um novo sacerdócio (“os filhos de
Levi… serão para o Senhor os que apresentam a oblação segundo a justiça” –
vers. 3), que fará “a oblação de Judá e de Jerusalém” voltar a ser “agradável
ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de outrora” (vers. 4).
A purificação do sacerdócio e do culto operada pelo Senhor será um
sinal claro da chegada de um novo tempo – um tempo em que Deus estará com o seu
Povo e em que um Povo de coração renovado prestará um culto sincero,
verdadeiro, agradável a Deus.
Interpelações para nós, hoje
¨ A figura deste
“mensageiro” de Deus, que prepara o caminho por onde o Senhor vai chegar,
recorda-nos a dimensão profética da vida cristã, na qual se insere Vida
Consagrada.
Os consagrados – chamados por Deus a serem mensageiros da sua vida e
do seu projeto – são ícones vivos de Deus no meio do mundo e dos homens. Como
Malaquias, eles denunciam aquilo que impede a caminhada dos homens rumo à vida
verdadeira e, com a sua vida e testemunho, desafiam os homens a um permanente
esforço de conversão, de renovação, de construção de vida nova.
Os consagrados, na fidelidade à sua vocação e missão, não podem
conformar-se com uma sociedade tranquilamente adormecida à sombra de valores
politicamente corretos, mas que potenciam uma cultura de escravidão e de morte.
Mesmo enfrentando a incompreensão e sofrendo a perseguição dos fazedores de
opinião, os consagrados são chamados a serem testemunhas proféticas da luz de
Deus que ilumina e vence as sombras do mundo.
¨ O “mensageiro” de que nos
fala a primeira leitura é a testemunha fiel e comprometida do inquestionável
amor de Deus pelos homens. O Deus que este “mensageiro” anuncia e propõe é um
Deus cheio de amor, que está atento aos dramas que marcam a caminhada humana,
que não se conforma com a apatia, o imobilismo e o comodismo que impedem a
descoberta da vida plena.
Os consagrados têm de ser testemunhas desse Deus que ama cada homem e
cada mulher para além de toda a medida. Com a sua palavra, com os seus gestos,
com a sua vida, eles têm de dizer a todos – especialmente aos mais pobres, aos
mais débeis, aos marginalizados e abandonados – que Deus os ama com um amor sem
limites e quer oferecer-lhes essa vida plena que a sociedade nem sempre lhes
assegura.
¨ No nosso texto, a ação do “mensageiro” é
determinante para fazer surgir uma nova realidade – o “novo céu e a nova terra”
onde habitam a verdade, a justiça e a paz.
É missão dos consagrados construir e testemunhar um mundo novo, onde
Deus reina, de facto. Mais, os consagrados, ao colocarem Deus no centro das
suas existências, ao despojarem-se dos bens deste mundo, ao viverem em
comunidades fraternas, ao renunciarem aos bens passageiros e superficiais,
anunciam esse mundo futuro de vida plena e definitiva que Deus quer oferecer a
todos os homens e para o qual Deus quer que toda a humanidade caminhe.
¨ Embora o nosso texto não
o refira explicitamente, o “profeta” é um homem ou uma mulher que vive num
diálogo permanente com Deus e que, na meditação da Palavra, na oração, na
Eucaristia celebrada e adorada, na comunhão de vida com Deus, descobre os
caminhos e os projetos de Deus para si próprio e para o mundo.
Será impossível a um consagrado viver fielmente a sua vocação e a sua
missão profética sem esta referência a Deus e sem este diálogo orante, pessoal,
íntimo e diário com Deus.
Epístola aos Hebreus 2, 14-18
Jesus é apresentado como o sacerdote por excelência que, ao oferecer
ao Pai o sacrifício da sua vida, ao serviço do plano salvador de Deus, fez
nascer o Homem Novo, livre da escravidão do pecado, promovido à categoria de
“filho de Deus”. Esta “catequese” convida os discípulos a olhar para a cruz de
Jesus, a interiorizar o seu significado, a seguir Jesus no dom total da vida,
na entrega radical, no serviço simples e humilde aos irmãos.
A Vida Consagrada é uma forma privilegiada de viver e de testemunhar
esta realidade.
Por quem e para quem é escrita a Carta aos Hebreus?
A Carta aos Hebreus é um escrito de autor anónimo, aparecido
provavelmente antes do ano 70, e cujos destinatários, em concreto,
desconhecemos. Com o título “aos hebreus” poderia pensar-se num escrito
dirigido aos cristãos provenientes do judaísmo, pelas múltiplas referências ao
Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta. Mesmo se
uma tal hipótese é possível, isso não é totalmente seguro, uma vez que o Antigo
Testamento era um património comum: todos os cristãos – quer os vindos do
judaísmo quer os vindos do paganismo – assumiam esta primeira parte da
Escritura Sagrada que viria a denominar-se o Antigo ou o Primeiro Testamento.
O que é certo é que se trata de cristãos em situação difícil: expostos
a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… Em tal situação, o
desalento e a desesperança parecem tomar conta destes nossos predecessores na
fé. Por isso, facilmente perdem o fervor inicial e acabam por ceder às seduções
de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos…
A mensagem do autor vai revestir-se, por isso mesmo, de um colorido de
esperança, claramente numa belíssima apresentação da figura de Jesus.
O porquê desta carta
O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e
levar os crentes a crescer na fé, se quisermos, a reviver o tal fervor inicial
a que antes se acenava. Para isso, ele expõe o mistério de Cristo, apresentado,
sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança, que faz a mediação entre Deus e
os homens. Para tal, tem necessariamente de se servir da linguagem e imagética
litúrgicas do Antigo Testamento.
Nesta linha, o autor apresenta os crentes na sua condição cristã, que
deriva da missão sacerdotal de Cristo. Porque estão em relação com o Pai, por
meio do Sumo Sacerdote que é Cristo, eles são inseridos nesse dinamismo e são o
Povo sacerdotal. O sacerdote é, no contexto do Antigo Testamento, aquele que
oferece os sacrifícios pelo Povo. Se Cristo é o Sumo Sacerdote, é Ele que
oferece; mas inseridos neste dinamismo, todos os crentes são chamados a fazer
da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de ação de graças e de amor.
Uma reflexão sobre o objetivo da vinda de Cristo
Deus tem um plano: renovar a humanidade ou, para usarmos um termo
querido ao Novo Testamentário, fazer nascer o Homem Novo (cf. Jo 3,3-7; Rm
6,5-6; Ef 2,15). Trata-se do homem que superou a sua condição limitada e
pecadora, que se despiu do egoísmo, do orgulho e dos preconceitos e que chegou
à total realização do seu ser, à situação definitiva do homem libertado, à vida
verdadeira e eterna, à condição de “filho de Deus”. Este acaba por ser o
próprio objetivo da vinda de Cristo, da sua Encarnação; um mistério central da
nossa fé.
Jesus Cristo nasceu no meio de nós, vestiu a nossa carne mortal,
solidarizou-Se com a nossa humanidade, conheceu as nossas limitações e as
nossas fragilidades (a morte que acaba por ser vencida no seu mistério pascal
de morte e ressurreição). Tornando-Se homem, Ele fez-Se nosso irmão;
tornando-Se nosso irmão, inseriu-nos na família divina e promoveu-nos à
categoria de “filhos de Deus”.
Que mensagem melhor para nos transmitir a esperança de viver num mundo
que não tem a última palavra? Como poderia mostrar-se melhor que Deus ainda
cuida do seu Povo e que é fiel à sua Aliança?
O Sumo-Sacerdócio de Jesus
Ao fazer-Se homem, Jesus tornou-Se “um sumo sacerdote misericordioso e
fiel” (vers. 17). A função do sumo sacerdote é servir de ponte entre os homens
e Deus; e, ao vir ao nosso encontro, ao fazer-Se nosso irmão, ao vencer a
morte, ao associar-nos à família de Deus, Jesus refez a comunhão entre os
homens e Deus. Como sumo sacerdote, Ele realizou também – diz o autor da Carta
– a expiação dos pecados do povo (vers. 17), isto é, Ele introduziu na nossa
débil, frágil e pecadora natureza humana dinamismos de superação dos nossos
limites e falhas, dinamismos de vida nova, de vida verdadeira e eterna, de vida
divina.
Desafios da nova condição de filhos no Filho
A condição de “filhos de Deus” exige, no entanto, a superação de tudo
aquilo que em nós é frágil, débil, corruptível, finito…
Jesus trouxe essa mensagem de esperança, ao vencer o maior inimigo do
homem, a morte (cf. 1Cor 15,26).
Enquanto gera medo, sofrimento, escravidão, a morte perpetua a nossa
debilidade e fragilidade, impedindo-nos de chegar à vida plena do homem
libertado. Por isso, para nos tornar “filhos de Deus”, Jesus tinha de vencer a
morte. E mostrou que, numa vida de serviço e de entrega aos irmãos, coroada na
morte que não é o último capítulo da sua história, Ele fez-nos ver que é
possível acreditar na vida…
Interpelações para nós, hoje
¨ Esta história de um Deus
que aceitou despir-Se das suas prerrogativas divinas e assumir as nossas
fragilidades e limitações é uma história estranha e ilógica à luz dos critérios
e padrões que hoje vestem o mundo e a história dos homens… Mas é uma história
que ilustra, sem deixar margem para dúvidas, a intensidade e a radicalidade do
amor de Deus por nós.
A constatação desta realidade é algo que enche o nosso coração de
serenidade e de alegria e que nos permite encarar a vida, os desafios, as
dificuldades, os medos, os limites da nossa existência humana, com esperança,
com coragem, com confiança.
Se Deus nos ama desta forma, a nossa caminhada pela história só poderá
ter um final feliz.
Aqueles que seguem Jesus Cristo na Vida Consagrada estão conscientes
desta realidade; são alimentados, ao longo do seu percurso oblativo, por esta
confiança; têm por missão dar testemunho diante dos homens seus irmãos, com
luminosa alegria, da intensidade e da radicalidade do amor de Deus.
¨ A morte de Jesus é,
naturalmente, o ponto alto dessa história de amor que Deus quis viver connosco.
A cruz “apresenta”, aos homens e ao mundo, a lógica do amor de Deus, que é um
amor total, ilimitado e incondicional…
Naturalmente, os discípulos de Jesus – e também aqueles discípulos que
são chamados a uma especial vocação de consagração – são convidados a olhar
para a cruz de Jesus, a interiorizar o seu significado, a seguir Jesus no dom
total da vida, na entrega radical, no serviço simples e humilde aos irmãos.
¨ Contemplar a cruz onde se
manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude de
Jesus e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que
sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que são
privados de direitos e de dignidade…
Olhar a cruz de Jesus e o seu exemplo significa denunciar tudo o que
gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas,
ideologias; significa evitar que os homens continuem a crucificar outros homens;
significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor…
Viver deste jeito pode conduzir à morte. Mas o discípulo sabe que amar
como Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer: o amor
gera vida nova e introduz na nossa carne frágil e mortal os dinamismos da
ressurreição, vivida em comunhão solidária na alegria e na esperança!
Evangelho de São Lucas 2, 22-40
Através das palavras e da catequese do evangelista Lucas, desenha-se
aqui o quadro da “Apresentação de Jesus” no Templo de Jerusalém, a fim de ser
“consagrado” ao Senhor.
A consagração de Cristo recorda-nos que a nossa vida se deve cumprir
num “ecce venio”, numa entrega total nas mãos do Pai, ao serviço do projeto de
salvação de Deus para os homens e para o mundo.
Os Evangelhos da Infância de Jesus
Não foi logo desde o início que os primeiros cristãos se interessaram
por aquilo que, hoje, nós conhecemos como “Evangelhos da Infância” e de que faz
parte este texto de Lucas. O interesse dos primeiros cristãos era, sobretudo,
pela mensagem e proposta que Jesus fez; daí que os Evangelhos se centrem
especialmente nas recordações sobre a vida pública e a paixão do Senhor.
Só num estádio posterior houve uma certa curiosidade acerca dos
primeiros anos da vida de Jesus. Coligiram-se, então, escassas informações
históricas sobre a infância de Jesus e amassou-se esse material com reflexões
que a comunidade fazia acerca do Senhor. Partindo de algumas indicações
históricas e desenvolvendo uma reflexão teológica para explicar quem é Jesus,
Lucas apresenta a história da Infância de Jesus.
O objetivo de Lucas é responder à pergunta fundamental: quem é este
Jesus?
O interesse do Evangelho pela apresentação de Jesus ao Templo
Lucas propõe-nos o quadro da apresentação de Jesus no Templo. Segundo
a Lei de Moisés, todos os primogênitos, tanto dos homens como dos animais,
pertenciam a Jahwéh e deviam ser oferecidos a Jahwéh (cf. Ex 13,1-2. 11-16). O
costume de oferecer os primogênitos aos deuses é um costume cananeu. No
entanto, Israel transformou-o no que dizia respeito aos primogênitos dos
homens… Estes não deviam ser oferecidos em sacrifício, mas resgatados por um
animal, imolado ao Senhor (vers. 23-24).
De acordo com Lv 12,2-8, quarenta dias após o nascimento de uma
criança, esta devia ser apresentada no Templo, onde a mãe oferecia um ritual de
purificação. Nessa cerimônia
, devia ser oferecido um cordeiro de um ano (para
as famílias mais abastadas) ou então duas pombas ou duas rolas (para as
famílias de menores recursos), tradição a que o nosso texto faz referência (vers.
24). É neste contexto que este passo do Evangelho nos situa.
Na linha da apresentação de todas as histórias da infância de Jesus,
também com esta Lucas pretende mostrar quem é Jesus e qual a sua missão no
mundo. Ao sublinhar repetidamente a fidelidade da família de Jesus à Lei do
Senhor (vers. 22. 23. 24), Lucas quer deixar claro que Jesus, desde o início da
sua caminhada entre os homens, viveu na escrupulosa fidelidade aos mandamentos
e aos projetos do Pai. Desde o início da sua existência terrena, Ele entregou a
sua vida nas mãos do Pai, numa adesão absoluta ao plano do Pai. A missão de
Jesus no mundo passa por aí, pelo cumprimento rigoroso da vontade e do projeto
do Pai.
Simeão e Ana
As duas personagens que acolhem Jesus no templo, Simeão e Ana, representam
o Israel fiel que esperava ansiosamente a sua libertação e a restauração do
reinado de Deus sobre o seu Povo.
De Simeão diz-se que era um homem “justo e piedoso, que esperava a
consolação de Israel” (vers. 25). As palavras e os gestos de Simeão são
particularmente sugestivos… Simeão toma Jesus nos braços e apresenta-O ao
mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus quer oferecer “a todos os povos”,
“luz para se revelar às nações e glória de Israel” (vers. 28-32).
Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como esse Messias
libertador e salvador, a quem Deus enviou – não só ao seu povo, mas a todos os
povos da terra.
Aqui desponta um tema muito querido a Lucas: o da universalidade da
salvação de Deus… Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para
todos os povos, independentemente da sua raça, da sua cultura, das suas
fronteiras, dos seus esquemas religiosos.
As palavras que Simeão dirige a Maria (“este menino foi estabelecido
para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição;
e uma espada trespassará a tua alma” – vers. 34-35) aludem, provavelmente, à
divisão que a proposta de Jesus provocará em Israel e ao resultado dessa
divisão – o drama da cruz.
Ana é também uma figura do Israel pobre e sofredor (“viúva”), que se
manteve fiel a Jahwéh (não se voltou a casar, após a morte do marido – vers.
37), que espera a salvação de Deus. Depois de reconhecer em Jesus a salvação
anunciada por Deus, ela “falava do menino a todos os que esperavam a redenção
de Jerusalém” (vers. 38).
A palavra utilizada por Lucas para falar de libertação é a palavra
grega “lustrosis” (“resgate”), utilizada no Êxodo para falar da libertação da
escravidão do Egito (cf. Ex 13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16).
Jesus é, assim, apresentado por Lucas como o Messias libertador, que
vai conduzir o seu Povo do domínio da escravidão para o domínio da liberdade. A
apresentação no Templo de um primogénito celebrava precisamente a libertação do
Egito e a passagem da escravidão para a liberdade (cf. Ex 13, 11-16).
Nas figuras de Ana e Simeão, desse Israel antigo e fiel, esperançoso
nas promessas de Deus, vemos um mundo que crê no Deus da Aliança e da Paz e,
sobretudo, na fidelidade de Deus às suas promessas.
Mesmo quando não se vê o modo de sair de uma crise, quando Deus parece
mais longínquo, talvez esquecido de nós, eis que Ele vem ao Templo, numa figura
frágil, de um Menino, “sinal de contradição”, mas também, e sobretudo, sinal de
redenção, de libertação para todos os que ainda ousam crer e esperar num mundo
segundo a ordem de Deus, em que a “sabedoria” e a “graça” que habitavam a
pessoa de Jesus possam ser os fundamentos de uma “civilização do amor”.
O Menino que crescia: sabedoria e graça estavam com ele
O texto termina com uma referência ao resto da infância de Jesus e ao
crescimento do menino em “sabedoria” e “graça”. Trata-se de atributos que lhe
vêm do Pai e que atestam, portanto, a sua divindade (vers. 40).
Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens com uma missão que lhe
foi confiada pelo Pai. O objetivo de Jesus é cumprir integralmente o projeto do
Pai… E esse projeto passa por levar os homens da escravidão para a liberdade e
em apresentar a proposta de salvação de Deus a todos os povos da terra, mesmo
àqueles que não pertencem tradicionalmente à comunidade do Povo de Deus.
Interpelações para nós, hoje
¨ A Festa da “Apresentação
do Senhor” coincide com a celebração do Dia da Vida Consagrada. Ao olhar para o
mistério da consagração aqui expresso, os consagrados são convidados a
revisitar os fundamentos da sua consagração, vivida no seguimento de Jesus, por
amor do Reino.
Poderíamos dizer que se celebra hoje em toda a Igreja um singular
“ofertório”, no qual os homens e as mulheres consagradas renovam
espiritualmente o dom de si. Agindo desta forma, ajudam as comunidades
eclesiais a crescer na dimensão oblativa que as constitui intimamente, as
edifica e as estimula a testemunhar Jesus pelos caminhos do mundo.
¨ A “apresentação do
Senhor” no Templo de Jerusalém revela que, desde o início da sua caminhada
entre os homens, Jesus escolheu um caminho de total fidelidade aos mandamentos
e aos projetos do Pai. Ao oferecer-Se a Deus em oblação, ao ser “consagrado” ao
Pai, Jesus manifesta a sua disponibilidade para cumprir fiel e
incondicionalmente o plano salvador do Pai até às últimas consequências, até ao
dom total da própria vida em favor dos homens.
O “ecce venio” de Jesus é o modelo da doação e da entrega de todos os
consagrados, chamados a seguir Jesus mais de perto, numa oblação total a Deus e
ao Reino. A vocação de consagrados concretiza-se na entrega de toda a
existência nas mãos do Pai, na fidelidade absoluta à sua vontade e aos seus
planos.
Que valor e que importância tem na sua vida o projeto de Deus?
Procuram identificar a vontade de Deus e com ela conformar a sua vida, em total
doação e entrega, ou deixam que sejam os seus projetos e esquemas pessoais a
ditar as suas opções e as coordenadas da sua vida?
¨ Jesus é-nos apresentado,
neste texto, como “a salvação colocada ao alcance de todos os povos”, a “luz
para se revelar às nações e a glória de Israel”, o messias com uma proposta de
libertação para todos os homens.
Que eco tem esta “apresentação” de Jesus no coração dos consagrados?
Jesus é, de facto, a luz que ilumina as suas vidas e que os conduz pelos
caminhos do mundo? Ele é o caminho certo e inquestionável para a salvação, para
a vida verdadeira e plena? É n’Ele que colocam a sua ânsia de libertação e de
vida nova? Este Jesus aqui apresentado tem real impacto na sua vida, nas suas
opções, nos passos que dão no seu caminho de consagração, ou é apenas uma
figura decorativa de um certo cristianismo de fachada?
¨ Simeão e Ana são, na cena
evangélica que nos é proposta, figuras do Israel fiel, que foi preparado desde
sempre para reconhecer e para acolher o messias de Deus. Na verdade, quando
Jesus aparece, eles estão suficientemente despertos para reconhecer naquele
bebé o messias libertador que todos esperavam e apresentam-n’O formalmente ao
mundo.
Hoje, os consagrados – discípulos que acolheram Jesus como a sua luz e
que aceitaram segui-l’O – têm a responsabilidade de O apresentar ao mundo e de
O tornar uma proposta questionadora, libertadora, iluminadora, salvadora, para
os homens nossos irmãos.
É isso que acontece? Através do seu anúncio – feito com palavras, com
gestos, com atitudes, com a fidelidade aos votos religiosos – Jesus é
apresentado ao mundo e questiona os homens seus irmãos?
Se tantos homens ignoram a “luz” libertadora que Jesus veio acender ou
não se sentem interpelados pelo projeto de Jesus, a culpa não será, um pouco,
de um certo imobilismo e instalação, de algum “cinzentismo” na vivência da fé,
da forma pouco entusiasta como é testemunhada na Vida Consagrada?
¨ A Vida Consagrada é
chamada a refletir de maneira particular a luz de Cristo. Olhando as pessoas
consagradas, que procuram viver ao estilo das Bem-aventuranças, os homens e
mulheres do nosso tempo têm de ver o “fermento” de esperança para a humanidade,
o “sal” que dá sabor ao mundo, uma “luz” que se acende na escuridão do mundo e
que indica caminhos de verdade e de liberdade, a “porta” entreaberta para o
Reino de Deus e para os “novos céus e a nova terra” que Deus quer apresentar à
humanidade.
É preciso que os consagrados sejam luz e conforto para cada pessoa,
velas acesas que ardem com o próprio amor de Cristo, luz que ilumina as sombras
do mundo e que profeticamente anuncia a aurora de uma nova realidade.
É isso que acontece? O seu testemunho interpela positivamente os
homens e mulheres que todos os dias com eles se cruzam nos caminhos do mundo e
aponta-lhes a realidade do Reino?
¨ Os desafios de Deus, os
seus planos, revelam-se, de forma privilegiada, na Palavra de Deus…
Que importância é que a Palavra de Deus assume na vida dos cristãos e
dos consagrados e das nossas comunidades cristãs e religiosas? Procuram viver
na escuta da Palavra, numa progressiva sensibilidade à Palavra de Deus, a fim
de discernir os desafios de Deus? Encontram tempo, individualmente e a nível
comunitário, para se reunirem à volta da Palavra de Deus, para partilhar a
Palavra de Deus, para se deixarem questionar pela Palavra de Deus?
¨ Pobreza, castidade e
obediência são as características distintivas do homem redimido, interiormente
resgatado da escravidão do egoísmo.
Livres para amar, livres para servir: assim são os homens e as
mulheres que renunciam a si mesmos pelo Reino dos Céus. Seguindo Cristo,
crucificado e ressuscitado, os consagrados vivem esta liberdade como
solidariedade, assumindo os pesos espirituais e materiais dos seus irmãos.
Os votos são assumidos pelos consagrados como elemento desta entrega
total nas mãos de Deus – a exemplo de Cristo – para o serviço do Reino e da
humanidade, ou são vistos como uma carga insuportável que os limita e os torna
infelizes?
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