Neste
quadro do século XVIII, Jesus é representado sobre “um charco de
sangue”, com as “costas totalmente descarnadas”. Uma cena, sem dúvida,
“de grande intensidade”. Mas por que retratar assim, com tanta crueza,
os sofrimentos do Salvador?
Neste mês de julho, dedicado ao Preciosíssimo Sangue de Cristo, a pintura acima, intitulada
A Flagelação e confeccionada em 1729 pelo espanhol Nicolau Enríquez, pode ser para nós uma excelente fonte de meditação.
Muito antes
das cenas sangrentas da Paixão segundo Mel Gibson
— que tanto escandalizaram os críticos da "sétima arte" —, os artistas
antigos já haviam cuidado de representar com dramaticidade os
sofrimentos de Cristo, tudo a fim de impressionar seus espectadores e
provocar-lhes a compaixão pela dor divina. O trabalho desses homens,
portanto, não era simplesmente a "arte pela arte"; o que faziam tinha um
sentido duplamente transcendente, pois superava tanto o ofício que eles
dominavam quanto a sua própria existência neste mundo: a intenção de suas obras era revelar Deus e fazer despertar nas pessoas o sobrenatural.
Uma breve descrição deste quadro,
fornecida pelo site Google Arts & Culture, pode nos ajudar a reparar em seus detalhes:
Ao centro jaz no solo a figura de Cristo que, humilhado sobre um charco
de sangue, mostra suas costas totalmente descarnadas por causa dos
numerosos golpes que recebe de uma multidão enfurecida. [...] Contrasta
nesta tela a óleo a grande quantidade de personagens em movimento com
rostos desfigurados pela ira e gestos violentíssimos, os quais, armados
de facas, cilícios de pontas metálicas e correntes, açoitam a Cristo sem
piedade. Jesus recebe este castigo com resignação e apenas atina a
perguntar, através de uma vírgula que brota de sua boca:
Quae utilitas in sanguine mea? ("Qual é a utilidade de meu sangue?"), chamando assim a meditar sobre o sentido da redenção.
Jesus está, portanto, sobre "um charco de sangue", com as "costas
totalmente descarnadas", cercado de "facas, cilícios de pontas metálicas
e correntes". Trata-se, sem dúvida, de uma cena "de grande intensidade e
força emotiva". E qualquer semelhança com as cenas mais perturbadoras
de "A Paixão de Cristo" não é mera coincidência.
Mas o que levam em conta esses artistas, afinal, para retratar com tanta crueza e morbidez as estações da
Via Crucis?
A resposta deve ser encontrada, em primeiríssimo lugar, nas Sagradas
Escrituras, especialmente nas predições do Antigo Testamento sobre o
Cristo. Na liturgia da Sexta-feira Santa, a Igreja inteira canta, por
exemplo, o Salmo 21, do qual é extraída a seguinte imagem:
Quanto a mim, eu sou um verme e não um homem;
sou o opróbrio e o desprezo das nações.
Riem de mim todos aqueles que me veem, torcem os lábios e sacodem a cabeça. (v. 7-8)
A coluna vertebral de Cristo exposta no quadro faz-nos lembrar
imediatamente de outros versículos deste mesmo Salmo, em que o Autor
Sagrado diz: "Meus ossos estão todos deslocados" (v. 15); e ainda: "
Eu posso contar todos os meus ossos" (v. 18).
Outra leitura proclamada na tarde da Sexta-feira da Paixão é a do profeta Isaías, também repleta de imagens fortíssimas:
Tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano [...]. Não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse. Era desprezado como o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele, tapávamos o rosto; tão desprezível era, não fazíamos caso dele. A verdade é que ele tomava sobre si nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, nossas dores; e nós pensávamos fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado! (Is 52, 14; 53, 2-4)
Esses versículos, somados aos relatos históricos dos Evangelhos — que
narram a prisão, flagelação, coroação de espinhos e crucificação de
Nosso Senhor —, são mais do que suficientes para nos colocar diante dos
olhos um verdadeiro quadro de "horrores".
Se nos fosse possível "torcer" as Escrituras, por assim dizer,
teríamos o Preciosíssimo Sangue de Cristo escorrendo de suas páginas.
Ao longo da história da Igreja, no entanto, algumas pessoas também receberam, em continuidade com o "depósito da fé",
revelações privadas sobre a Paixão do Senhor. Esse quadro de Nicolau Enríquez, por exemplo, foi feito a partir da obra La mística Ciudad de Dios,
de Maria de Jesus de Ágreda. À parte a santidade de sua vida (Maria de
Ágreda é ainda venerável) ou a ortodoxia de seus escritos (que alguns
põem em questão), é impossível ler o que escreve essa monja sem se
comover:
Por ordem, de dois a dois, o açoitaram com tão inaudita ferocidade que, humanamente, não se poderia cogitar, se Lúcifer não tivesse dominado o ímpio coração daqueles seus agentes.
Os dois primeiros açoitaram o inocentíssimo Senhor com cordas muito retorcidas, duras e grossas, empregando neste sacrilégio toda a raiva de sua indignação, e a força de seus músculos. Estes primeiros açoites cobriram todo o corpo deificado de nosso Salvador de grandes manchas roxas e vergões. Ficou entumecido, desfigurado, com o preciosíssimo sangue à flor da pele.
Cansados estes algozes, entraram em cena os dois seguintes. Com correias duríssimas continuaram a flagelação que abriu as esquimoses e vergões feitos pelos primeiros. O sangue divino rebentou, molhou todo o sagrado corpo de Jesus, salpicou as vestes dos sacrílegos esbirros e escorreu até o solo.
Retiraram-se estes verdugos para dar lugar aos terceiros que se serviram de novos flagelos de nervos de animais, quase tão duros como vime seco. Açoitaram o Senhor com maior crueldade, pois feriam nas próprias feridas que os primeiros tinham feito, e porque eram ocultamente instigados pelos demônios enfurecidos com a paciência de Cristo.
Estando rasgadas as veias do sagrado corpo, e todo ele uma só chaga, não encontraram os terceiros verdugos nenhuma parte sã para abrir outras.
Persistindo nos desumanos golpes, rasgaram a imaculada e virginal carne de Cristo nosso Redentor, caindo no solo muitos pedaços. Em muitos pontos das costas os ossos ficaram a descoberto, manchados pelo sangue, alguns na extensão de um palmo.
Para apagar totalmente aquela beleza que excedia a de todos os filhos dos homens (cf. Sl 44, 3), açoitaram-lhe o divino rosto, os pés e as mãos, sem deixar lugar por ferir, até onde puderam desafogar o furor e ódio que haviam concebido contra o inocentíssimo Cordeiro. O divino sangue correu pelo solo, acumulando-se em diversas poças.
Os golpes que lhe deram nos pés, nas mãos e na divina face, foram extremamente dolorosos, por serem estas partes mais nervosas, sensíveis e delicadas. A venerável face ficou entumecida e chagada até cegar os olhos pelo sangue e pelo inchaço. Além de tudo isto, cobriram-na de cusparadas imundíssimas que lhe lançaram juntamente com os golpes, fartando-o de opróbrios.
O número exato dos açoites recebidos pelo Salvador foi cinco mil cento e quinze, desde a planta dos pés até a cabeça. O grande Senhor e autor de toda a criatura, impassível por sua natureza divina, na condição de nossa carne ficou, por nosso amor, transformado em homem de dores, conforme a profecia de Isaías (53, 3), bem capacitado na experiência de nossas enfermidades, o último dos homens, reputado pelo desprezo de todos. [1]
É interessante como essas minúcias coincidem com as revelações de mesma
natureza recebidas pela Beata Anna Catarina Emmerich — das quais Mel
Gibson lançou mão para filmar "A Paixão de Cristo". Ainda que não devam
necessariamente ser aceitas como de fé católica, o Catecismo esclarece,
com sabedoria, que "o sentir dos fiéis sabe discernir e guardar o que
nestas revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou dos seus
santos à Igreja" (§ 67). Artistas como Mel Gibson e como Nicolau
Enríquez, inspirados por esse "
sentire cum Ecclesia", souberam fazer muito bem, com as obras que produziram, um verdadeiro chamado à conversão e à penitência. Se
este não for um "apelo autêntico de Cristo" à sua Igreja, especialmente
nestes tempos tenebrosos que atravessamos, nenhum outro é.
Por que retratar com tanta crueza, então, a Paixão de nosso Salvador?
Em primeiro lugar, porque foi assim que tudo aconteceu. As Escrituras o
atestam e as palavras dos místicos o confirmam, não há por que duvidar.
Uma segunda razão precisa ser levada em conta, porém, e ela diz
respeito a nós. É conveniente contemplarmos Jesus assim, sobre "um
charco de sangue" e com as "costas totalmente descarnadas", para nos
lembrar a gravidade do nosso pecado. Sim, porque foram os nossos pecados
— os pecados de todos os homens, de todas as épocas —, os
meus pecados — as faltas que eu tenho cometido —, a causa de tanto sofrimento; a causa de o Sangue de Deus ter sido tão abundantemente derramado!
E, se é assim, se Cristo morreu de forma tão terrível — como Nicolau
Enríquez pintou ou como Mel Gibson dramatizou —, então os nossos pecados
têm uma dimensão que ainda não somos capazes de precisar adequadamente.
Se foi por causa de nossas blasfêmias, de nossas impurezas e de nossa
preguiça que morreu Jesus…
em que grande erro incorrem aqueles que tratam o pecado como uma trivialidade!
Se o preço de nossa libertação é o Sangue caríssimo de um Deus — de
dignidade infinita —, com que cuidado deveríamos evitar o pecado e com
que lágrimas de arrependimento não deveríamos chorar os que já
cometemos! Se as carnes de Cristo foram arrancadas para nos salvar, a
ponto de deixar expostos os seus ossos…!, com que cuidado não devemos
zelar por conservar a nossa alma em estado de graça! Sic nos amantem — canta um hino de Natal — quis non redamaret? A quem nos amou tanto assim, como não amar de volta?
Seja este, portanto, o nosso principal objetivo nesta vida:
corresponder ao amor apaixonado de Deus, que chega a fazer-se homem e
derramar o próprio
Sangue para ver-nos consigo, um dia, no Céu. Se até aqui temos
sido inconstantes na vida da graça, mornos em nossa conduta, relapsos
em nossos exames de consciência, é hora de reagirmos! Ouçamos enfim a
voz do Sangue mais eloquente que o de Abel (cf. Hb 12, 24), e clamemos por misericórdia:
Sangue de Jesus, manando abundante na flagelação,
salvai-nos!
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referência
- Soror Maria de Ágreda. Mística cidade de Deus (trad. brasileira de Irmã Edwiges Caleffi), t. 3, l. 6, c. 20, n. 1339-1340. 2. ed. Ponta Grossa, Mosteiro Portaceli, 2000, p. 353.
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