Christopher Hitchens, escritor ateu, autor de God Is Not Great (Deus não é grande), não foi o único a se perguntar, após ler algumas seleções do livro, se a "santa dos desamparados" era uma atéia encoberta. Inclusive devotos católicos tiveram dificuldades para entender como a
Madre Teresa, considerada um modelo da fé, podia ter sentido uma
sensação de abandono da parte de Deus. Enquanto alguns católicos viram
seu exemplo como de fidelidade digna de se destacar, outros se sentiram
perturbados ao ler frases como: "Não tenho fé". Uma mulher me perguntou: "Como posso rezar, quando ela não podia crer?"
Estas reações mostram quão
fácil é para os meios e o público se sentirem confundidos pelas
complexidades da vida espiritual e, também, quão confusa pode se tornar a
terminologia, inclusive para aqueles que têm o costume de rezar.
Há muito tempo os guias
espirituais cristãos usam termos específicos para se referirem a
diferentes experiências. Um pode experimentar secura sem depressão (por
exemplo, durante um retiro quando se intui que o período de secura na
oração é temporal). Pode-se estar na escuridão sem ser incrédulo (como
sucedeu com a Santa Teresa de Lisieux, que seguiu crendo apesar da
secura espiritual no final de seus dias). As experiências também se
podem encobrir. A escuridão pode levar à dúvida ocasional, como no caso
da Madre Teresa. E a depressão pode levar, tal como sabem inclusive
ateus e agnósticos, ao desespero.
Escuridão visível
Desde São Gregório de Nyssa, século quarto, a escuridão foi
um tema importante na espiritualidade cristã. Talvez a fonte mais
citada a esse respeito é São João da Cruz, um místico espanhol.
Ironicamente, é possível que seja também o mais mal citado, como se pode
ver pelas freqüentes referências à "noite negra do espírito". Seu poema original do século XVI se chama simplesmente Noite escura.
"Noite escura";
entretanto, é só uma maneira de descrever uma particular maneira de se
sentir afastado de Deus. Ao mesmo tempo em que São João escrevia, Santo
Inácio de Loyola escreveu sobre "desolação" em
seus Exercícios Espirituais. De modo que se pode, inclusive, perdoar
aos cristãos mais educados que se perguntam: estes dois santos falam de
dois fenômenos iguais, parecidos ou diferentes?
Para aumentar a confusão, quando um diretor espiritual usa "escuridão" outro pode usar "aridez" para descrever o mesmo fenômeno. "E, às vezes, os diretores também podem ser presumidos", diz Jane Ferdon, OP, que capacitou diretores espirituais na Califórnia durante 20 anos. "As pessoas podem dizer que estão na escuridão e nós, os diretores espirituais, assumimos que sabemos do que estão falando!"
Talvez a confusão surja não
só de um uso impreciso, variante das palavras, que se sobrepõem umas às
outras, mas também de não se dar conta que todos os que rezam em algum
momento se encontrarão em muitos destes estados.
Quais são estes estados? Como
afetam nossa relação com Deus? A quaresma é um bom momento para
refletir sobre estas categorias, não apenas como uma maneira de nos
conectarmos com nossa espiritualidade, mas também como um convite para
meditar sobre a própria expressão de solidão de Cristo na cruz: "Deus meu, por que me abandonaste?"
Em seguida fazemos uma breve
revisão dos diversos estados espirituais, começando por algumas
definições simples, seguidas de comentários de mestres espirituais do
passado e do presente.
Definições e descrições
1. A escuridão é
um sentimento da ausência de Deus depois de ter desenvolvido uma
relação pessoal com Ele. Para S. João da Cruz existem dois tipos de "noites escuras". A "noite escura dos sentidos" é uma experiência de nossas próprias limitações e a ausência dos laços que implicam o consolo proporcionado pela oração. É "uma influência de Deus na alma, que a purga de suas ignorâncias e imperfeições habituais", escreveu S. João. Em uma etapa posterior, alguns experimentam "a noite escura do espírito", que é um desafio ainda maior para a fé. Porém, ambos são passos em direção a uma união mais profunda com Deus.
Janet Ruffin, RSM, professora
de espiritualidade e direcionamento espiritual de Fordham University,
descreve a noite escura de São João como uma "experiência mística de
Deus que abruma nossa maneira normal de apreender a Deus, que leva não
só a um aumento da fé, da esperança e do amor, como que finalmente a um
lugar de luz". Ela crê que quase todos os que rezam seriamente
encontrarão a noite escura dos sentidos, mas relativamente são poucos os
que viverão a noite escura da alma.
Uma experiência de escuridão
pode ser uma porta para encontrar Deus no vazio e uma entrada para a via
negativa. Ruth Burrows, monja carmelita, escreve em seu livro Essence of Prayer(Essência da oração) que Deus "quer
que confiemos nele o suficiente para que vivamos com ele sem temor,
totalmente indefesos em sua presença. Podemos realmente dizer que os
ensinamentos de S. João da Cruz têm como único fim nos levar rumo à sua
pobreza interior".
Uma pessoa na escuridão se
sente distante de Deus. Entretanto, com paciência (se é que podemos
identificar qual "noite escura" se está vivendo ou não) se pode
abandonar a necessidade de sentir a presença de Deus constantemente e
gradualmente circular pela escuridão para descobrir uma maior intimidade
com Deus.
2. A aridez é um tempo limitado em que se sente vazio na oração. "A aridez é mais temporal que a escuridão", diz William A. Barry, S.J., autor de God and You: Prayer as aPersonal Relationship(Deus e você: a oração como uma relação pessoal). Qualquer um que reze de vez em quando sentirá aridez na oração, quando parece que não sucedeu nada. "Não existem muitas possibilidades de consolo sensato", disse o Pe. Barry em uma entrevista.
Estas partes naturais da vida
espiritual podem incrementar nossa apreciação de momentos mais
enriquecedores. Nunca se sabe que tipo de mudanças interiores ocorre
durante tempos de "seca", e estar com o Deus vivente em oração,
sempre terá a capacidade de produzir mudanças. Sendo noviço jesuíta, em
uma oportunidade confessei a meu diretor espiritual que não acontecia
nada durante minhas orações. Parecia uma perda de tempo. "Estar na presença de Deus é uma perda de tempo?", me perguntou.
Inclusive amizades íntimas às
vezes têm períodos de tédio ou silêncio, assim também nossa relação com
Deus pode atravessar por épocas de aridez. Porém, estar com os amigos
nesses momentos é necessário se quiser que a amizade se mantenha e seja
mais íntima.
3. Adesolação é sentir a ausência de Deus unida a uma sensação de desesperança. S. Inácio de Loyola descreve-a assim: "escuridão da alma, turbação nela, moção rumo às coisas baixas e terrenas, inquietude de várias agitações e tentações". "É se sentir desalentado e triste". “Com freqüência se confunde desolação com simplesmente se sentir mal"; diz Barry. "Porém é mais certo dizer que é uma sensação de estar separado de Deus".
Margaret Silf, colunista de America e autora de Inner Compass: An Invitation to Ignatian Spirituality, (Compasso interior: um convite à espiritualidade inaciana), afirma que a desolação implica em isolamento. "Os que estão desolados estão de costas à luz da presença de Deus", me disse, "e mais concentrados nas sombras". O Padre Barry concorda. "Na desolação há mais ênfase na pessoa que em Deus", diz. "Finalmente, isto leva ao desespero".
A desolação é distinta da noite escura de São João. Na desolação, escreve Santo Inácio, o indivíduo é levado para uma "falta de fé" e é deixado "sem esperança nem amor". Na noite escura ocorre o contrário, à medida que um se muda para o completo abandono de Deus. "Para o que experimenta isto, pode ser mais fácil vê-lo em retrospectiva", diz Jane Ruffing. "Porém, desde o ponto de vista inaciano, a noite escura é em realidade um consolo".
A desolação que descreve
Inácio pode parecer muito distante da vida do cristão médio. Contudo, é
um estado comum e doloroso experimentado por muitas pessoas, acompanhado
por sentimentos de "corrosiva ansiedade", como diz Inácio. Ele
aconselha que em tempos assim se deve, entre outras cosas, redobrar os
esforços na oração, e lembrar dos momentos em que Deus parecia estar
mais presente ou se lembrar que isto finalmente passará. Também nos
recorda que todos os frutos da oração são em realidade presentes de
Deus, que não podemos controlar.
4. A dúvida é uma indecisão intelectual sobre a existência de Deus. Muitos crentes enfrentam esta dúvida em algum momento de suas vidas. "A maioria das pessoas se sentem aliviadas de poder falar sobre a dúvida no direcionamento espiritual", diz Ruffing. "Porém
ninguém chega à fé adulta sem ter tido dúvida. E com freqüência as
pessoas têm dúvidas e logo se mudam para uma fé que é mais complexa,
paradoxal e finalmente, mais adulta".
A dúvida é uma experiência
humana por excelência, compartilhada por quase todos os cristãos desde
São Tomás Apóstolo. Recentemente, na obra de teatro ganhadora do Prêmio
Pulitzer "Doubt" (Dúvida), do autor John Patrick
Shanley, um sacerdote (que enfrenta suas próprias dúvidas e as dúvidas
de seus paroquianos sobre sua origem) aponta esta universalidade em uma
homilia: "Quando está perdido, não está sozinho".
5. A incredulidade é
um estado intelectual de não aceitar a existência de Deus. Alguns
comentaristas concluem que como a Madre Teresa sentiu a escuridão, ela
não cria em Deus. Uma vez, em suas cartas, escreveu sem rodeios: "Não tenho fé". Porém, como explica o Pe. Barry, "ela continuava rezando e escrevia cartas a Deus".
Às vezes a incredulidade é
uma maneira de descartar velhas imagens de Deus que já não funcionam
para um crente adulto. Margaret Silo reflete sobre sua própria
experiência: "Passei por etapas em que todos os antigos fundamentos
caíram e senti que já não podia seguir crendo. O que fazer então?
Reforçar este velho sistema ou deixar que as coisas aconteçam e ver o
que sucede? Para mim, isto finalmente me permitiu irromper para um nível
mais profundo de fé, que chamaria confiança". A incredulidade é um
grande desafio na vida espiritual. Se o caminho termina neste ponto, há
pouco espaço para Deus. A chave está em continuar buscando, inclusive
em meio da incredulidade.
6. A depressão é uma forma profunda de tristeza. Na comunidade médica e psicológica tem uma definição mais técnica. "É uma categoria clínica que com freqüência pode ser tratada medicamente", diz Barry, que também é psicólogo. "Não queremos espiritualizar problemas que são principalmente psicológicos"; diz Jane Ferdon. "Porém, hoje em dia", agrega, "também podemos psicologizar temas espirituais. Desta forma, é muito importante descobrir as verdadeiras razões da depressão".
Em "The Dark Night and Depression" (A noite escura e a depressão), um ensaio sobre o livroCarmelite Prayer (Oração carmelita),
de Keith J. Egan, Kevin Culligan, sacerdote carmelita, escreve que na
noite escura há uma aguda consciência de nossa própria pobreza.
Entretanto, nesta escuridão não é freqüente "fazer fortes declarações de culpabilidade, de ódio em direção a si próprio, de inutilidade e idéias suicidas", como ocorre durante períodos de depressão clínica.
Assim se pode estar na escuridão, mas não deprimido. E vice-versa? O Padre Barry responde: "é raro que a pessoa que está clinicamente deprimida encontre consolo na oração".
Therese Borchard, que escreve
um blog sobre a depressão, "Beyond blue" para a página de
espiritualidade Beliefnet, sofreu depressões. Ela entende desde o ponto
de vista teórico e pessoal, e concorda com Barry. "Quando se está deprimido se está muito transtornado com Deus", me disse. "Algumas
pessoas podem se aproximar de Deus enquanto lutam para expressar sua
ira e também se aferram a Deus como última esperança. Outras podem se
distanciar e se afastarem de Deus. Em geral, contudo, a depressão
geralmente leva à escuridão e aridez da oração." A depressão clínica tem que ser tratada por profissionais médicos como também deve ter um espaço de tratamento espiritual.
Como os diretores e conselheiros espirituais distinguem entre escuridão e depressão? "Quando estou com pessoas deprimidas, me sinto engolida por sua depressão", diz Jane Ruffing. "É
o oposto com pessoas que estão transitando pela noite escura. Em uma
oportunidade acompanhei uma de nossas irmãs, que estava morrendo, em uma
experiência deste tipo, em sua presença senti a luminosidade de Deus -
apesar dela não ter podido senti-la em absoluto".
A pena é diferente da depressão. Como diz Barry: "A pena por uma realidade triste de sua vida pode ser um sinal que está em contato com Deus". Jane Ferdon diz: "Estas são algumas das pessoas que estão mais vivas, já que sentem profundamente".
7. A desesperança é uma sensação que tudo está e continuará sem esperança. O monge trapista, Thomas Merton, definiu a desesperança em seu livro New Seeds of Contemplation (Novas sementes de contemplação) como "o
último estado de desenvolvimento de um orgulho tão grande e arrogante
que prefere aceitar a miséria total da condenação eterna em vez de
aceitar que Deus está por sobre nós e que não somos capazes de cumprir
com nossos destinos por nós mesmos". A forma de desespero que
descreve Merton implica que sabemos mais que Deus e o que "sabemos" é
que as coisas nunca serão melhores. Este orgulho conduz a um ponto morto
espiritual: a desesperança.
Isto pode soar duro. Para
aqueles que vivem em completa miséria, confrontados às enfermidades que
ameaçam suas vidas ou outro tipo de tragédia, a desesperança pode
parecer como uma resposta racional. Também pode surgir da depressão. "Quando se está deprimido, freqüentemente não se tem esperança", diz Therese Borchard, "e isto pode levar à desesperança".
Jane Ferdon crê que às vezes a
desesperança não é um ponto morto espiritual, mas sim apropriado.
Lembra de uma mulher que descrevia suas dolorosas circunstâncias
dizendo: "Sinto como se caminhasse entre os mortos-vivos". Ferdon sempre pergunta às pessoas se podem encontrar Deus neste estado. "Da
mesma maneira, é importante saber se a desesperança é um reflexo de
outra coisa, por exemplo, solidão ou depressão e o que sucede quando a
pessoa leva essa desesperança para a oração. Às vezes a pessoa não quer
rezar sobre isso e, quando não quer, por que não quer? Talvez aqui entre
a definição de orgulho de Thomas Merton".
Com muito respeito, Ferdon diverge de Merton em identificar de maneira definitiva a desesperança com o orgulho. "Pode
ser que o orgulho seja realmente o contrário do que está sucedendo. A
desesperança pode ser uma experiência de abandonar nossa necessidade de
controlar tudo e pode levar a uma mudança, a revitalização e até ao
consolo". De maneira que enquanto uma desesperança que diz: "Nada pode mudar" é perigosa para a vida espiritual, uma desesperança que diz: "Não sou capaz de conseguir sozinha" pode orientar para o crescimento.
Distinções e libertação
Não é necessário ser um
estudioso da espiritualidade cristã, um diretor espiritual ou uma pessoa
sob guia espiritual para se dar conta que desenredar estes laços
espirituais pode ser esperançoso, clarificador, consolador e libertador.
Compreender que a maioria destas experiências é freqüente nos pode
alentar porque reduzem a ansiedade. "Estas são etapas na vida espiritual de todos";
diz Janet Ruffing. Saber que estas etapas não são idênticas pode ser
esclarecedor e ajudar a discernir as respostas corretas frente a
diferentes acontecimentos de nossa vida espiritual. (S. Inácio, por
exemplo, receita passos muito definidos quando nos encontramos
desolados). Ser capazes de levar estas experiências para a oração pode
ser consolador, dado que podem aprofundar nossa relação com Deus, da
mesma maneira que falar sobre um tema delicado com um amigo pode
fortalecer a amizade ou levar a uma maiorintimidade.
Finalmente, é bom saber que
todas estas experiências nos podem levar a Deus, nos podem libertar do
medo e que podem chegar até mutilar nossa vida espiritual. Porque o Deus
de quem Jesus se sentiu abandonado na cruz é o mesmo Deus que libertou
Jesus da morte, lhe dando nova vida. "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" é o começo do Salmo 22. Um pouco mais abaixo, não obstante, o salmista canta outra canção: "não esconde seu rosto de mim, mas me escuta quando clamo por ele".
*James Martin, S.J., é editor de America.
Nenhum comentário:
Postar um comentário