Para certos teólogos, Judas teria de vender Jesus duas vezes para que cometesse um atentado contra os céus.
O apóstolo São João afirma ser mentiroso quem diz não ter pecado [1]. A
tendência à corrupção está na natureza humana desde que Eva engoliu as
sugestões da serpente juntamente com o fruto proibido. O homem é um
campo de batalha entre os desejos da carne e os desejos da alma.
Trata-se da concupiscência da culpa original. Não é para admirar,
portanto, que a expressão “
sou um homem sem pecados” tenha ficado popular nos últimos
tempos [2]. O que causa espanto, a bem da verdade, é a reprodução desse
tipo de pensamento na boca de alguns dos teólogos.
Embora o pecado seja a única parte da teologia católica que pode ser
realmente provada – para lembrar uma observação de Chesterton já no
início do século XX –, os teólogos modernos negam o pecado humano, que
eles podem ver na rua [3]. Não são poucos os que, em nome de uma falsa
ideia de misericórdia, pregam a inexistência do inferno e da
responsabilidade humana perante os seus delitos. Imitando a atitude
farisaica – que diante de Deus, não consegue enxergar as próprias faltas
–, eles adaptam a moral humana aos seus interesses, fazendo do amor de
Deus uma desculpa para as transgressões mais absurdas [4]. É na esteira
desse raciocínio que se encontram as tentativas de legitimação do
divórcio e comunhão para recasados, a aprovação do aborto, o “casamento”
gay, a eutanásia etc.
Uma teoria muito popular entre alguns moralistas católicos sintetiza toda a trama: a chamada
opção fundamental. Segundo essa tese, o pecado mortal seria
uma possibilidade remota na vida do homem cristão, dada a sua opção
fundamental pela bondade. Com efeito, na consideração do comportamento
humano, a Igreja não deveria levar em conta atitudes particulares (pois
estas não constituiriam uma decisão absoluta sobre a vida da pessoa),
mas tão somente aquela “opção fundamental”, com que o indivíduo decide
globalmente sobre si próprio, por meio de sua liberdade. Qualquer
semelhança com a teoria da justificação luterana não é mera
coincidência. O adágio de Lutero – “seja um pecador e peque fortemente,
mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda” – é o que, de
fato, está na raiz da “opção fundamental” [5]. Resumidamente, o que se
está a dizer é que uma pessoa precisaria insistir repetidas vezes num
pecado para que ofendesse a Deus. Para estes teólogos, Judas teria de vender Jesus duas vezes para que cometesse um atentado contra os céus.
Há alguns anos, numa entrevista ao canal EWTN, o cardeal nigeriano
Francis Arinze (ex-prefeito da Congregação para o Culto Divino) não
deixou de alertar para a perniciosidade dessas teorias.
Para que uma pessoa cometa pecado mortal, não é preciso uma declaração formal, rejeitando Deus; é suficiente realizar um ato num grande ponto (...) Davi matou Urias somente uma vez, não duas, e as consequências foram terríveis (...) essas pessoas que dizem que precisa repetir o ato, quantas vezes eu preciso matar alguém para que isso seja um pecado mortal? Não há necessidade de conforto àqueles que são tentados, nós lhe desejamos falar a verdade e a verdade os libertará.
À crítica do cardeal Arinze soma-se a voz de ninguém menos que São João Paulo II. Na sua encíclica
Veritatis Splendor, de 1993, quando a polêmica em torno do
ensinamento da Igreja já ultrapassava todos os limites, o Santo Padre
pôs os devidos pingos nos “is”, esclarecendo aos teólogos partidários da
“opção fundamental”, que “estas tendências são contrárias ao
ensinamento bíblico, que concebe a opção fundamental como uma verdadeira
e própria escolha da liberdade e une profundamente uma tal escolha com
os atos particulares” [6]. Por conseguinte, aqueles que insistiram nesta
abordagem, mesmo após as admoestações do Santo Padre, não escaparam ao
crivo da Congregação para Doutrina da Fé. É o caso, por exemplo, do
padre Marciano Vidal, que teve uma de suas obras notificadas pelo então
cardeal-prefeito, Joseph Ratzinger [7]. Como resposta a algumas críticas
levantadas pela mídia em relação ao episódio, Ratzinger foi categórico:
“a vigilância exercida neste caso pelos Pastores faz parte da
responsabilidade que o Senhor lhes confiou de guardar intacto o
«depósito da fé» para o bem da Igreja inteira” [8].
De fato, a Igreja tem o dever de esclarecer a consciência dos homens,
sobretudo quando se põe em jogo a salvação das almas. Dizer à humanidade
que ela está marcada pelo pecado não é, de forma alguma, uma atitude de
intolerância ou intromissão na vida privada, como fazem pensar os
arautos do liberalismo. Ao contrário, é, isso sim, uma exortação à busca
da misericórdia divina, que é capaz de perdoar e nos tornar filhos da
santidade. Se é verdade que o homem vive preso a um corpo de morte,
muito mais verdade é a graça de Jesus [9]. Essa dupla realidade do homem
é descrita de um modo dramático por Santo Ambrósio de Milão [10]:
[...] O que é o homem se Vós não o visitais? Não esqueçais, portanto, o débil. Lembrai-Vos, ó Senhor, que me fizestes débil, e que do pó me plasmastes. Como poderei permanecer de pé, se Vós não me olhais continuamente para consolidar este barro, já que a minha consistência provém da Vossa face? "Se escondeis o Vosso rosto, tudo desfalece" (Sl 103, 29): mas, se Vós me olhais, ai de mim! Nada tendes para ver em mim senão montanhas de delitos: não traz vantagem ser abandonados nem ser vistos, porque, quando somos contemplados, provocamos desgosto. Podemos, porém, pensar que Deus não rejeita aqueles que vê, porque purifica aos que olha. Diante d'Ele arde um fogo capaz de queimar a culpa (cf. Jl 2, 3).
Na
Veritatis Splendor, o Papa João Paulo II recordou que “seguir
Cristo não é uma imitação exterior, já que atinge o homem na sua
profunda interioridade. Ser discípulo de Jesus significa tornar-se conforme a Ele,
que Se fez servo até ao dom de Si sobre a cruz” [11]. Deus nos dá a Sua
Graça porque o pecado não é uma mera invenção de Santo Agostinho. O
inferno existe. E ele não está vazio!
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- Jo 1, 8
- “Sou um homem sem pecado”, afirma presidente | Folha de S. Paulo
- CHESTERTON, Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, pág. 27.
- Lc 18, 9-14.
- LUTERO, Carta a Melanchthon (1 de agosto de 1521).
- João Paulo II, Carta Enc. Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 67.
- Congregação para a Doutrina da Fé, Notificação sobre alguns escritos do R.P. Marciano Vidal (22 de fevereiro de 2001).
- Congregação para a Doutrina da Fé, À margem da Notificação sobre alguns escritos do R.P. Marciano Vidal (15 de maio de 2001).
- Rm 7, 23-24.
- João Paulo II, Carta Enc. Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 105.
- Ibidem, n. 21.
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