A liturgia do sétimo Domingo do
Tempo Comum convida-nos à santidade, à perfeição. Sugere que o “caminho
cristão” é um caminho nunca acabado, que exige de cada homem ou mulher, em cada
dia, um compromisso sério e radical (feito de gestos concretos de amor e de
partilha) com a dinâmica do “Reino”. Somos, assim, convidados a percorrer o
nosso caminho de olhos postos nesse Deus santo que nos espera no final da
viagem.
A primeira leitura que nos é
proposta apresenta um apelo veemente à santidade: viver na comunhão com
o Deus santo, exige o ser santo. Na perspectiva do autor do nosso texto, a
santidade passa também pelo amor ao próximo.
No Evangelho, Jesus continua a
propor aos discípulos, de forma muito concreta, a sua Lei da santidade
(no contexto do “sermão da montanha”). Hoje, Ele pede aos seus que aceitem
inverter a lógica da violência e do ódio, pois esse “caminho” só gera egoísmo,
sofrimento e morte; e pede-lhes, também, o amor que não marginaliza nem
discrimina ninguém (nem mesmo os inimigos). É nesse caminho de santidade que se
constrói o “Reino”.
Na segunda leitura, Paulo convida
os cristãos de Corinto – e os cristãos de todos os tempos e lugares – a serem o
lugar onde Deus reside e Se revela aos homens. Para que isso aconteça,
eles devem renunciar definitivamente à “sabedoria do mundo” e devem optar pela
“sabedoria de Deus” (que é dom da vida, amor gratuito e total).
LEITURA I – Lv 19, 1-2.17-18
O Livro do Levítico (assim
chamado porque trata de questões preferencialmente relacionadas com o culto,
que era incumbência dos sacerdotes, considerados membros da tribo de Levi)
apresenta-se como um discurso de Jahwéh, no qual este explica ao seu Povo o que
deve fazer para viver sempre em comunhão com Deus. Apresenta um conjunto de
leis, de preceitos, de ritos, quase sempre relacionados com o culto, que o Povo
deve praticar, para viver como Povo de Deus. Fundamentalmente, o Levítico
preocupa-se em instilar na consciência dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo
é a verdadeira vocação do homem.
O texto que nos é proposto
pertence à quarta parte do Livro do Levítico (cf. Lv 17-26), conhecida como
“lei da santidade”. O nome provém do refrão insistentemente repetido: “sede
santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2; 20,7; 21,8; 22,16...).
Na teologia de Israel, Jahwéh é o
Deus “santo”, quer dizer, transcendente, incomparável, inefável, inatingível,
perfeito. Este Deus santo elegeu Israel, chamou-o, distinguiu-o entre todos os
povos da terra, fez aliança com Ele. Introduzido na comunhão com Deus, Israel
participa da santidade de Deus. É, portanto, um Povo à parte, separado dos
outros, cuja vocação consiste na comunhão com o Deus santo.
Esta “eleição” conduz,
necessariamente, à exigência de santidade: o Povo tem de viver de acordo com
determinadas regras para manter esta comunhão de vida com Deus. Daí que o
Levítico apresente as leis que devem orientar a vida do Povo, a fim de que ele
possa manter-se na órbita do Deus santo e testemunhar a santidade de Deus no
mundo.
Neste “código da santidade”,
encontramos os temas mais diversos. Uma parte significativa das leis aqui
propostas dizem respeito à vida cultual (cf. Lv 17-18; 21-22); mas outras dizem
respeito à vida social (cf. Lv 19).
O nosso texto começa com o refrão
posto na boca de Deus: “sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo” (vers.
2). A comunhão com o Deus santo exige que o Povo cultive, por sua vez, a
santidade. Ora, ser santo significa o quê?
Na “lei da santidade”, temos
disposições que dizem respeito às mais variadas dimensões da vida; mas neste
caso, em concreto, liga-se a questão da santidade com o comportamento “justo”
para com os irmãos, membros da comunidade do Povo de Deus. Os membros do Povo
santo são convidados a arrancar as raízes do mal que crescem no íntimo do
homem, de forma a que nos seus corações não haja ódio, nem rancor contra o
irmão (vers. 17-18).
A expressão final “amarás o teu
próximo como a ti mesmo” (vers. 18) resume o comportamento que a santidade
exige, quanto à vida fraterna. É, na opinião do rabbi Aqiba (que viveu entre 50
e 135 d.C.), “um princípio fundamental da Lei”. Jesus retomará esta afirmação
(combinada com a de Dt 6,5) para exprimir o essencial da Lei de Moisés (cf. Mt
22,37-39).
ATUALIZAÇÃO
• “Sede santos porque Eu, o vosso
Deus, sou santo”. Porque é que o convite à santidade soa como algo de estranho
para os homens de hoje? Porque uma certa mentalidade contemporânea vê os santos
como extra-terrestres, seres estranhos que pairam um pouco acima das nuvens sem
se misturar com os outros seus irmãos e que passam ao lado dos prazeres da
vida, ocupados em conquistar o céu a golpes de renúncia, de sacrifício e de
longos trabalhos ascéticos… No entanto, a santidade não é uma anormalidade, mas
uma exigência da comunhão com Deus. É o “estado normal” de quem se identifica
com Cristo, assume a sua filiação divina e pretende caminhar ao encontro da
vida plena, do Homem Novo. A santidade é algo que está no meu horizonte diário
e que eu procuro construir, minuto a minuto, sem dramas nem exaltações, com
simplicidade e naturalidade, na fidelidade aos meus compromissos?
• Como o nosso texto deixa claro,
ser santo não significa viver de olhos voltados para Deus esquecendo os homens;
mas a santidade implica um real compromisso com o mundo. Passa pela construção
de uma vida de verdadeira relação com os irmãos; e isso implica o banimento de
qualquer tipo de agressividade, de vingança, de rancor; implica uma preocupação
real com a felicidade e a realização do outro (“corrigirás o teu próximo”);
implica amar o outro como a si mesmo. Tenho consciência de que não posso ser
santo se o amor não se derramar dos meus gestos e das minhas palavras? Tenho
consciência de que não posso ser santo se vivo fechado em mim mesmo, na
indiferença para com os meus irmãos (ainda que reze muito)?
• Para que a santidade não seja
uma miragem, temos de ter o cuidado de viver num contínuo processo de
conversão, que elimine do nosso coração as raízes do mal, responsáveis pelo
egoísmo, pelo ódio, pela injustiça, pela exploração.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 102 (103)
Refrão: O Senhor é clemente e
cheio de compaixão.
Ou: Senhor, sois um Deus clemente
e compassivo.
Bendiz, ó minha alma, o Senhor
e todo o meu ser bendiga o seu
nome santo.
Bendiz, ó minha alma, o Senhor
e não esqueças nenhum dos seus
benefícios.
Ele perdoa todos os teus pecados
e cura as tuas enfermidades;
salva da morte a tua vida
e coroa-te de graça e
misericórdia.
O Senhor é clemente e compassivo,
paciente e cheio de bondade;
não nos tratou segundo os nossos
pecados,
nem nos castigou segundo as
nossas culpas.
Como Oriente dista do Ocidente,
assim Ele afasta de nós os nossos
pecados;
como um pai se compadece dos seus
filhos,
assim o Senhor Se compadece dos
que O temem.
LEITURA II – 1 Cor 3, 16-23
Continuamos no contexto da
comunidade cristã de Corinto. Depois de apresentar a “sabedoria de Deus”,
revelada em Jesus Cristo (sobretudo através da “loucura da cruz”) e oferecida
aos homens (cf. 1 Cor 1,18-2,16), Paulo constata que os coríntios ainda não
acolheram essa sabedoria: mantêm-se na dimensão do homem carnal (isto é, do
homem fraco, limitado, pecador, escravo das suas paixões e apetites), imaturos
na fé; cultivam as divisões e os conflitos, em flagrante contradição com o que
Jesus lhes ensinou; correm atrás de mestres humanos como se eles tivessem a
chave da felicidade e da realização plena, esquecendo que, por detrás de Paulo
ou de Apolo, está Deus (cf. 1 Cor 3,1-15). Ao viverem, ainda, de acordo com a
“sabedoria do mundo”, os coríntios estão a ser infiéis à sua vocação: não dão
testemunho de Deus e não o tornam presente no mundo.
É por isso que Paulo pergunta:
“Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” O
Templo de Jerusalém é, no contexto do Antigo Testamento, a residência de Deus,
o lugar por excelência da presença de Deus no meio do seu Povo. É aí que Israel
encontra o seu Deus e estabelece comunhão com Ele.
Mas agora, considera Paulo, é a
comunidade cristã que é o verdadeiro Templo da nova aliança, isto é, o lugar
onde Deus reside, onde ele se manifesta aos homens e onde ele oferece a
salvação. Ora, ser Templo de Deus (lugar onde Deus reside no mundo e onde os
homens encontram Deus) será compatível com uma existência onde a preocupação
fundamental é procurar a “sabedoria do mundo”? A comunidade de Corinto pode ser
Templo de Deus onde reside o Espírito e viver no conflito, na divisão, no ciúme,
no confronto?
Na segunda parte deste texto
(vers. 18-23), Paulo exorta os coríntios a deixarem, definitivamente, a
“sabedoria do mundo” e a pautarem a sua existência pela “sabedoria de Deus”
(que é amor até ao extremo, que é dom da vida, que é cruz). E Paulo volta a
recordar: a “sabedoria de Deus” parece ser loucura aos olhos do mundo; mas é
nessa “loucura” que reside o segredo da vida em plenitude.
Atenção: estas afirmações de
Paulo não significam que ele seja adversário de todos os valores humanos, ou que
ele imponha a renúncia à ciência e ao conhecimento; significa que, para Paulo,
o verdadeiro segredo da felicidade e da realização do homem não está na
ciência, na técnica, na elegância dos discursos, na definição de um esquema
filosófico que explique coerentemente a vida do homem; mas está em Jesus que,
ao longo de toda a sua vida e, de forma privilegiada na cruz, nos mostrou que
só o amor, a doação, a entrega, o serviço, geram vida plena e fazem nascer o
Homem Novo.
A última frase do nosso texto é
muito rica: “tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (vers.
23). Deve ser compreendida em função de 1 Cor 1,12: “cada um de vós diz: ‘eu
sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas’”… “Não é assim”, esclarece Paulo.
“Vós não pertenceis a estes pregadores; eles é que vos pertencem a vós, pois
são vossos servidores. Eles estão ao vosso serviço para que vós descubrais
Cristo e a ‘loucura da cruz’ e, para que por Cristo, o mediador da salvação,
chegueis a Deus”.
ATUALIZAÇÃO
• Os cristãos são Templo de Deus,
onde reside o Espírito. Isso quer dizer, em concreto, que, animados pelo
Espírito, eles têm de ser o sinal vivo de Deus e as testemunhas da sua salvação
diante dos homens do nosso tempo. O testemunho que damos, pessoalmente, fala de
um Deus cheio de amor e de misericórdia, que tem um projeto de salvação e
libertação para oferecer – sobretudo aos pobres e marginalizados, aqueles que
mais necessitam de salvação? No nosso ambiente familiar, no nosso espaço de
trabalho, no nosso círculo de amigos, somos o rosto acolhedor e alegre de Deus,
as mãos fraternas de Deus, o coração bondoso e terno de Deus?
• A nossa comunidade paroquial ou
religiosa é uma comunidade fraterna, solidária, e que dá testemunho da “loucura
da cruz” com gestos concretos de amor, de partilha, de doação, de serviço, ou é
uma comunidade fragmentada, dividida, cheia de contradições, onde cada membro
puxa para o seu lado, ao sabor dos interesses pessoais?
• O que é que preside à minha
vida: a “sabedoria de Deus” que é amor e dom da vida, ou a “sabedoria do
mundo”, que é luta sem regras pelo poder, pela influência, pelo reconhecimento
social, pelo bem estar econômico, pelos bens perecíveis e secundários?
ALELUIA – 1 Jo 2, 5
Aleluia. Aleluia.
Quem observa a palavra de Cristo,
nesse o amor de Deus é perfeito.
EVANGELHO – Mt 5, 38-48
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 38“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’
39Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!
40Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!
41Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele!
42Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado.
43Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu iolnimigo!’
44Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! 45Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos.
46Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa?
47E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?
48Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”
39Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!
40Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!
41Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele!
42Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado.
43Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu iolnimigo!’
44Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! 45Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos.
46Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa?
47E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?
48Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”
Continuamos com o “discurso da
montanha” e com a apresentação da “nova Lei” que deve conduzir a caminhada
cristã.
Vimos, no passado domingo, como
Mateus estava preocupado em definir, para os cristãos vindos do judaísmo, a
relação entre Cristo e a Lei de Moisés. Os cristãos continuam obrigados a
cumprir a Lei de Moisés? Jesus não aboliu a Lei antiga? O que há de
verdadeiramente novo na mensagem de Jesus?
A perspectiva de Mateus é que
Jesus não veio abolir a Lei, mas levá-la à plenitude. No entanto, considera
Mateus, a Lei tornou-se um conjunto de prescrições que são cumpridas
mecanicamente, dentro de uma lógica casuística que, tantas vezes, não tem nada
a ver com o coração e com a vida. É preciso que a Lei deixe de ser um conjunto
de preceitos externos a cumprir para conquistar a salvação, para se tornar
expressão de um verdadeiro compromisso com Deus e com o “Reino”.
Vimos como Mateus apresentava um
conjunto de exemplos, destinados a tornar mais clara e concreta esta
perspectiva. Dos seis exemplos apresentados por Mateus, quatro apareceram no
Evangelho do passado domingo; para hoje, ficam os dois últimos exemplos dessa
lista.
O primeiro exemplo que o
Evangelho de hoje nos propõe (o quinto da lista) refere-se à chamada “lei de
talião” (vers. 38-42). A “lei de talião”, consagrada na conhecida fórmula “olho
por olho, dente por dente”, aparece em vários textos vétero-testamentários (cf.
Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21). Em si, é uma lei razoável, destinada a evitar as
vinganças excessivas, brutais, indiscriminadas…
Jesus, no entanto, não se dá por
satisfeito com uma lei que apenas limita os excessos na vingança, e propõe uma
lógica inteiramente nova. Na sua perspectiva, não chega manter a vingança
dentro de fronteiras razoáveis, mas é preciso acabar com a espiral de violência
de uma vez por todas; para isso, Jesus propõe que os membros do “Reino” sejam
capazes de interromper o curso da violência, assumindo uma atitude pacífica, de
não resistência, de não resposta às provocações.
Para tornar mais clara a sua
proposta, Jesus apresenta quatro casos concretos. No primeiro (vers. 39), pede
que não se responda com a mesma moeda àquele que nos agride fisicamente, mas
que se desarme o violento oferecendo a outra face; no segundo (vers. 40),
recomenda que, diante de uma exigência exorbitante (entrega da túnica, isto é,
da peça de roupa mais fundamental, que não era tirada senão àquele que era vendido
como escravo – cf. Gn 37,23), se responda entregando ainda mais (a entrega da
capa, vestimenta que servia para proteger dos rigores da noite e que, por isso,
a própria Lei não admitia que fosse retida, senão por um dia – cf. Ex 22,25; Dt
24,12-13); no terceiro (vers. 41), exige que se acompanhe por duas milhas
aquele que quer forçar-nos a acompanhá-lo por uma (provavelmente, haverá aqui
uma referência a uma prática frequente das patrulhas romanas que,
desorientadas, requisitavam os habitantes da Palestina para que as guiassem
durante algum tempo); no quarto (vers. 42), Jesus recomenda que não se ignore,
nem se deixe sem atender aquele que pede dinheiro emprestado… Este conjunto de
exemplos concretos aponta numa única direção: os membros da comunidade de Jesus
devem manifestar a todos um amor sem medida, que vai muito além daquilo que é
humanamente exigido. Dessa forma, eles inauguram uma nova era de relações entre
os homens.
O segundo exemplo que o Evangelho
de hoje nos apresenta (o sexto da lista) refere-se ao amor aos inimigos (vers.
43-48). Jesus afirma que a Lei antiga recomendava: “ama o teu próximo e odeia o
teu inimigo”… No entanto, embora haja na Lei antiga uma referência ao amor ao
próximo (cf. Lv 19,18), não se refere, em lado nenhum, o ódio aos inimigos (o
verbo “odiar” pode significar, nas línguas semitas, simplesmente “não amar”; no
entanto, certos grupos contemporâneos de Jesus defendiam o ódio aos inimigos: a
seita essênia de Qûmran, por exemplo, pregava o ódio contra os “filhos das
trevas” – isto é, contra aqueles que não pertenciam à comunidade essênia e que
estavam, portanto, entregues à vingança divina).
Em qualquer caso, o amor ao
próximo recomendado pela Lei havia adquirido, na época de Jesus, um sentido
muito restrito: era o amor a esse próximo mais chegado que, quando muito,
chegava a incluir todos os israelitas mas que não atingia, em nenhum caso, os
não membros do Povo eleito. Quando muito, o amor ao próximo atingia, na visão
judaica, o compatriota, aquele que pertencia à comunidade do Povo de Deus.
O pedido de Jesus apresenta,
portanto, uma verdadeira novidade e exige uma autêntica revolução das
mentalidades. Para Jesus, não chega amar aquele que está próximo, aquele a quem
me sinto ligado por laços étnicos, sociais, familiares ou religiosos; mas o
amor deve atingir todos, sem exceção, inclusive os inimigos. Fica, assim,
abolida qualquer discriminação; são abatidas todas as barreiras que separam os
homens.
Qual o motivo desta exigência? É
porque Deus também não faz discriminação no seu amor. Ele é o Pai que não
distingue entre amigos e inimigos, que faz brilhar o sol e envia a chuva sobre
bons e maus, que oferece o seu amor a todos, inclusive aos indignos (vers. 45).
O amor universal de Deus é a razão do amor que os membros do “Reino” devem
oferecer a todos os homens e mulheres que Deus coloca no seu caminho. “Ser
filho de Deus” significa dar testemunho do amor de Deus e parecer-se com Deus
no modo de agir.
A expressão final (“sede
perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”) parafraseia o refrão da “lei da
santidade” que encontramos na primeira leitura (“sede santos porque Eu, o vosso
Deus, sou santo”) e resume, de forma magnífica, o ensinamento que Mateus
pretende apresentar à sua comunidade com estes seis exemplos (os quatro do passado
domingo e os dois de hoje): viver na dinâmica do “Reino” exige a superação de
uma perspectiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus,
deixando que a vida de Deus, que enche o coração do crente, se manifeste na
vida do dia-a-dia, inclusive nas relações fraternas.
ATUALIZAÇÃO
• Este Evangelho recorda-me que,
ao aceitar o desafio de viver em comunhão com Deus, eu sou chamado a dar
testemunho da vida de Deus diante de todos os meus irmãos e a ser um sinal vivo
de Deus, do seu amor, da sua perfeição, da sua santidade, no meio do mundo.
Aceito esse desafio e estou disposto a corresponder-lhe?
• A leitura que nos foi proposta
coloca, mais uma vez, como cenário de fundo, as exigências do compromisso com o
“Reino”. Sugere que viver na dinâmica do “Reino” implica, não o cumprimento de
ritos ou de leis, mas uma atitude nova, revolucionária, que resulta de um
compromisso interior com Deus verdadeiramente assumido, e manifestado em
atitudes concretas. Exige a superação de uma religião feita de leis, de
códigos, de ritos, de gestos externos e o viver em comunhão com Deus, de tal
forma que a vida de Deus encha o coração do crente e transborde em gestos de
amor para com os irmãos. O que é que define a minha atitude religiosa: o
cumprimento dos ritos, a letra da lei, ou a comunhão com Deus que enche o meu
coração de vida nova e que depois se expressa em atitudes de amor radical para
com os irmãos?
• Jesus pede, aos que aceitaram
embarcar na aventura do “Reino”, a superação de uma lógica de vingança, de
responder na mesma moeda, e o assumir uma atitude pacífica de não resposta às
provocações, que inverta a espiral de violência e que inaugure um novo espírito
nas relações entre os homens. Não é, no entanto, esta a lógica do mundo, mesmo
do mundo “cristão”: em nome do direito de legítima defesa ou do direito de
resposta, as nações em geral e as pessoas em particular recusam enveredar por
uma lógica de paz e respondem ao mal com um mal ainda maior. Como é que eu vejo
a questão da violência, do terrorismo, da guerra? Tenho consciência de que a
lógica da violência, da vingança, não tem nada a ver com os métodos do “Reino”?
O que é que é mais questionante, interpelador e transformador: a violência das
armas, ou a violência desarmada do amor?
• Jesus pede, também, aos
participantes do “Reino” o amor a todos, inclusive aos inimigos, subvertendo
completamente a lógica do mundo. Como é que eu me situo face a isto? A minha
atitude é a de quem não exclui nem discrimina ninguém, mesmo aqueles de quem
não gosto, mesmo aqueles contra quem tenho razões de queixa, mesmo aqueles que
não compreendo, mesmo aqueles que assumem atitudes opostas a tudo em que eu
acredito?
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