Em direção à felicidade e à
vida definitiva.
A liturgia de hoje garante-nos
que Deus tem um projeto de salvação para que o homem possa chegar à vida plena
e propõe-nos uma reflexão sobre a atitude que devemos assumir diante desse projeto.
Na segunda leitura, Paulo
apresenta o projeto salvador de Deus (aquilo que ele chama “sabedoria de Deus”
ou “o mistério”). É um projeto que Deus preparou desde sempre “para aqueles que
o amam”, que esteve oculto aos olhos dos homens, mas que Jesus Cristo revelou
com a sua pessoa, as suas palavras, os seus gestos e, sobretudo, com a sua
morte na cruz (pois aí, no dom total da vida, revelou-se aos homens a medida do
amor de Deus e mostrou-se ao homem o caminho que leva à realização plena).
A primeira leitura recorda,
no entanto, que o homem é livre de escolher entre a proposta de Deus (que
conduz à vida e à felicidade) e a autossuficiência do próprio homem (que
conduz, quase sempre, à morte e à desgraça). Para ajudar o homem que escolhe a
vida, Deus propõe “mandamentos”: são os “sinais” com que Deus delimita o
caminho que conduz à salvação.
O Evangelho completa a reflexão,
propondo a atitude de base com que o homem deve abordar esse caminho balizado
pelos “mandamentos”: não se trata apenas de cumprir regras externas, no
respeito estrito pela letra da lei; mas trata-se de assumir uma verdadeira
atitude interior de adesão a Deus e às suas propostas, que tenha, depois,
correspondência em todos os passos da vida.
LEITURA I – Sir 15,
16-21 (15-20)
O Livro de Ben Sira (designado na Bíblia Católica com o nome de
“Eclesiástico”) é um livro “sapiencial” – isto é, um livro cujo objetivo é
apresentar indicações de carácter prático, deduzidas da reflexão e da
experiência, sobre a arte de viver bem, de ter êxito, de ser feliz (é essa a
temática da reflexão sapiencial no Médio Oriente, em geral, e em Israel, em
particular). O seu autor é um tal Jesus Ben Sira, um judeu tradicional,
convencido que a Tora (a Lei) dada por Deus a Israel é a súmula da sabedoria.
Estamos no início do séc. II a.C.; a cultura grega (instalada na
Palestina desde 333 a.C., quando Alexandre da Macedónia venceu Dario III, em
Issos, e se apossou da Palestina e do Egito) minava há já algum tempo, a
cultura, a fé, os valores tradicionais de Israel. Os mais jovens abandonavam a
fé dos pais, seduzidos pelo brilho superior dessa cultura universal, que era a
cultura helénica…
Jesus Ben Sira escreve para ajudar os israelitas a perceber a
singularidade da sua fé e da sua cultura, a fim de que não se perca a
identidade do Povo de Deus. Apresenta, na sua obra, uma síntese da religião
tradicional e da sabedoria de Israel, mostrando que a cultura judaica não fica
a dever nada à brilhante cultura grega.
Nos capítulos 14 e 15 do Livro de Ben Sira, há uma reflexão sobre como
encontrar a verdadeira felicidade. É nesse contexto que devemos situar o nosso
texto: dirigindo-se aos seus concidadãos, seduzidos pela cultura grega, Jesus
Ben Sira sugere-lhes o caminho da verdadeira felicidade e convida-os a
percorrê-lo.
O tema da opção entre dois caminhos – o caminho da vida e da
felicidade e o caminho da morte e da desgraça – é um tema caro à teologia
tradicional de Israel. Para os teólogos deuteronomistas, essa é a grande
questão que condiciona o sentido da vida do homem e o sentido da história: se o
homem escolhe caminhos de orgulho e de autossuficiência, à margem de Deus e dos
mandamentos, prepara para si e para a comunidade em que está inserido um futuro
de morte e de desgraça; mas se o homem escolhe viver no “temor” de Deus e no
respeito pelas propostas de Jahwéh (mandamentos), ele constrói para si e para o
seu Povo um futuro de felicidade, de bem estar, de abundância, de paz. A
questão está muito bem expressa em Dt 30,15-20.
A reflexão sapiencial tradicional mantém-se na mesma linha. Os
“sábios” de Israel já perceberam (inclusive a partir da experiência que a
própria história da sua nação lhes forneceu) que, quando respeita as indicações
de Deus (mandamentos), o Povo constrói uma sociedade fraterna, livre,
solidária, onde todos se respeitam e têm o que é necessário para viver de forma
equilibrada e feliz; mas quando o Povo escolhe caminhos à margem de Jahwéh e
faz “orelhas moucas” às propostas de Deus, constrói egoísmo, exploração,
divisão e, portanto, sofrimento, privações, morte. As grandes catástrofes
nacionais (nomeadamente o exílio na Babilônia
) resultaram de opções por
caminhos à margem de Deus e dos seus mandamentos.
Neste texto, Jesus Ben Sira pretende colocar os homens do seu tempo –
sobretudo aqueles que oscilavam entre os valores da fé dos pais e os valores
mais “in” da cultura dominante – diante da opção fundamental que a liberdade
lhes oferece: a vida e a morte, a felicidade e a desgraça.
Um pormenor notável reside na convicção (aqui muito bem expressa) de
que Deus respeita absolutamente a liberdade do homem. O homem não é, segundo
Ben Sira, um títere nas mãos de Deus, ou um robot que Deus liga e desliga com o
seu comando; mas o homem é um ser livre, que faz as suas escolhas (escolhas que
condicionam, necessariamente, o seu futuro) e que tem nas suas mãos o próprio
destino. Deus indica ao homem os caminhos para chegar à vida e à felicidade;
mas, depois, respeita absolutamente as opções que o homem faz. Resta ao homem
fazer as suas escolhas e construir o seu destino: ou com Deus, ou contra Deus;
ou um destino de vida e felicidade, ou um destino de morte e de desgraça.
ATUALIZAÇÃO
• A questão fundamental que aqui nos é posta é esta: existem caminhos
diversos, opções várias, que dia a dia nos interpelam e desafiam. Em cada
momento, corremos o risco da liberdade, assumimos o supremo desafio de escolher
o nosso destino. Sentimos essa responsabilidade e procuramos responder ao
desafio, ou passamos a vida a encolher os ombros e a deixar-nos ir na corrente,
ao sabor das modas, do “politicamente correto”, aceitando que sejam os outros a
impor-nos os seus esquemas, os seus valores, a sua visão das coisas?
• Uma proposta leva à vida e à felicidade. Quem quiser ir por aí, tem
de seguir os “sinais” (mandamentos) com que Deus delimita o caminho que leva à
vida. Percorrer esse caminho implica, evidentemente, viver numa escuta
permanente de Deus, num diálogo nunca acabado com Deus, numa descoberta contínua
das suas propostas. Esforço-me por viver na escuta de Deus e por descobrir os
“sinais” que Ele me deixa?
• A outra proposta leva à morte. É o caminho daqueles que escolhem o
egoísmo, a autossuficiência, o orgulho, o isolamento em relação a Deus e às
suas sugestões. Ao fechar-se em si e ao ignorar as propostas de Deus, o homem
acaba por escolher os seus interesses e por manipular o mundo e os outros
homens, introduzindo desequilíbrios que geram injustiça, miséria, exploração,
sofrimento, morte. Talvez nenhum de nós escolha, conscientemente, este caminho;
mas o orgulho, a ambição, a vontade de afirmar a nossa independência e
liberdade, podem levar-nos (mesmo sem o notarmos) a passar ao lado dos “sinais”
de Deus e a ignorá-los, resvalando por atalhos que vão dar ao egoísmo, ao
fechamento em nós. Em cada dia que começa, é preciso fazer o balanço do caminho
percorrido e renovar as nossas opções.
• Este texto levanta, também, a questão da liberdade. A Palavra de
Deus que aqui nos é proposta deixa claro que Deus nos criou livres e que
respeita absolutamente as nossas opções e a nossa liberdade. Deus não é um
empecilho à liberdade e à realização plena do homem. Ele coloca-nos diante das
diferentes opções, diz-nos onde elas nos levam, aponta o caminho da verdadeira
felicidade e da realização plena e… deixa-nos escolher.
• Atenção: a morte e a desgraça nunca são um castigo de Deus por nos
termos portado mal e por termos escolhido caminhos errados; mas é o resultado
lógico de escolhas egoístas, que geram desequilíbrios e que destroem a paz, o
equilíbrio, a harmonia do mundo, da família e de mim próprio.
SALMO RESPONSORIAL –
Salmo 118 (119)
Refrão: Ditoso o que anda na lei do Senhor.
Felizes os que seguem o caminho perfeito
e andam na lei do Senhor.
Felizes os que observam as suas ordens
e O procuram de todo o coração.
Promulgastes os vossos preceitos
para se cumprirem fielmente.
Oxalá meus caminhos sejam firmes
na observância dos vossos decretos.
Fazei bem ao vosso servo:
viverei e cumprirei a vossa palavra.
Abri, Senhor, os meus olhos
para ver as maravilhas da vossa Lei.
Ensinai-me, Senhor, o caminho dos vossos decretos
para ser fiel até ao fim.
Dai-me entendimento para guardar a vossa lei
e para a cumprir de todo o coração.
LEITURA II – 1 Cor 2,
6-10
Continuamos no ambiente da comunidade cristã de Corinto e à volta da
discussão sobre a verdadeira sabedoria. Recordemos que o ponto de partida para
a reflexão de Paulo é a pretensão dos coríntios em equiparar a fé cristã a um
qualquer caminho filosófico, que devia ser percorrido sob a orientação de
mestres humanos (para uns, Paulo, para outros Pedro, para outros Apolo), à
maneira do que se fazia nas escolas filosóficas gregas. Os coríntios corriam,
dessa forma, o risco de fazer da fé uma ideologia, mais ou menos brilhante
conforme as qualidades pessoais ou a elegância do discurso dos mestres que
defendiam as teses. Paulo está consciente, no entanto, que o único mestre é
Cristo e que a verdadeira sabedoria não é a que resulta do brilho e da
elegância das palavras ou da coerência dos sistemas filosóficos, mas é a que
resulta da cruz.
Depois de denunciar a pretensão dos coríntios em encontrar nos homens
a verdadeira proposta de sabedoria para chegar a uma vida plena, Paulo vai
apresentar – de forma mais desenvolvida – a “sabedoria de Deus”.
Para Paulo, falar da “sabedoria de Deus” é falar do projeto de
salvação que Deus preparou para a humanidade (noutros textos, Paulo usa um
outro conceito para falar da mesma coisa: “mystêrion” – cf. Rom 16,25; Ef
1,3-10; 3,3.4.9; Col 1,26; 2,2; 4,3). Trata-se de um plano “que Deus preparou
para aqueles que o amam”, no sentido de os levar à salvação, à vida plena. Esse
plano resulta do amor e da solicitude de Deus pelos seus filhos, os homens. É
um plano que o próprio Deus manteve misterioso e oculto durante muitos séculos,
e só revelou através do seu Filho, Jesus Cristo (antes de revelação feita
através das palavras, dos gestos, da pessoa de Cristo, dificilmente os homens
estariam preparados para compreender o alcance e a profundidade do plano
divino, da “sabedoria de Deus”).
Na leitura que Paulo faz da história da salvação, as coisas são
claras: Deus escolheu-nos desde sempre e quis que nos tornássemos santos e
irrepreensíveis, a fim de chegarmos à vida eterna, à felicidade total, à
realização plena. Por isso, veio ao nosso encontro, fez aliança conosco,
indicou-nos os caminhos da vida e da felicidade; e, na plenitude dos tempos,
enviou ao nosso encontro o seu próprio Filho, que nos libertou do pecado, que
nos inseriu numa dinâmica de amor e de doação da vida e que nos convocou à
comunhão com Deus e com os irmãos. Na cruz de Jesus, está bem expressa esta
história de amor que vai até ao ponto de o próprio Filho dar a vida por nós…
Esse plano de salvação continua, agora, a acontecer na vida dos crentes pela ação
do Espírito: é o Espírito que nos anima no sentido de nascermos, dia a dia,
como homens novos, até nos identificarmos totalmente com Cristo.
ATUALIZAÇÃO
• O projeto de salvação que Deus tem para os homens, e que resulta do
seu imenso amor por nós, é um projeto que nos garante a vida definitiva, a
realização plena, a chegada ao patamar do Homem Novo, a identificação final com
Cristo. Os crentes são, em consequência deste dinamismo de esperança que o projeto
de salvação de Deus introduz na nossa história, pessoas que olham a vida com os
olhos cheios de confiança, que sabem enfrentar sem medo nem dramas as crises,
as vicissitudes, os problemas que o dia-a-dia lhes apresenta, e que caminham
cumprindo a sua missão no mundo, em direção à meta final que Deus tem reservada
para aqueles que O amam.
• No entanto, Deus não força ninguém: a opção pelo caminho que conduz
à vida plena, ao Homem Novo, é uma escolha livre que cada homem e cada mulher
devem fazer. O que Deus faz é ladear o nosso caminho de “sinais” (mandamentos)
que indicam como chegar a essa meta final de vida definitiva. Como é que eu
percorro esse caminho: na atenção constante aos “sinais” de Deus, ou na autossuficiência
de quem quer ser o responsável único pela sua liberdade e não precisa de Deus
para nada?
ALELUIA – cf. Mt 11, 25
Bendito sejais, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque revelastes aos pequeninos os mistérios do reino.
EVANGELHO – Mt
5,17-37
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 20“Eu
vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da
Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus.
21Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. 22Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo.
27Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. 28Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração.
33Vós ouvistes também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ´cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. 34aEu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum. 37Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do Maligno”.
21Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. 22Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo.
27Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. 28Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração.
33Vós ouvistes também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ´cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. 34aEu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum. 37Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do Maligno”.
Terminado o preâmbulo do “sermão da montanha” (que vimos nos dois
anteriores domingos), entramos no corpo do discurso. Recordamos aquilo que
dissemos nos domingos anteriores: o discurso de Jesus “no cimo de um monte”
transporta-nos à montanha da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao seu
Povo a Lei; agora, é Jesus que, numa montanha, oferece ao novo Povo de Deus
essa nova Lei que deve guiar todos os que estão interessados em aderir ao
“Reino”. Neste discurso (o primeiro dos cinco grandes discursos que Mateus
apresenta), o evangelista agrupa um conjunto de “ditos” de Jesus e oferece à
comunidade cristã um novo código ético, a nova Lei, que deve guiar os
discípulos de Jesus na sua marcha pela história.
Para entendermos o “pano de fundo” do texto que nos é hoje proposto,
convém que nos situemos no ambiente das comunidades cristãs primitivas e, de
forma especial, no ambiente da comunidade mateana: trata-se de uma comunidade
com fortes raízes judaicas, na qual preponderam os cristãos que vêm do
judaísmo… As questões que a comunidade põe, na década de oitenta (quando este
Evangelho aparece), são: continuamos obrigados a cumprir a Lei de Moisés? Jesus
não aboliu a Lei antiga? O que é que há de verdadeiramente novo na mensagem de
Jesus?
Mateus tenta conciliar as tendências e as respostas dos vários grupos
que, no contexto da sua comunidade cristã, eram dadas a estas questões.
Na primeira parte do Evangelho que hoje nos é proposto (vers. 17-19),
Mateus sustenta que Cristo não veio abolir essa Lei que Deus ofereceu ao seu
Povo no Sinai. A Lei de Deus conserva toda a validade e é eterna; no entanto, é
preciso encará-la, não como um conjunto de prescrições legais e externas, que
obrigam o homem a proceder desta ou daquela forma rígida, no contexto desta ou daquela
situação particular, mas como a expressão concreta de uma adesão total a Deus
(adesão que implica a totalidade do homem, e que está para além desta ou
daquela situação concreta). Dito de outra forma: os fariseus (que eram a
corrente dominante no judaísmo pós-destruição de Jerusalém) tinham caído na
casuística da Lei e achavam que a salvação passava pelo cumprimento de certas
normas concretas; mas Mateus achava que a proposta libertadora de Jesus ia mais
além e passava por assumir uma atitude interior de compromisso total com Deus e
com as suas propostas.
Na segunda parte do texto que nos é proposto (vers. 20-37), Mateus
refere quatro exemplos concretos desta nova forma de entender a Lei (na
realidade, são seis os exemplos que aparecem no conjunto do texto mateano; mas
o Evangelho de hoje só apresenta quatro; os outros dois ficam para o próximo
domingo).
O primeiro (vers. 21-26) refere-se às relações fraternas. A Lei de
Moisés exige, simplesmente, o não matar (cf. Ex 20,13; Dt 5,17); mas, na
perspectiva de Jesus (que não se resume ao cumprimento estrito da letra da Lei,
mas exige uma nova atitude interior), o não matar implica o evitar causar
qualquer tipo de dano ao irmão… Há muitas formas de destruir o irmão, de o
eliminar, de lhe roubar a vida: as palavras que ofendem, as calúnias que
destroem, os gestos de desprezo que excluem, os confrontos que põem fim à
relação. Os discípulos do “Reino” não podem limitar-se a cumprir a letra da
Lei; têm que assumir uma nova atitude, mais abrangente, que os leve a um
respeito absoluto pela vida e pela dignidade do irmão. A propósito, Mateus
aproveita para apresentar à sua comunidade uma catequese sobre a urgência da
reconciliação (o cortar relações com o irmão, afastá-lo da relação,
marginalizá-lo, não é uma forma de matar?). Na perspectiva de Mateus, a
reconciliação com o irmão deve sobrepor-se ao próprio culto, pois é uma mentira
a relação com Deus de alguém que não ama os irmãos.
O segundo (vers. 27-30) refere-se ao adultério. A Lei de Moisés exige
o não cometer adultério (cf. Ex 20,14; Dt 5,18); mas, na perspectiva de Jesus,
é preciso ir mais além do que a letra da Lei e atacar a raiz do problema – ou
seja, o próprio coração do homem… É no coração do homem que nascem os desejos
de apropriação indevida daquilo que não lhe pertence; portanto, é a esse nível
que é preciso realizar uma “conversão”. A referência a arrancar o olho que é
ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada aos desejos)
ou a cortar a mão que é ocasião de pecado (a mão é, nesta cultura, o órgão da ação,
através do qual se concretizam os desejos que nascem no coração) são expressões
fortes (bem ao gosto da cultura semita mas que, no entanto, não temos de
traduzir à letra) para dizer que é preciso atuar lá onde as ações más do homem
têm origem e eliminar, na fonte, as raízes do mal.
O terceiro (vers. 31-32) refere-se ao divórcio. A Lei de Moisés
permite ao homem repudiar a sua mulher (cf. Dt 24,1); mas, na perspectiva de
Jesus, a Lei tem de ser corrigida: o divórcio não estava no plano original de
Deus, quando criou o homem e a mulher e os chamou a amarem-se e a partilharem a
vida.
O quarto (vers. 33-37) refere-se à questão do julgamento. A Lei de
Moisés pede, apenas, a fidelidade aos compromissos selados com um juramento
(cf. Lv 19,12; Nm 20,3; Dt 23,22-24); mas, na perspectiva de Jesus, a
necessidade de jurar implica a existência de um clima de desconfiança que é
incompatível com o “Reino”. Para os que estão inseridos na dinâmica do “Reino”,
deve haver um tal clima de sinceridade e confiança que os simples “sim” e “não”
bastam. Qualquer fórmula de juramento é supérflua e sinal de corrupção da
dinâmica do “Reino”.
A questão essencial é, portanto, esta: para quem quer viver na
dinâmica do “Reino”, não chega cumprir estrita e casuisticamente as regras da
Lei; mas é preciso uma atitude interior inteiramente nova, um compromisso
verdadeiro com Deus que envolva o homem todo e lhe transforme o coração.
ATUALIZAÇÃO
• Os discípulos de Jesus são convidados a viver na dinâmica do
“Reino”, isto é, a acolher com alegria e entusiasmo o projeto de salvação que
Deus quis oferecer aos homens e a percorrer, sem desfalecer, num espírito de
total adesão, o caminho que conduz à vida plena.
• Cumprir um conjunto de regras externas não assegura, automaticamente,
a salvação, nem garante o acesso à vida eterna; mas, o acesso à vida em
plenitude passa por uma adesão total (com a mente, com o coração, com a vida)
às propostas de Deus. Os nossos comportamentos externos têm de resultar, não do
medo ou do calculismo, mas de uma verdadeira atitude interior de adesão a Deus
e às suas propostas. É isso que se passa na minha vida? Os “mandamentos” são,
para mim, princípios sagrados que eu tenho de cumprir, mecanicamente, sob pena
de receber castigos (o maior dos quais será o “inferno”), ou são indicações que
me ajudam a potenciar a minha relação com Deus e a não me desviar do caminho
que conduz à vida? O cumprimento das leis (de Deus ou da Igreja) é, para mim,
uma obrigação que resulta do medo, ou o resultado lógico da opção que eu fiz
por Deus e pelo “Reino”?
• “Não matar”, é, segundo Jesus, evitar tudo aquilo que cause dano ao
meu irmão. Tenho consciência de que posso “matar” com certas atitudes de
egoísmo, de prepotência, de autoritarismo, de injustiça, de indiferença, de
intolerância, de calúnia e má língua que magoam o outro, que destroem a sua
dignidade, o seu bem estar, as suas relações, a sua paz? Tenho consciência que
brincar com a dignidade do meu irmão, ofendê-lo, inventar caminhos tortuosos
para o desacreditar ou desmoralizar é um crime contra o irmão? Tenho
consciência que ignorar o sofrimento de alguém, ficar indiferente a quem
necessita de um gesto de bondade, de misericórdia, de reconciliação, é
assassinar a vida?
• Não podemos deixar, nunca, que as leis (mesmo que sejam leis muito
“sagradas”) se transformem num absoluto ou que contribuam para escravizar o
homem. As leis, os “mandamentos”, devem ser apenas “sinais” indicadores desse
caminho que conduz à vida plena; mas o que é verdadeiramente importante, é o
homem que caminha na história, com os seus defeitos e fracassos, em direção à
felicidade e à vida definitiva.
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