A Basílica de S. João de Latrão,
cuja “dedicação” ou consagração aconteceu no ano de 320, é a catedral do Papa,
enquanto Bispo de Roma. Ela é a “mãe de todas as igrejas”, o símbolo das
Igrejas de todo o mundo, unidas à volta do sucessor de Pedro. A Festa da
Dedicação da Basílica de Latrão convida-nos a tomar consciência de que a Igreja
de Deus (que a Basílica de Latrão simboliza e representa) é hoje, no meio do mundo,
a “morada de Deus”, o testemunho vivo da presença de Deus na caminhada
histórica dos homens.
Na primeira leitura, o
profeta Ezequiel, dirigindo-se ao Povo de Deus exilado na Babilónia, anuncia a
chegada de um tempo de salvação e de graça, em que Deus vai estabelecer a sua
morada no meio dos homens e vai derramar sobre a humanidade sofredora vida em
abundância.
No Evangelho, Jesus
apresenta-Se como o Novo Templo, o “lugar” onde Deus reside no mundo e onde os
homens podem fazer a experiência do encontro com Deus. É através de Jesus que o
Pai oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não
conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a
partir de agora, o faz.
Na segunda leitura, Paulo
recorda aos cristãos de Corinto (e aos cristãos de todos os tempos e lugares)
que são, no mundo, o Templo de Deus onde reside o Espírito. Animados pelo
Espírito, os cristãos são chamados a viver numa dinâmica nova, seguindo Jesus
no caminho do amor, da partilha, do serviço, da obediência a Deus e da entrega
aos irmãos; vivendo dessa forma, eles tornam Deus presente e atuante no meio da
cidade dos homens.
LEITURA I – Ez 47,1-2.8-9.12
Ezequiel é chamado “o profeta da
esperança”. Desterrado na Babilónia desde 597 a.C. (no reinado de
Joaquin,
quando Nabucodonosor conquista, pela primeira vez, Jerusalém e deporta
para a Babilônia um primeiro grupo de jerusalimitanos), Ezequiel exerce
aí a sua missão
profética entre os exilados judeus.
A primeira fase do ministério de
Ezequiel decorre entre 593 a.C. (altura em que sentiu o chamamento de Deus) e
586 a.C. (data em que Jerusalém é arrasada pelas tropas de Nabucodonosor e uma
nova leva de exilados é encaminhada para a Babilônia). Nesta fase, Ezequiel
procura destruir falsas esperanças e anuncia que, ao contrário do que pensam os
exilados, o cativeiro está para durar… Eles não só não vão regressar em breve a
Jerusalém, mas os que ficaram em Jerusalém (e que continuam a multiplicar os
pecados e infidelidades) vão fazer companhia aos que já estão desterrados na Babilônia.
A segunda fase do ministério de
Ezequiel desenrola-se a partir de 586 a.C., até cerca de 570 a.C.. Instalados
numa terra estrangeira, sem Templo, sem sacerdócio, sem culto, os exilados
estão desesperados e duvidam da bondade e do amor de Deus. Nessa fase, Ezequiel
procura alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de
que o Deus libertador e salvador não os abandonou. O texto que hoje nos é
proposto pertence a esta segunda fase.
Para dar corpo à esperança,
Ezequiel anuncia aos exilados a chegada de uma nova era, de felicidade e de paz
sem fim… Será o tempo em que Deus irá, Ele próprio, assumir a condução do seu
Povo, como um “Bom Pastor” que cuida das suas ovelhas (cf. Ez 34,11-16); será o
tempo em que Deus vai tornar de novo fecundos os campos sobre os quais se
abateu a guerra e a desolação e reconstruir e repovoar as cidades abandonadas e
calcinadas (cf. Ez 36-8-11); será o tempo em que Deus vai operar uma mudança no
interior dos homens, substituindo os “corações de pedra”, duros e insensíveis,
por “corações de carne”, capazes de acolher os preceitos da Aliança e de viver
no amor a Deus e aos irmãos (cf. Ez 36,25-28); será o tempo em que o Templo de
Jerusalém será reconstruído e Deus irá voltar a residir no meio do seu Povo
(cf. Ez 40,1-47,12).
Com a promessa de que Deus vai
voltar a residir no meio do seu Povo, chegamos ao ponto culminante dessa
“teologia da esperança” proposta por Ezequiel… Mais do que o próprio Exílio
numa terra estrangeira, Israel lamentava o desaparecimento do Templo (a
“residência de Deus”) e da “Glória de Jahwéh” (a “Glória” equivalia à presença
de Deus no meio do seu Povo, salvando-o e protegendo-o a cada instante da sua
caminhada histórica). No entanto, Ezequiel anuncia aos exilados que Deus vai
construir um Novo Templo (cf. Ez 40-42), do qual sairá vida (“água”: Ez
47,1-12) e no qual a “Glória de Jahwéh” voltará a habitar (cf. Ez 43,1-5).
Desse Novo Templo que vai surgir
e que será a habitação de Deus no meio do seu Povo, o profeta “vê” brotar um
rio de águas profundas e impetuosas. A água é um símbolo universal de vida, de
fecundidade, de abundância, de felicidade; no entanto, essa simbologia
torna-se, ainda, mais significativa para um Povo marcado pela dura experiência
do deserto, onde a falta ou a abundância de água é, em termos bem dramáticos, a
diferença entre a morte e a vida. Dado que esse “rio” de que o profeta fala
brota da casa de Deus, a sua água simboliza o poder vivificante e fecundante de
Deus que, de Jerusalém, se derrama sobre o seu Povo.
O rio que brota do Templo de Deus
corre para oriente, desce para a região da Arabá – a região mais desolada e
árida do país – e, daí, para o Mar Morto. A sua água tem um efeito vivificador,
fecundando a aridez do deserto, tornando salubres as águas do Mar Morto e
enchendo-as de vida. Este quadro de água abundante, que faz brotar árvores de
fruto de toda a espécie, dotadas de frutos de toda a espécie e de folhas
medicinais (vers. 12), retoma a imagem paradisíaca do Jardim do Éden, local de
água e de árvores de fruto, onde o homem – vivendo em comunhão com Deus e
obedecendo às suas propostas – tinha todas as condições para ser feliz (cf. Gn
2,9-14).
Aos exilados o profeta anuncia,
portanto, a chegada de um tempo em que Deus vai voltar a residir no meio do seu
Povo e vai derramar sobre os seus eleitos vida em abundância. A acção salvadora
de Deus em favor do seu Povo irá possibilitar que a desolação e a morte do
presente se transformem, no futuro, em vida e felicidade sem fim.
Os escritos joânicos vão ligar
esta profecia de Ezequiel a Jesus Cristo. Para o autor do Quarto Evangelho,
Jesus é esse Novo Templo de que o profeta falou (cf. Jo 2,21), o “lugar” da
residência de Deus no meio dos homens; do coração desse Cristo que amou os
homens até ao dom total de si mesmo, brota uma fonte de água (cf. Jo 19,34) que
mata definitivamente a sede de vida que o homem tem (cf. Jo 4,14; 7,37-39). O
Livro do Apocalipse, por sua vez, apresenta – integrado na descrição da “nova
Jerusalém” onde vão residir aqueles que se mantiverem fiéis a Jesus – o quadro
do trono celeste do Cordeiro imolado, de onde sai um “rio de água viva” (cf. Ap
22,1-2).
ATUALIZAÇÃO
• A questão central no texto que
a liturgia deste dia nos propõe como primeira leitura é a da presença de Deus
no meio dos homens. O nosso texto garante-nos que Deus nunca desiste de Se
fazer uma presença amiga e reconfortante na caminhada dos homens e de derramar
sobre a humanidade sofredora vida em abundância. Trata-se de uma “boa nova” que
devemos ter continuamente presente… As guerras, as injustiças, as convulsões
sociais, a depressão económica, os escândalos que abalam a sociedade e que nos
fazem desconfiar das instituições, a falência dos líderes em quem confiamos, as
notícias diárias sobre a escravatura e o tráfico de seres humanos, a crise de
valores, a falta de respeito pela vida humana, desenvolvem em nós sentimentos
de angústia, de frustração, de insegurança, de instabilidade, de orfandade.
Diante dos dramas que todos os dias nos atingem, sentimo-nos abandonados,
perdidos, desnorteados, à deriva… Contudo, para nós, crentes, a certeza de que
Deus reside no meio dos homens e derrama continuamente sobre eles vida em
abundância é um convite à serenidade, à confiança e à esperança. O mundo não
caminha para um beco sem saída, pois Deus está presente em cada passo da
caminhada histórica da humanidade. Nós, os crentes, temos de dar testemunho,
diante dos nossos contemporâneos, desta certeza que nos anima.
• Se Deus reside no meio dos
homens e derrama sobre eles vida em abundância, porque é existem na história do
nosso tempo tantos pontos negros de miséria, de injustiça, de exploração, de
sofrimento? Dificilmente conseguiremos, alguma vez, encontrar uma resposta
totalmente satisfatória para esta questão… Convém, no entanto, ter presente que
uma parte significativa dos males da humanidade resulta do facto de os homens
serem indiferentes às propostas de vida que Deus continuamente lhes faz… Não é
Deus que falha; são os homens que, utilizando a sua liberdade, recusam a vida
que Deus lhes oferece e preferem construir a história humana de acordo com
esquemas de egoísmo e de pecado. Para que a presença de Deus na nossa história
tenha um impacto real na forma como, dia a dia, se constrói o nosso mundo, é
necessário que a humanidade abandone os caminhos do orgulho e da autossuficiência
e aprenda a escutar, com humildade e simplicidade, as propostas e os desafios
de Deus.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 45
(46)
Refrão: Os braços dum rio alegram
a cidade de Deus,a morada santa do Altíssimo.
Deus é o nosso refúgio e a nossa
força, auxílio sempre pronto na
adversidade.
Por isso nada receamos ainda que
a terra vacile e os montes se precipitem no
fundo do mar.
Os braços dum rio alegram a
cidade de Deus, a mais santa das moradas do
Altíssimo.
Deus está no meio dela e a torna
inabalável, Deus a protege desde o romper da
aurora.
O Senhor dos Exércitos está conosco, o Deus de Jacob é a nossa
fortaleza.
Vinde e contemplai as obras do
Senhor, as maravilhas que realizou na
terra.
LEITURA II – 1 Cor 3,9c-11.16-17
No decurso da sua segunda viagem
missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia,
e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52). De acordo com Act 18,2-4, Paulo
começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos.
No sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e
Timóteo (2 Cor 1,19; Act 18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do
Evangelho. No entanto, não tardou a entrar em conflito com os judeus e foi
expulso da sinagoga.
Corinto era uma cidade nova e
muito próspera. Servida por dois portos de mar, possuía as características
típicas das cidades marítimas: população de todas as raças e de todas as
religiões. Era a cidade do desregramento para todos os marinheiros que cruzavam
o Mediterrâneo, ávidos de prazer, após meses de navegação. Na época de Paulo, a
cidade comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram
escravos. A riqueza escandalosa de alguns contrastava com a miséria da maioria.
Como resultado da pregação de
Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maior parte dos membros da
comunidade eram de origem grega, embora, em geral, de condição humilde (cf. 1
Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2); mas havia também elementos de origem
hebraica (cf. At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13).
De uma forma geral, a comunidade
era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente
corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas
(cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se
introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor
1,19-2,10). Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava
as suas raízes em terreno adverso. Em Corinto estão bem representadas as
dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma
cultura pagã e por um conjunto de valores em profunda contradição com a pureza
da mensagem evangélica.
O texto que hoje nos é proposto
como segunda leitura está inserido num contexto de polémica. Depois de Paulo
ter deixado a cidade, apareceu por lá um cristão de origem judaica com o nome
de Apolo. Era um brilhante pregador e foi de grande utilidade para a comunidade
nas polémicas doutrinais com os judeus de Corinto. Formaram-se partidos (embora
Apolo não favorecesse essa divisão, segundo parece): uns admiravam Paulo,
outros Pedro, outros Apolo (cf. 1 Cor 1,12). É de crer que os vários partidos
manifestassem uma certa rivalidade, à imagem das escolas filosóficas gregas que
estavam espalhadas por toda a cidade de Corinto. De qualquer forma, a
comunidade estava dividida e, dia a dia, acentuavam-se os conflitos, os ciúmes,
as lutas, as rivalidades.
Este estado alarmante da
comunidade chegou ao conhecimento de Paulo quando o apóstolo se encontrava em
Éfeso, no decurso da sua terceira viagem apostólica. Imediatamente, Paulo
escreveu aos Coríntios questionando a opção dos membros da comunidade pela
sabedoria do mundo, em detrimento da sabedoria de Deus. Depois de apresentar a
“sabedoria de Deus”, revelada em Jesus Cristo (sobretudo através da “loucura da
cruz”) e oferecida aos homens (cf. 1 Cor 1,18-2,16), Paulo constata que os
coríntios ainda não acolheram essa sabedoria: mantêm-se na dimensão do homem
carnal (isto é, do homem fraco, limitado, pecador, escravo das suas paixões e
apetites), imaturos na fé; cultivam as divisões e os conflitos, em flagrante
contradição com o que Jesus lhes ensinou; correm atrás de mestres humanos como
se eles tivessem a chave da felicidade e da realização plena, esquecendo que,
por detrás de Paulo ou de Apolo, está Deus. Os cristãos não devem lutar pelo
partido de Paulo ou de Apolo; mas devem dar testemunho, no meio da cidade, dos
valores e da lógica de Deus.
É à ação de Deus que se deve a
constituição da comunidade cristã de Corinto. Paulo – que esteve no início
histórico da comunidade – colocou o alicerce e outros ajudaram a erguer o
edifício; mas, por detrás da ação dos homens (de Paulo ou de qualquer outro),
está Deus e o seu projeto de salvação para os Coríntios. Portanto, a comunidade
cristã de Corinto deve ter consciência de que é um edifício de Deus (vers. 9c).
No entanto, as divisões, os
conflitos, as incoerências, as apostas em valores e em mestres humanos, são uma
realidade diária na comunidade de Corinto… O testemunho que os membros da
comunidade dão aos seus concidadãos não é um testemunho que revela Deus e os
seus valores.
Neste contexto, Paulo pergunta
aos Coríntios: “não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus
habita em vós?” (vers. 16). O Templo (de Jerusalém) era, no Antigo Testamento,
a residência de Deus, o lugar por excelência da presença de Deus no meio do seu
Povo. É aí que Israel encontrava o seu Deus e estabelecia comunhão com Ele.
Agora, contudo, é a comunidade cristã que é o verdadeiro Templo da nova
aliança, isto é, o lugar onde Deus reside, onde Ele Se manifesta aos homens e
onde Ele oferece ao mundo a salvação.
Ora, ser Templo de Deus (lugar
onde Deus reside no mundo e onde os homens encontram Deus) será compatível com
uma existência onde a preocupação fundamental é procurar a “sabedoria do
mundo”? A comunidade de Corinto pode ser Templo de Deus onde reside o Espírito
e viver no conflito, na divisão, no ciúme, no confronto? Animados pelo
Espírito, os cristãos são chamados a viver numa dinâmica nova, seguindo Jesus
no caminho do amor, da partilha, do serviço, da obediência a Deus e da entrega
aos irmãos. Mais: o Templo de Deus que é a comunidade cristã é santo. A noção
de santidade sugere a ideia de separação para o serviço de Deus: trata-se de
uma comunidade que deve marcar a sua diferença em relação ao mundo (aos valores
do mundo, aos esquemas do mundo, à sabedoria do mundo), a fim de se consagrar
inteiramente a Deus.
No último versículo do nosso
texto, Paulo declara que, se alguém destrói o Templo de Deus, Deus o destruirá
(vers. 17). A expressão deve ser entendida como um aviso àqueles que, com o seu
egoísmo e orgulho, impedem que a comunidade viva de forma coerente o seu
compromisso cristão: Deus não pactua com esse “pecado” e não aceitará que essas
pessoas integrem a família de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Os cristãos são Templo de Deus,
onde reside o Espírito. Isso quer dizer, em concreto, que, animados pelo
Espírito, eles têm de ser o sinal vivo de Deus e as testemunhas da sua salvação
diante dos homens do nosso tempo. O testemunho que damos, pessoalmente, fala de
um Deus cheio de amor e de misericórdia, que tem um projeto de salvação e
libertação para oferecer – sobretudo aos pobres e marginalizados, aqueles que
mais necessitam de salvação? No nosso ambiente familiar, no nosso espaço de
trabalho, no nosso círculo de amigos, somos o rosto acolhedor e alegre de Deus,
as mãos fraternas de Deus, o coração bondoso e terno de Deus?
• A nossa comunidade paroquial ou
religiosa é uma comunidade fraterna, solidária, e que dá testemunho da “loucura
da cruz” com gestos concretos de amor, de partilha, de doação, de serviço, ou é
uma comunidade fragmentada, dividida, cheia de contradições, onde cada membro
puxa para o seu lado, ao sabor dos interesses pessoais?
• O que é que preside à minha
vida: a “sabedoria de Deus” que é amor e dom da vida, ou a “sabedoria do
mundo”, que é luta sem regras pelo poder, pela influência, pelo reconhecimento
social, pelo bem estar econômico, pelos bens perecíveis e secundários?
ALELUIA – 1Cor 3,9c.11.16-17
Aleluia. Aleluia.
Escolhi e consagrei esta casa,
diz o Senhor, para que o meu nome esteja neste lugar para sempre.
EVANGELHO – Jo 2,13-22
13Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. 14No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados. 15Fez
então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as
ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas.
16E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” 17Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”. 18Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?” 19Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. 20Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?” 21Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo. 22Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele.
O episódio que hoje nos é
proposto aparece na “seção introdutória” do Evangelho de João (cf. Jo
1,19-3,36), onde se diz quem é Jesus e se apresentam as grandes linhas
programáticas do seu ministério.
A cena situa-nos no Templo de
Jerusalém. Trata-se desse Templo majestoso, construído por Herodes para
demonstrar as suas boas disposições para com o culto a Jahwéh e para conseguir
a benevolência dos judeus. A construção do Templo iniciou-se em 19 a.C. e ficou
essencialmente pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido dados
por concluídos em 63 d.C.). No ano 27 d.C., efetivamente, o Templo estava a ser
construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que
os dirigentes judeus fizeram a Jesus (cf. Jo 2,20).
João situa o episódio nos dias
que antecedem a festa da Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se
concentravam em Jerusalém para celebrar a festa principal do calendário
religioso judaico. Jerusalém, que normalmente teria à volta de 55.000
habitantes, chegava a albergar cerca de 125.000 peregrinos nesta altura. No
Templo sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros, destinados à celebração
pascal.
Neste ambiente, o comércio
relacionado com o Templo sofria um espantoso incremento. Três semanas antes da
Páscoa, começava a emissão de licenças para a instalação dos postos comerciais
à volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a emissão dessas licenças revertia
para o sumo sacerdote. Havia tendas de venda que pertenciam, diretamente, à
família do sumo sacerdote. Vendiam-se os animais para os sacrifícios e vários
outros produtos destinados à liturgia do Templo. Havia, também, as tendas dos
cambistas que trocavam as moedas romanas correntes por moedas judaicas (os
tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, pois não era
permitido que moedas com a efígie de imperadores pagãos conspurcassem o tesouro
do Templo). Este comércio constituía uma mais valia para a cidade e sustentava
a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo.
Vai ser neste contexto que Jesus
vai realizar o seu gesto profético.
Os profetas de Israel, em
diversas situações, tinham criticado o culto sacrificial que Israel oferecia a
Deus, considerando-o como um conjunto de ritos estéreis, vazios e sem
significado, uma vez que não eram expressão verdadeira de amor a Jahwéh;
tinham, inclusive, denunciado a relação do culto com a injustiça e a exploração
dos pobres (cf. Am 4,4-5; 5,21-25; Os 5,6-7; 8,13; Is 1,11-17; Jer 7,21-26). As
considerações proféticas acabaram por consolidar a ideia de que a chegada dos
tempos messiânicos implicaria a purificação e a moralização do culto prestado a
Jahwéh no Templo. Nesta linha, o profeta Zacarias chegou a ligar explicitamente
o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na história e construir um
mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos
comerciantes que desenvolviam a sua atividade comercial “no Templo do Senhor do
universo” – Zac 14,21).
O gesto que o Evangelho deste
domingo nos relata deve entender-se neste enquadramento. Quando Jesus pega no
chicote de cordas, expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, de bois e de
pombas, deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos
cambistas (vers. 14-16), está a revelar-Se como “o Messias” e a anunciar que
chegaram os novos tempos, os tempos messiânicos.
No entanto, Jesus vai bem mais
longe do que os profetas vétero-testamentários. Ao expulsar do Templo também as
ovelhas e os bois que serviam para os ritos sacrificiais que Israel oferecia a
Jahwéh (João é o único dos evangelistas a referir este pormenor), Jesus mostra
que não propõe apenas uma reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto
prestado a Deus no Templo de Jerusalém era, antes de mais, algo sem sentido: ao
transformar a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a
presença de Deus… Mas, além disso, o culto celebrado no Templo era algo de
nefasto: em nome de Deus, esse culto criava exploração, miséria, injustiça e,
por isso, em lugar de potenciar a relação do homem com Deus, afastava o homem
de Deus. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro
“basta” a uma mentira com a qual Deus não pode continuar a pactuar: “não façais
da casa de meu Pai casa de comércio” (vers. 16).
Os líderes judaicos ficam
indignados. Quais são as credenciais de Jesus para assumir uma atitude tão
radical e grave? Com que legitimidade é que Ele se arroga o direito de abolir o
culto oficial prestado a Jahwéh?
A resposta de Jesus é, à primeira
vista, estranha: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (vers.
19). Recorrendo à figura literária do “mal-entendido” (propõe-se uma afirmação;
os interlocutores entendem-na de forma errada; aparece, então, a explicação
final, que dá o significado exato do que se quer afirmar), João deixa claro que
Jesus não Se referia ao Templo de pedra onde Israel celebrava os seus ritos
litúrgicos (vers. 20), mas a um outro “Templo” que é o próprio Jesus (“Jesus,
porém, falava do Templo do seu corpo” – vers. 21). O que é que isto significa?
Jesus desafia os líderes que O questionaram, a suprimir o Templo que é Ele
próprio; mas deixa claro que, três dias depois, esse Templo estará outra vez
erigido no meio dos homens. Jesus alude, evidentemente, à sua ressurreição. A
prova de que Jesus tem autoridade para “proceder deste modo” é que os líderes
não conseguirão suprimi-lo. A ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que
a sua atuação tem o selo de garantia de Deus.
No entanto, o mais notável, aqui,
é que Jesus Se apresenta como o “novo Templo”. O Templo representava, no
universo religioso judaico, a residência de Deus, o lugar onde Deus Se revelava
e onde Se tornava presente no meio do seu Povo. Jesus é, agora, o lugar onde
Deus reside, onde Se encontra com os homens e onde Se manifesta ao mundo. É
através de Jesus que o Pai oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo
que a antiga Lei já não conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os
homens – é Jesus que, a partir de agora, o faz.
ATUALIZAÇÃO
• Como é que podemos encontrar
Deus e chegar até Ele? Como podemos perceber as propostas de Deus e descobrir
os seus caminhos? O Evangelho que nos é proposto na Festa da Dedicação da
Basílica de Latrão responde: é olhando para Jesus. Nas palavras e nos gestos de
Jesus, Deus revela-Se aos homens e manifesta-lhes o seu amor, oferece aos
homens a vida plena, faz-Se companheiro de caminhada dos homens e aponta-lhes
caminhos de salvação. Somos, assim, convidados a olhar para Jesus e a descobrir
nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho”, aquela proposta de
vida e de salvação que Deus nunca desistiu de nos apresentar.
• Os cristãos são aqueles que
aderiram a Cristo, que aceitaram integrar a sua comunidade, que comeram a sua
carne e beberam o seu sangue, que se identificaram com Ele. Membros do Corpo de
Cristo, os cristãos são pedras vivas desse novo Templo onde Deus Se manifesta
ao mundo e vem ao encontro dos homens para lhes oferecer a vida e a salvação.
Esta realidade supõe naturalmente, para os crentes, uma grande responsabilidade…
Os homens do nosso tempo têm de ver no rosto dos cristãos o rosto bondoso e
terno de Deus; têm de experimentar, nos gestos de partilha, de solidariedade,
de serviço, de perdão dos cristãos, a vida nova de Deus; têm de encontrar, na
preocupação dos cristãos com a justiça e com a paz o anúncio desse mundo novo
que Deus quer oferecer a todos os homens. Talvez o facto de Deus parecer tão
ausente da vida, das preocupações e dos valores dos homens do nosso tempo tenha
a ver com o facto de os discípulos de Jesus se demitirem da sua missão e da sua
responsabilidade… O nosso testemunho pessoal é um sinal de Deus para os irmãos
que caminham ao nosso lado? A vida das nossas comunidades dá testemunho da vida
de Deus? A Igreja é essa “casa de Deus” onde qualquer homem ou qualquer mulher
pode encontrar essa proposta de libertação e de salvação que Deus oferece a
todos?
• Qual é o verdadeiro culto que
Deus espera? Evidentemente, não são os ritos solenes e pomposos, mas vazios,
estéreis e balofos. O culto que Deus aprecia é uma vida vivida na escuta das
suas propostas e traduzida em gestos concretos de doação, de entrega, de
serviço simples e humilde aos irmãos. Quando somos capazes de sair do nosso
comodismo e da nossa autossuficiência para ir ao encontro do pobre, do
marginalizado, do estrangeiro, do doente, estamos a dar a resposta “litúrgica”
adequada ao amor e à generosidade de Deus para conosco.
• Ao gesto profético de Jesus, os
líderes judaicos respondem com incompreensão e arrogância. Consideram-se os donos
da verdade e os únicos intérpretes autênticos da vontade divina. Instalados nas
suas certezas e preconceitos, nem sequer admitem que a denúncia que Jesus faz
esteja correta. A sua autossuficiência impede-os de ver para além dos seus
projetos pessoais e de descobrir os projetos de Deus. Trata-se de uma atitude
que, mais uma vez, nos questiona… Quando nos barricamos atrás de certezas
absolutas e de atitudes intransigentes, podemos estar a fechar o nosso coração
aos desafios e à novidade de Deus.
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